Chapter 1: Roque
Notes:
Gatilhos: Abuso infantil, menção a estupro, violência, drogas, cativeiro.
Chapter Text
A noite estava fria e úmida quando Roronoa Zoro rumou para casa. Não era nem 20 horas, mas como precisaria acordar cedo no dia seguinte, achou melhor não se demorar no bar. Mal bebeu duas garrafas de saquê por causa do pouco dinheiro que tinha para gastar com excessos e até disso precisaria desistir no próximo mês, quando a construção na qual vinha trabalhando seria finalizada.
A Galley-la, por ser uma empresa pequena de construção, não tinha como pagar seus trabalhadores no período vago entre um contrato e outro de construção e dada a necessidade financeira de Zoro, não podia simplesmente ficar parado enquanto aguardava o próximo serviço.
Rejeitando a jovem que tentou lhe estender um folheto de um clube de anfitriãs, Zoro pensou na possibilidade de arranjar um terceiro emprego. Talvez como segurança, já que os clubes costumam precisar. Aos finais de semana trabalhava em uma oficina mecânica, mas somente isso não lhe rendia muito e precisava pagar as taxas de sua dívida com alguma regularidade.
Cruzou a rua fora da faixa de pedestre, estirando o dedo para um carro que passou buzinando logo depois. O bairro em que morava tinha bastante movimento durante a noite. Havia muitos bares, clubes noturnos e casas de aposta disfarçadas de mercearias comuns. Mas à medida que se afastava dos pontos mais centrais do bairro e avançava mais pelas ruas residenciais, o movimento morria quase por inteiro, pois as pessoas eram conscientes dos perigos de se andar a noite por ali.
Zoro espirrou quando uma brisa gélida trouxe o pólen de um jardim em sua direção. Foi nesse momento, distraído por um nariz irritado, que um carro de janelas escuras parou bem perto de repente e homens fortes o arrastaram para dentro do automóvel. Ele resistiu do jeito que pode, mas o número e destreza de seus captores se mostrou uma dificuldade além do que poderia lidar ao ser pego de surpresa.
Os homens então o empurraram com rudeza para dentro do automóvel, fechando a porta com um baque característico e partindo rápido.
*
Zoro não sabia para onde estava sendo levado, pois além de seu péssimo senso de direção ainda estava com uma sacola de tecido fedorento sobre sua cabeça. Apenas podia estimar que passara ao menos meia hora dentro daquele carro, sendo transportado para longe de onde morava. Quando o carro estacionou, foi novamente empurrado para fora e conduzido para dentro de algum lugar que o piso era de concreto simples. Notou pela sensação do solo áspero contra a sola do seu sapato, uma experiência adquirida graças aos últimos três anos trabalhando em construções.
Andaram até o chão de concreto dar lugar a um piso de cimento batido. Os captores — que não falaram coisa alguma desde o ríspido “porra” quando Zoro acertou um soco no nariz de um deles antes de ser contido — mandaram que ele parasse e em seguida forçaram seus ombros para baixo, fazendo com que se ajoelhasse contra a vontade. Sem mais nem menos o saco foi tirado de sua cabeça e Zoro apertou os olhos brevemente devido a volta de luz súbita.
À sua frente, sentado em um sofá marrom envelhecido, estava um homem loiro de pernas cruzadas e com um cigarro repousado nos lábios. Vestia um costume vinho, além de sapatos e luvas pretas. Nos lábios um sorriso moderado, como se não fosse novidade ter alguém de pulsos amarrados às costas e ajoelhado na sua frente. Zoro fechou a cara. Estava diante um membro de máfia que nunca vira antes e isso não podia significar algo bom.
Olhou ao redor tentando entender onde estava, mas não descobriu muito mais do que estar em uma sala que parecia de um pequeno cassino abandonado. As paredes deviam ter sido de uma coloração vibrante em algum momento do passado e os desenhos sobre o chão liso não passavam de uma mera sugestão do que fora. Havia apenas três máquinas caça-níqueis no ambiente, todas visivelmente quebradas, além de um cheiro rançoso e doce no ar.
Sua visão voltou-se para o homem de costume ao perceber movimentação, assistindo-o se levantar com o cigarro agora entre os dedos enluvados. A franja loira recaia sobre um dos olhos, deixando apenas um dos olhos azuis visíveis. O homem soprou a fumaça para cima, olhando brevemente para os próprios subalternos.
— Ele te deu trabalho, Bellamy? — disse para um dos homens que seguravam Zoro. — Alfas costumam ser difíceis, mas achei que vocês poderiam lidar com ele.
O subordinado que estava com o nariz quebrado apenas deu um resmungo dolorido quando tentou torcer o rosto numa careta irritada.
— Você não disse que esse imbecil sabia lutar. O soco dele não é de alguém inexperiente.
Mesmo estando numa situação incômoda — os braços começavam a ficar doloridos pela posição — a boca de Zoro se curvou em um meio sorriso. Não tinha sido pego sem resistência. Na verdade, aqueles homens tinham tido sorte de pegá-lo distraído, pois se fosse em outro momento poderiam ter saído bem mais machucados.
— Hewitt parece bem, então imagino que você foi o que teve menos sorte. — prosseguiu o homem de costume vinho, sem demonstrar a menor necessidade em se justificar sobre aquela omissão de informação.
Hewitt, o segundo homem que segurava Zoro, apenas assentiu silencioso. Já Bellamy franziu o cenho.
— Sarquiss está dirigindo, não tinha como ser atingido, mas Ross está com um olho roxo. Ele está guardando a saída.
Diante de Zoro, o homem que era claramente o de status superior ali, inclinou um pouco o corpo e segurou o queixo dele com uma força desnecessária. Os olhos azuis o analisando com certo divertimento. Zoro moveu o rosto para longe da mão alheia, dirigindo uma expressão irritada para o loiro.
— Agora entendo o porquê de Buggy não ter conseguido forçá-lo a pagar as taxas inteiras. Essa expressão medonha deve ter paralisado aquele incompetente. — sorriu, ajeitando a postura e dedicando um olhar prepotente a ele. — Este território agora está sob a responsabilidade do grupo Baratie e não somos tão benevolentes de fazer falsas ameaças como Buggy fazia. Ele ameaçou sua irmã, não é? Ele nem sabia que você tinha uma, apenas jogou verde e teve sorte de acertar.
Zoro não estava gostando do rumo daquela conversa. Havia algo naquele homem que lhe deixava intranquilo, mesmo que no momento ele só estivesse dando uma nova tragada no cigarro e soltando a fumaça com certa elegância.
— Diferente dele, eu sei o nome dela, onde trabalha e que tem planos de se mudar para o exterior no final do ano. Para sua sorte, no entanto, eu sou um gentleman e não gosto de machucar mulheres e crianças. Mas não teste minha paciência, Roronoa Zoro. — explicou pacientemente como se Zoro tivesse apenas dois neurônios funcionais. — Kuina é um belo nome, imagino que ela seja tão bonita quanto. Seria uma pena um acidente acontecer a ela.
A reação foi mais instintiva que racional. A breve menção de ameaça a sua irmã fez todo seu corpo se tensionar, mas ouvi-lo dizendo o nome dela... Zoro apertou os dentes e forçou o corpo para cima, a fim de atacar o homem de cabelos claros, mas os subordinados conseguiram deter seu avanço bem a tempo, usando toda a força que tinham para mantê-lo numa posição falsamente submissa. As veias em seu pescoço estavam saltadas pelo esforço, o olhar colérico enfocando no mafioso em vestes vinho. Devido a alteração, sua natureza alfa se tornou ainda mais evidente graças a pesada aura de ameaça que parecia querer engolir todos os presentes.
Entretanto, o mafioso apenas assistiu esse comportamento selvagem em silêncio com um estranho brilho no olhar.
— Interessante... — ele murmurou pensativo, depois de algum tempo observando atentamente a expressão de fúria de Zoro. Em seguida disse em uma voz arrastada, quase maliciosa. — Acho que nos daremos muito bem, Roronoa.
De repente um aroma adocicado inundou as narinas de Zoro e ele sentiu a cabeça girar com os pensamentos desconexos. A tensão em seu corpo, a raiva acumulada, dissolveu-se num átimo, dando lugar a um ligeiro torpor. Zoro ergueu o rosto, esforçando-se para lutar contra o desejo que se avolumava em seu íntimo e que parecia drenar sua concentração. Aquele mafioso prepotente era um ômega dominante!
O outro o encarou com visível interesse e se abaixou para soprar a fumaça, dessa vez sobre o rosto de Zoro.
— Sua dívida agora está nas minhas mãos e eu decido como irá pagar. Todo mês, sem falta, você deve vir diretamente a mim para entregar o dinheiro. — informou, colocando um cartão negro dentro da camiseta de Zoro. — Salve meu número, ligarei quando quiser encontrá-lo. Mande lembranças para a senhorita Kuina.
Embora ainda estivesse afetado pelos intensos feromônios, Zoro ainda conseguiu exibir uma feição furiosa e tentar, mais uma vez, livrar-se das mãos que o seguravam. Seu intento não teve sucesso, mas ficou perceptível o quanto sua resistência era ótima.
— O chefe não irá gostar disso, Sanji. — avisou Bellamy. — Ele já disse para não se envolver demais com os endividados.
Sanji jogou o cigarro no chão, pisando em seguida.
— O velhote não me controla, Bellamy. E aconselho a ficar quieto quando sua opinião não for requisitada. — ele não disse em um tom de ameaça, mas ambos os subalternos entenderam a mensagem. — Podem devolvê-lo.
O saco preto voltou a cobrir a cabeça de Zoro e ele foi levado novamente para o carro para mais uma viagem de destino desconhecido. Acabou sendo deixado em um local diferente de onde foi sequestrado, embora ainda fosse no mesmo bairro. A corda em seus pulsos foi cortada rápido e antes de poder assimilar, o carro tinha partido.
Zoro levou duas horas para encontrar o caminho de volta para casa. E dado a hora, mal teve tempo de dormir antes de precisar se levantar para ir trabalhar outra vez.
*
Desde criança Zoro era ciente da existência da máfia. Sua mãe, como uma alfa ex-yakuza, tinha o dedo mindinho amputado e uma enorme tatuagem de serpente grafada no corpo para sempre relembrar a família que possuía um passado obscuro. Porém, ela não era uma pessoa ruim. Era um pouco truculenta com gestos de afeto e as vezes passava madrugadas fumando por causa de pesadelos ou insônia, mas tentava seu máximo para ser uma boa mãe e uma boa esposa. Zoro a amava muito.
Entretanto, erros do passado nem sempre são esquecidos com facilidade e ela acabou sendo assassinada por algum ex-inimigo enquanto comprava legumes na feirinha de rua. Com apenas dez anos foi impossível Zoro não se ressentir com ela e seu envolvimento com a yakuza. Principalmente depois que seu pai, um simples vendedor de eletrônicos, passou a ignorar os dois filhos e ficar quase o dia inteiro fora de casa.
Apesar da pouca idade Zoro precisou cuidar da irmã que era dois anos mais nova. E quando, aos 16 anos, o pai desapareceu de vez, Zoro começou a trabalhar para sustentar a casa. Acima de tudo ele queria que Kuina pudesse continuar estudando e, mais tarde, pudesse ingressar em uma boa universidade. Ele próprio abandonou os estudos, mas não se sentiu lesado. Sua irmã estando feliz, ele ficava satisfeito.
Somente alguns meses depois Zoro descobriu porque o pai fugira. Seu gosto por apostas tinha ficado descontrolado após a morte da esposa, chegando ao ponto de pegar dinheiro emprestado com gente perigosa para continuar alimentando o vício. E diferente do que esperava, seguiu perdendo mais dinheiro do que podia pagar. Por fim, quando membros da máfia começaram a procurá-lo, o pai simplesmente desapareceu do mapa, deixando uma dívida imensa para os filhos lidarem.
Zoro não podia negar que dificultou muito sua vida precisar pagar uma dívida que não era sua, além dos custos para manter ele próprio e a irmã. Quando um homem de cabelo longo e azul, que se autodenominava Buggy, apareceu junto a alguns comparsas exigindo que ele pagasse um valor exorbitante, Zoro conseguiu convencê-lo de ficar pagando uma taxa mínima mensal.
Zoro não percebeu, mas esse convencimento só deu certo graças ao rosto ameaçador que herdara da mãe, de seu porte musculoso devido aos trabalhos braçais e a sua presença alfa que estremeceu aqueles aspirantes a mafiosos.
Para salvaguardar a irmã dessa realidade complicada, ele nada contou a ela. Não explicou o desaparecimento do pai, não falou uma palavra sobre a situação financeira. Na primeira oportunidade entrou em contato com uma tia que morava em outra cidade e a enviou para lá, procurando deixar Kuina a salvo de qualquer chance de sair ferida. Ela era uma beta de futuro promissor e Zoro ia garantir de um jeito ou de outro que ficasse bem.
Mesmo se fosse preciso atender as ordens de mafioso qualquer.
Chapter 2: J’adoube
Chapter Text
O choro falsamente histérico ecoava de maneira irritante pelo galpão vazio, fazendo Vinsmoke Sanji ter vontade de finalizar tudo o quanto antes. Olhou para o homem que implorava no chão, ladeado por dois de seus subordinados, sem demonstrar qualquer sombra de piedade. Era um alfa de baixo nível que sumira com algumas bolsas de dinheiro lavado e, quando ameaçado de ter o corpo jogado para alimentar os peixes, passou a implorar vergonhosamente pela vida.
Bellamy, ao lado direito do homem, controlava a vontade de esmurrá-lo só para fazê-lo parar de berrar. Uma veia salientava-se abaixo da tatuagem no braço graças ao punho cerrado que mantinha quieto em um duro esforço. Já do lado esquerdo do homem estava Hewitt, de óculos escuro e um 21 tatuado acima da sobrancelha direita parecendo sempre muito sério e soturno. Entre eles estava o ladrão: um alfa de cabelos raspados que tentou forçar uma intimidação ao ser capturado, mas a sua dominância era fraca e se dissipou assim que lhe foi pressionada uma arma na cabeça.
A quinta e penúltima pessoa que compunha o grupo presente dentro do galpão era Gin, com olheiras permanentes marcando o rosto entediado e uma faixa listrada ao redor da cabeça. Estava ali como mero observador por mais que tivesse uma posição importante dentro do grupo Baratie.
— Eu juro que não foi eu! Uma hora as bolsas estavam lá e no outro tinham sumido! — choramingou o homem, em seguida apontando para a mulher que estava a poucos passos dele. — A culpa é dessa vadia! Ela queria que eu a comprasse da casa de massagem, estava o tempo todo planejando se aproveitar de mim. Me escondeu que tem dois filhos pequenos, aposto que tinha tudo planejado desde o começo!
A mulher, que era sua amante há poucos meses, ficou consternada com as palavras dele. Tinha sido arrastada até ali por estar presente na hora errada, mas não esperava por uma acusação do tipo. Ela, confusa e assustada, não conseguiu formular resposta alguma. Apenas ficou encarando-o com evidente espanto.
Sanji que acompanhava o choro com mais paciência do que aparentava, precisou intervir. Podia sim andar em um caminho turvo na vida, mas jamais permitiria uma mulher ser desrespeitada dessa forma. Então, foi até a mulher e curvou-se cavalheiresco. A meio caminho tinha retirado as costumeiras luvas negras para poder tocar a mão dela com a sua e dar um suave beijo.
— Sinto muito que tenha sido envolvida nisso e que ainda tenha que ouvir tais acusações. Mas não tema, sabemos quem é o verdadeiro culpado. — passou o braço nos ombros dela, enquanto a guiava para fora dali. — Aquele cafajeste não lhe merecia, com certeza sua beleza é digna de alguém que a devote.
Já na saída do galpão, Sanji chamou o subalterno que guardava o carro no qual viera. Não se lembrava o nome do sujeito, mas também não se esforçava para aprender nome de todos os homens a mando de seu pai.
— Leve essa jovem dama para casa. — disse, usando um tom mais afável para não deixar a mulher mais assustada do que já estava.
A mulher não parecia muito convencida de que sairia dali de modo tão simples, talvez suspeitando que acabaria dentro do cimento junto com seu, agora, ex-amante, mas agradeceu baixinho a Sanji antes de se deixar ser conduzida para o carro.
Sanji permaneceu onde estava até o automóvel preto sumir de seu campo de visão, aproveitando para retirar um cigarro do bolso e acender. Antes teve o cuidado de recolocar as luvas, pois ainda precisava lidar com o sujeito que roubou o dinheiro. Tragou suavemente, permitindo o corpo desfrutar dos efeitos da nicotina sem pressa.
Passara a semana ocupado procurando os responsáveis por aquele desvio. Em geral as pessoas não eram idiotas o suficiente para roubar da máfia, mas um grupo quis provar que era hábil e roubou uma boa soma de dinheiro destinado a um acordo entre o grupo Baratie e outro grupo mafioso. Os culpados até que ocultaram seus passos decentemente, pois não foi fácil para Sanji encontrar pistas. Porém, um deles cometeu o erro de voltar para reaver um quadro deixado com a amante e um dos homens que estava vigiando o capturou.
Sanji voltou para dentro, o som de seus passos sendo o único som ecoando além dos pingos de algum acúmulo da chuva de horas antes. O homem capturado não chorava mais, por certo achando que a mentira tinha sido convincente o suficiente para salvar sua pele. A expressão no rosto de Sanji, entretanto, não podia ser descrita como benevolente. Ele olhou para o alfa com tanto desprezo que o outro se sentiu ameaçado, reagindo raivosamente apesar do tremor no corpo.
— Quem é você pra me olhar dessa forma? Eu já ouvi falar de você! Um maldito ômega que vende o corpo para manter a posição. Eu não tenho medo de você! — vociferou em tal intensidade que gotículas de saliva alcançaram os sapatos lustrosos de Sanji.
Os dois subordinados presentes, Bellamy e Hewitt, agarraram o homem pelos ombros com brutalidade.
— Mostre algum respeito, seu... — Bellamy interrompeu-se quando viu um simples gesto de mão partir de seu superior, dispensando a represália.
Diferente dos outros dois, Sanji não esboçou qualquer reação raivosa. Ao invés disso, o sorriso manteve-se em seus lábios ao liberar seus feromônios em tal intensidade que se o alfa fraco não estivesse sendo segurando pelos outros dois, teria despencado no chão. Sanji deu dois passos em direção ao ladrão e agarrou os cabelos dele com firmeza para que não parasse de encará-lo. E então, sem aviso prévio, pressionou a ponta acesa do cigarro sobre uma das pálpebras do alfa que, por sorte, conseguiu fechar o olho a tempo.
O grito cortou o ar de modo tão súbito quanto a ação de Sanji anterior, o que o satisfez. Preferia o grito no lugar da choradeira ou das justificativas mentirosas de antes. Quando afastou o cigarro para admirar seu feito, o alfa arfava penosamente.
— Lembre-se deste ômega maldito quando quiser responsabilizar alguém pelo sofrimento que passará. — sugeriu, jogando o cigarro destruído fora. Largou também os cabelos dele com certa expressão de asco. Mesmo estando de luvas, por ela ser de um material mais fino, pode sentir a textura dos cabelos do ladrão. — Mandem-no para Kuro. E avisem que preciso dessas informações até amanhã de manhã.
O encontro para a entrega do dinheiro e para as civilidades ensaiadas entre os grupos mafiosos ocorreria dentro de uma semana, mas quanto antes resolvessem aquilo, melhor. Sem precisar de uma segunda ordem, Bellamy e Hewitt arrastaram o alfa para fora, ignorando os novos choramingos e súplicas que este exprimia. Gin permaneceu onde estava, com as mãos do bolso e lançando um olhar crítico para Sanji.
Mas Sanji não se intimidou com a censura dele.
— Pague as dívidas daquela mulher e destrua o registro dela dessa casa de massagem.
Gin manteve o olhar de reprovação.
— Até quando pretende ajudar toda mulher com dificuldades que aparecer na sua frente? Você não é responsável pela desgraça alheia e não somos uma organização beneficente, Sanji.
Sanji fez um meneio, acendendo um novo cigarro. Gin era um dos homens de extrema confiança de Zeff — o chefe atual do grupo Baratie e também seu pai — e de tempos em tempos era colocado para acompanhá-lo. Um espectador das atividades de Sanji, por assim dizer.
— Não posso evitar de ser um cavalheiro, mas claro que você não entenderia. Isso requer bons modos arraigados na alma.
Gin suspirou. Não se deixaria irritar pela provocação barata.
— O pagamento dessa mulher também vai sair de seu pagamento. Nesse ritmo de ajudar todo mundo, quem vai adquirir dívidas é você.
— Apenas ajudo mulheres. E as vezes crianças. Não sou um santo, como bem sabe.
— Soube que mudou os termos de pagamento de um tal Roronoa. — ergueu uma sobrancelha, numa pergunta implícita. — Pelo o que ouvi ele não era nem mulher, nem uma criança desafortunada. Deveria ficar de olho nele?
Sanji, que já ia em direção a entrada do galpão, acenou de costas. Seu interesse pelo alfa chamado Zoro tinha sido realmente inusual, mas poucos alfas conseguiam demonstrar tanta raiva quando afetados pelos seus feromônios de ômega dominante. Foi apenas um capricho seu, pois adorava um desafio. E também por motivos escusos.
— Diga para o velhote parar de se preocupar. Vai acabar ficando careca. — riu. — E você também, Gin.
*
Quando o assunto do dinheiro desaparecido foi solucionado, Sanji aproveitou para finalmente ligar para o alfa que roubou sua atenção. Em geral não gostava deles, eram pedantes ou imersos numa ilusão de uma destinada superioridade, mas algo em Zoro lhe atraiu. A fúria crua em seu olhar quando Sanji ameaçou — mesmo que sem real intenção — de ferir a irmã dele, o modo como quase se livrou dos dois homens betas que o seguravam, a tentativa de resistir a seus feromônios. Naquele momento percebeu que Zoro faria de tudo pela irmã, que a zelava pelo bem dela. Ou pelo menos era o que parecia.
Foi com o objetivo de ver até que ponto ele abdicaria de seu ego de alfa pelo bem da família que Sanji mudou as regras. Ainda não estava com um plano definido, mas tentaria perturbá-lo do jeito que fosse, testá-lo. E não, definitivamente não havia a menor chance de Sanji ter se sentido comovido com o histórico de vida de Zoro ao investigá-lo antes de tomar a dívida das mãos de Buggy. Não havia espaço em sua vida para sentir pena de homens, mas queria ver até que ponto este conseguiria ir até se mostrar o verdadeiro hipócrita que com certeza era.
Alfas, num geral, não conseguiam manter essa farsa por muito tempo. Por mais que mascarassem sua natureza, mais cedo ou mais tarde revelavam a podridão que habitava em si.
Buscou o número do Roronoa entre a papelada de informações que um encarregado tinha reunido e o discou, lançando um olhar para o teto. O pequeno lustre estava em tempo de uma limpeza, notou. Poeira se acumulava nas lágrimas e esferas de cristal ao ponto de começar a fazer manchas serem refletidas nas paredes com a potência da luz. Mas como não passava muito tempo em seu próprio lar, custava a perceber esses detalhes.
Quando se deu conta a ligação caiu sem ter sido atendida e a voz feminina mecânica informou sobre a possibilidade de deixar mensagem de voz. Mirou a tela do celular. Sua ligação tinha sido rejeitada? Sem acreditar nisso ligou novamente, dessa vez mais atento ao som, mas a ligação aguardou o tempo máximo de ser atendida e a voz mecânica repetiu a sugestão de mensagem de voz.
Sanji cobriu os olhos com a mão livre, rindo com incredulidade. Quanto tempo fazia desde que alguém não atendia uma ligação sua, no máximo, ao segundo toque? Talvez no começo, quando ainda era um novato no grupo, seus companheiros demoraram um pouco para lhe dar o devido valor... De qualquer modo, isso não ficaria assim. Sanji colocou os dados do endereço no gps e pegou as chaves do carro. Se ele não queria atender, então lhe faria uma visita surpresa.
Durante todo o trajeto pensava em maneiras diferentes de fazer novas ameaças para colocá-lo no lugar em que merecia, abaixo de seus pés, mas perdeu as palavras ao ver o buraco onde o Roronoa vivia. Afinal, não dava para chamar aquele cubículo aos fundos de uma oficina mecânica de moradia. O cheiro de óleo de motor e borracha queimada ultrapassava a porta fina que ligava os dois ambientes. Do outro lado da porta só havia um único cômodo apertado que servia de quarto/cozinha/sala, além de um banheiro minúsculo anexado.
Por questão de pouco espaço, também não havia muitos móveis. Sanji andou pelo cômodo com cuidado para não esbarrar nas coisas, procurando onde poderia se sentar para esperar, pois Zoro ainda não tinha chegado. Acabou sentando no sofá cama coberto por um tecido azulado puído que talvez fosse usado como cobertor na hora de dormir.
Naquele ambiente claustrofóbico e de higiene duvidosa, foi inevitável para Sanji se sentir um pouco mal pela situação do outro. Ele já tinha visto situações variadas de devedores, a maioria acabava indo morar com alguma namorada ou familiar quando a situação apertava, mas ali estava um homem que parecia ter passado por bastante dificuldades, ainda persistindo em morar sozinho e sem fugir das dívidas. Inconscientemente Sanji aumentou um pouco a consideração por ele, mesmo que Zoro permanecesse sendo um detestável alfa.
Porém quando Zoro chegou — cansado e com fome —, nenhum traço dessa estranha consideração se mostrou no rosto de Sanji. Ao invés disso ele deu um sorriso zombeteiro, acendendo um cigarro mais por hábito do que vontade imediata de fumar.
— Roronoa Zoro. — Zoro ficou parado junto a porta, encarando-o de volta em silêncio. Sanji, então, continuou — Não atendeu quando te liguei. Devo considerar isso como uma desfeita sua?
As sobrancelhas de Zoro se uniram em um sinal de confusão.
— Você que não me ligou. Eu teria visto, adicionei seu número. E como entrou aqui?
Sanji deu de ombros.
— Já estava aberto. — informou, erguendo uma sobrancelha encaracolada. — Te liguei duas vezes hoje e nas duas não fui atendido. Posso ter passado a imagem errada de complacência ao mudar sua forma de pagamento, mas não sou tão tolerante assim, Roronoa. Não teste minha paciência.
A linguagem corporal de Zoro ficou ainda mais ouriçada, como um animal irritado que se esforçava para se conter.
— Você não me ligou. — repetiu ele com assertividade.
Sanji perdeu um pouco da pose severa quando percebeu a firmeza no tom. Será que havia telefonado errado? Não lembrava de ter conferido o número antes de pressionar o ícone verde. Tirou o celular do bolso e ligou uma terceira vez para o número mais recente da seção de últimas chamadas. Poucos segundos um toque polifônico padrão começou a ecoar do bolso de Zoro e ele o pegou, confuso. Sanji cruzou o cômodo em passadas largas e tomou o celular da mão dele. Na tela havia o número do ômega sem estar nomeado.
— Mas eu salvei seu número... — Zoro coçou a nuca.
Sem fazer comentários ou pedir permissão, Sanji deslizou o dedo para abrir os contatos do celular alheio e procurou sem próprio nome na lista. Não foi difícil achar, pois só havia oito contatos ao todo. Selecionou seu nome e verificou o número registrado, logo encontrando o problema.
— Você errou três números. Quando telefonei seu celular não reconheceu o número certo. — baforejou sem se preocupar em estar em um ambiente fechado ou com a óbvia careta que o outro fez. — De qualquer modo, mesmo sem ter meu nome, você deveria ter atendido.
— Hm. Ache que era o maldito bar de nudistas me ligando de outro número.
Ambos se encararam. Zoro sem jeito pelo erro bobo e Sanji surpreso pela incompetência inesperada. Além disso, um bar nudista estava incomodando-o ao ponto dele rejeitar qualquer ligação de números desconhecidos? Conhecia alguns bares desse estilo, então imaginava bem o porquê de Zoro estar sendo tão procurado. Uma vontade de rir brotou no fundo da garganta, mas Sanji a conteve. A imagem de Zoro entregando bebidas em uma bandeja, vestindo nada mais que um tapa-sexo pipocou em sua mente. Pigarreou, devolvendo o celular.
— De qualquer modo, aproveitei que estava por perto para vir avisar sobre os novos termos do pagamento. A parcela mensal será dividida em duas a partir de agora. Pode conferir os valores aqui.
Zoro pegou o papel que Sanji tirou do bolso e lhe estendeu. Nele havia os valores das parcelas divididas e instruções para colocar as notas dentro de um envelope pardo e entregá-lo para Sanji quando este lhe chamasse. Diferente de contratos impressos e feitos com cautela, aquele papel não passava de um rascunho escrito de caneta azul às pressas. Parecia até que Sanji o escrevera ali mesmo, pouco tempo atrás. Além disso, Zoro podia até ser ruim de cálculo, mas olhando rápido algo no valor das parcelas menores não parecia encaixar com o valor do combinado anterior.
— Já que estamos entendidos me atenda da próxima vez. Em breve chamarei para o primeiro pagamento desse mês. — disse e saiu de lá, passando pela oficina e tomando rumo para onde seu carro estava estacionado.
Ao chegar no carro, entretanto, ele não entrou de imediato. Primeiro porque ainda estava terminando de fumar e segundo porque mal conseguia acreditar que quase riu na frente do sujeito alfa que deveria intimidar. E não teria sido um riso de escárnio como ele estava acostumado a dar, mas sim um genuíno riso divertido. Como alguém conseguia errar não só um, mas três números de um telefone que estava impresso em um cartão? E ademais, ainda estava sendo incomodado por um dono de bar nudista que com certeza queria usá-lo para atrair clientes. Que espécie de alfa era aquele?
Agora que não havia testemunhas, Sanji deu uma risada curta para o céu.
Chapter 3: Garfo
Chapter Text
Apesar de levemente perturbado pela situação em que Zoro vivia — ele não conseguia ser imparcial diante a possibilidade de alguém passar fome —, Sanji não se impediu de prosseguir com seus caprichos. Decidiu por iniciar com algo mais leve para parecer amistoso aos olhos do alfa que queria desmascarar. Escolheu um clube de alto padrão onde a maioria das anfitriãs eram ômegas (mas não somente, pois haviam mulheres betas e alfas também) e mandou uma mensagem com instruções para Zoro comparecer lá assim que saísse do novo trabalho. Era o clube mais famoso do seu território e também o mais difícil de se conseguir uma entrada. Para Sanji, é claro, a passagem era sempre livre, pois era ele o protetor autointitulado daqueles tipos de estabelecimento.
Chegou cedo ao local para verificar se tinham atendido sua petição, mas já estava tudo do jeito que pedira. O clube normalmente era requintado, mas em dias de comemoração o lugar ficava ainda mais bonito. Os enfeites tinham sidos substituídos por elementos dourados, lustres grandiosos pendiam do teto e um pianista tocava ao vivo. O ambiente parecia digno da vinda da realeza, Sanji não duvidava que estar em tal lugar faria o ego do alfa de cabelos verdes subir nas alturas.
Satisfeito, sentou-se em um dos sofás e aguardou a chegada do outro.
— Por que está tão interessado nesse homem? Está fazendo isso tudo por tédio? — questionou Gin que estava sentado em um sofazinho adjacente ao de Sanji, bebendo água com gás pois estava dirigindo. Ele viera sem ser convidado ao entreouvir Bellamy comentando sobre a preparação que Sanji encomendara.
O Vinsmoke verificou o relógio de pulso. Estava perto de Zoro chegar.
— Não estou tão interessado. E me admira você ter tempo de se preocupar com meu tédio quando tem tanto assunto do velho pra resolver e ainda dois filhos para criar. Sua esposa vai acabar te deixando.
Gin suspirou.
— De fato, sou um homem ocupado, então por favor pare de preocupar Zeff. A oferta para você recomeçar a vida em outro lugar ainda está aberta, você sabe.
Sanji deu um sorriso que mal alcançou os olhos, observando o movimento tranquilo do clube. Não importava quantos anos se passassem, Zeff sempre lhe tratava como ainda fosse alguém a ser protegido. Era uma prova, acima de tudo, de sua amabilidade como pai. Infelizmente, não havia para onde Sanji pudesse fugir mesmo se desejasse por essa opção. A sombra que o cercava já penetrara muito fundo de si para conseguir viver como alguém ordinário na sociedade, alheio a podridão em torno.
E se a corruptividade em sua alma já era uma mancha permanente, então era ali que pertencia.
— A minha resposta permanece a mesma.
Gin não respondeu, ficando quieto ao dar um novo gole em sua água com gás. Ele não parecia que sairia dali tão cedo, então Sanji apenas o ignorou enquanto esperava os minutos finais antes da aparição de Zoro.
Entretanto, ao completar duas horas após o horário combinado, Sanji suspeitou que o alfa não tinha intenções de comparecer. O primeiro insulto tinha se mostrado ser uma pequena confusão com números e o assédio de um bar, mas este segundo não poderia ter uma explicação plausível, poderia? Sem perceber Sanji batia o pé impacientemente no chão, enquanto fingia prestar atenção em um jogo de cartas que duas garotas disputavam na mesinha a sua frente.
Começava a pensar em como o puniria pelo insulto quando viu Zoro ser guiado pela recepcionista para dentro do salão principal. Diferente do primeiro dia, que Zoro estava usando um macacão de construção civil com o zíper aberto até a metade revelando a regata por baixo, dessa vez ele vestia um terno básico preto — da marca mais barata do mercado popular — por estar trabalhando como segurança em uma boate famosinha das redondezas. Admitiu a contra gosto que a vestimenta lhe caia bem, mas, claro, não tão bem quanto esse estilo de traje combinava com o próprio Sanji, que estava em um bonito traje azul.
Ao vê-lo se aproximar percebeu que Zoro estava um pouco suado, mas seu olhar não vacilou ao encontrar o de Sanji. Talvez houvesse, de fato, uma explicação cabível para o atraso. A recepcionista deixou-os para voltar a seu posto e Zoro continuou em pé diante de Sanji. Em seguida estendeu o envelope pardo com a taxa do mês.
Sem muito interesse Sanji pegou o envelope e o deixou sobre a pequena mesa de vidro.
— Roronoa. Está atrasado.
A resposta foi curta e rápida:
— Me perdi.
Sanji perscrutou a expressão dele em busca de sinal de mentira, mas só viu uma estoicidade irritante. Como um homem daquele se perdia em um trajeto de duas ruas de diferença entre a boate e o clube? Pigarreou para disfarçar o princípio de um sorriso. A irritação pela demora ainda estava presente, porém os absurdos que envolviam Zoro faziam a situação ganhar certo tom de divertido, por mais louco que pudesse parecer.
— Suponho que mesmo morando neste bairro há vários anos, ainda não tenha tido tempo de se habituar a estas ruas. — Havia certa nuance de constrangimento no modo como Zoro apertou os lábios e se forçou a manter o olhar no de Sanji. Cruzou as pernas e indicou o lugar vazio ao seu lado no sofá — Sente-se. Beba comigo.
Ao se sentar, depois de considerar a ordem por meio segundo, ficou óbvio o quanto Zoro estava desconfortável. Sanji não entendeu esse comportamento, então sinalizou discretamente para duas moças se aproximarem dele, imaginando que Zoro queria companhia. Uma das mulheres se moveu para trás do sofá, repousando as mãos nos ombros fortes e começando uma massagem lenta. A outra tentou se sentar no colo de Zoro, mas antes que ela conseguisse concluir a ação, ele a empurrou para que sentasse no espaço vazio ao lado direito. Sem ficar desestimulada, a mulher circundou o braço de Zoro e o pressionou contra os seios volumosos.
— Há muita tensão em seus ombros, aposto que há mais músculos enrijecidos em todo seu corpo. Quando foi a última vez que relaxou?
Zoro não respondeu, mas a dupla não desistiria tão fácil de iniciar uma conversa. Estavam habituadas a lidar com tímidos e taciturnos. Uma terceira mulher se aproximou e serviu uma taça de vinho para cada um deles, deixando a garrafa na mesa antes de se retirar.
— Preciso concordar com ela — disse a segunda mulher, pressionando deliberadamente os dedos ao longo do braço de Zoro. — Seus braços são bem fortes. Trabalha com algo que exige essa musculatura incrível?
Por algum motivo Zoro não parecia disfrutar da atenção que as belas ômegas estavam lhe dedicando, parecia até mais desconfortável e deslocado do que quando chegara ali. As mulheres continuaram enveredando uma conversa quase unilateral, dando-se por satisfeitas quando ele respondia com um murmúrio ou respostas monossilábicas. Sanji quase sentiu pena delas, mas deleitava-se assistindo o desenrolar da cena.
Uma segunda garrafa foi deixada sobre a mesinha de vidro e embora Zoro estivesse bebendo consideravelmente, não demonstrava sinais de alteração pelo álcool. Com uma pequena troca de olhares com a moça morena sentada junto a Zoro, Sanji indicou que ela prosseguisse com o combinado. A mão dela desceu sem preâmbulos para a coxa forte, subindo lentamente os centímetros em direção a virilha, mas Zoro apenas pegou a mão dela e tirou dali. Aquele clube de anfitriãs não era do tipo que fornecia serviços sexuais. Era, de fato, apenas um clube para jogar conversa fora, ser um pouco bajulado pelas anfitriãs e ter bebidas de qualidade. Mas Zoro não precisava saber disso.
— O que está achando daqui? — Sanji perguntou em certo momento, quando percebeu que não estava conseguindo as reações desejadas.
O outro lhe deu um olhar desconfiado, como se tudo aquilo fosse uma piada de mal gosto. E de certo modo, era.
Ah, aquilo não deveria estar sendo tão divertido.
— Brilhoso demais, mas a bebida é boa.
Sanji pensava sobre essa resposta simples quando um cliente iniciou uma balbúrdia em um dos sofás mais distante. O homem vestia roupas de marca famosa, embora não ficasse tão bem nelas. Com um impulso do pé derrubou a mesinha diante o sofá onde estava, levando ao chão tudo que estava em cima dela. A garrafa e a maioria das taças rolaram sobre o carpete felpudo, mas uma delas caiu direto no chão polido e se estilhaçou. O homem estava trôpego pela quantidade de álcool consumida e emitia uma aura de irritação, era mais um exemplo de alfa que se achava no direito de exigir algo.
— Eu já disse que pago o valor que quiser. Tenho muito dinheiro! — exaltou-se tirando a carteira do bolso e jogando-a na mulher loira que era o alvo da intimidação. — Acha que uma vadia como você pode rejeitar meu dinheiro? Depois de todas as bebidas que paguei e do apoio financeiro que dei a essa espelunca? Praticamente sou eu que banco esse lugar!
Sanji não reagiu. Por mais que o lugar fosse cuidadoso na seleção de clientes, as vezes acontecia de um grão de má qualidade passar despercebido na vistoria. Aquela não era a primeira nem seria a última vez que precisariam lidar com clientes ruins. Porém, foi com surpresa que viu Zoro se preparar para ir na direção do homem que pretendia agredir uma das funcionárias do clube. Impediu-o de se levantar segurando-o pelo ombro e fazendo um sinal para que permanecesse quieto.
Zoro franziu o cenho, confuso pela interrupção, mas Sanji sabia o que acontecia com quem desrespeitava as regras do clube e esperou que a cena explicasse por si só. Como previra, o homem não teve sequer chance de encostar na moça loira antes de ser derrubado no chão com golpes precisos de autodefesa e ser contido onde estava por outras duas funcionárias.
O claquear dos saltos de Nami, a dona do clube, surgiu das escadas que levavam ao escritório no andar de cima, o som sendo amplificado devido o silêncio dos demais clientes. Ela, também ômega, caminhou lentamente em direção ao homem retido no chão, olhando-o com desgosto.
— Aparentemente houve um equívoco aqui, sr. Kumatsu. O valor doado que mencionou, em nenhum momento o senhor foi obrigado a isso, não chega nem perto do valor de nossos maiores investidores. Ademais, valor algum tornaria possível serviços sexuais, visto que não somos esse tipo de estabelecimento e preservamos, acima de tudo, o bem-estar de nossos funcionários. Esclarecido isso, a partir de agora o senhor está permanentemente proibido de entrar no Oásis. — disse, em seguida ordenando que duas mulheres altas o jogassem porta a fora. — E não esqueçam a carteira. Não precisamos desse tipo de dinheiro.
Após isso o lugar voltou ao normal, com conversas amenas em uma agradável meia-luz e música suave. Ninguém comentou o ocorrido, mas a mensagem estava clara: as funcionárias também podiam e iriam se defender quando necessário. Zoro ficou visivelmente orgulhoso da atitude daquelas mulheres, embora não as conhecesse de fato. Pessoas que demonstravam ter atitude subiam muito em sua estima. Ao seu lado, Sanji o observou atentamente durante todo o ocorrido, mas Zoro não entendeu essa atenção exagerada. Tomaram mais algumas doses de álcool e, por fim, Sanji o liberou para ir embora.
*
No pagamento seguinte Sanji marcou para a entrega ocorrer durante uma partida de luta livre que acontecia ilegalmente no subsolo de um antigo teatro. Ele achou que a explicação sobre Zoro ter se perdido da última vez fosse mentira, então colocou um homem no encalço dele na noite combinada para verificar os fatos. Entretanto, Zoro chegou com uma hora de atraso e, por meio de mensagem, o homem que o seguira desde a saída do emprego temporário de segurança, informou que Zoro tinha ficado circulando erroneamente por tanto tempo que ele não resistiu e acabou se revelando para guiá-lo para o local certo.
Sanji fechou o celular e colocou no bolso, avistando Zoro se aproximar com dificuldade graças aos assentos quase todos preenchidos com pessoas que torciam animadas. Um dos homens da arena foi jogado ao chão com um golpe que era marca registrada do outro lutador e a plateia agitou-se, dificultando ainda mais o progresso que Zoro tomava entre as fileiras. Por fim, quando chegou perto o suficiente, ocupou a cadeira vazia ao lado de Sanji depois de um simples gesto indicativo deste. Não precisou falar e mesmo se tivesse tentado, mal teria sido ouvido por causa dos gritos e vaias ao redor.
A maioria dos esportes de luta legais possuíam uma alta dose de encenação, mas ali, nos ilegais, era possível ter o tipo de distração com violência genuína que as pessoas precisavam. Era o ambiente ideal para alfas que possuíam uma tendência natural a gostar de agressividade e sangue, talvez gostassem mais disso do que de sexo. E foi por esse motivo que Sanji escolheu encontrá-lo naquele evento.
Desviou o olhar do homem que cuspiu um dente dentro do ringue — particularmente achava esse tipo de entretenimento animalesco pouquíssimo atrativo — e examinou de soslaio a expressão do Roronoa. Os olhos escuros de Zoro observaram com atenção a movimentação ao redor antes de enfim encarar o ringue. Entretanto, sua feição tornou-se desinteressada em questão de segundos. Sanji franziu o cenho. Seria suas reações desinteressadas uma simulação? Teria Zoro percebido que Sanji apenas queria despertar o pior dele?
— Saudades do período que lutava? — perguntou quando o barulho abaixou para um nível tolerável.
Zoro uniu as sobrancelhas numa expressão questionadora, mas apenas bufou antes de responder. Ainda estava se acostumando a ideia de alguém saber tantos detalhes de sua vida sem essa informação ter sido dada por ele próprio.
— Não.
— Vi alguns vídeos. Você lutava bem e estava conseguindo uma boa fama, mas parou de repente. Por quê?
Uma nova onda de gritos e vaias surgiu quando um dos lutadores agarrou o outro em uma chave de braço bem executada. Zoro cruzou os braços pensando nas suas antigas lutas enquanto esperava o barulho diminuir. Era verdade que ele ganhara uma boa grana e seguiu invicto mesmo depois da oitava luta, mas sua irmã lhe flagrou com um olho inchado e roxo quando veio em sua visita surpresa e implorou para que parasse de fazer seja lá o que estivesse deixando-o em tal estado.
Kuina não sabia todos os detalhes sobre o desaparecimento do pai e as dívidas herdadas por Zoro, mas procurava não incomodar muito já que seu irmão se recusava a esclarecer suas dúvidas. Ela foi tão categórica e trouxe tantos motivos para Zoro não se envolver com atividades que o lesionassem intencionalmente que ele se viu obrigado a ceder a suas exigências. Kuina sempre fora boa com palavras.
— Kuina pediu.
Sanji ficou paralisado por um momento, encarando-o boquiaberto. Então Zoro tinha desistido da luta e do dinheiro razoável que ganhava só porque a irmã não o queria fazendo aquilo? Ele era do tipo de irmão que fazia tudo o que a irmã ordenava? Imaginou Zoro de joelhos enquanto Kuina repreendia-o, mandando que parasse de lutar e ele acatando obedientemente a ordem. Seria ele um sis-con?
Aquela cena imaginária junto a resposta dita no costumeiro tom sério do outro foi demais para Sanji, que inclinou a cabeça para a frente e cobriu a boca com uma das mãos enluvadas, tentando reter a risada que imergia de seus lábios. A risada, apesar de abafada também pelos gritos de comemoração da luta recém terminada, atraiu a total atenção de Zoro.
Quando parou de rir e enxugou uma lágrima no canto do olho, percebeu o olhar dele sobre si. Tossiu, retomando o controle de suas feições e se levantou para ir embora. A luta tinha se mostrado mais uma tentativa falha, não havendo mais sentido permanecer por mais tempo naquele ambiente tão pouco interessante e fedendo a excitação de alfas.
— Com suas habilidades poderia ter sido recrutado facilmente por alguma equipe oficial de artes marciais. — comentou numa última tentativa de interessar o Roronoa. Mas Zoro apenas bocejou, entediado. — Nos vemos no próximo pagamento.
*
Para prevenir atrasos, Sanji o buscou em seu carro ao final do expediente de faxineiro em uma pequena escola de natação. O seu problema de senso de direção parecia ser considerado bastante incomodo pelo mafioso, mas Zoro achou estranho receber carona mesmo assim. Já tinha sido chamado algumas vezes para se encontrar com Sanji e até o momento não entendera aonde aquele homem queria chegar. Primeiro o ômega exigiu que o pagamento fosse entregue pessoalmente, depois decidiu que a entrega seria feita em duas parcelas durante o mês e agora Sanji o levava para fazer visitas a pontos estranhos como o clube cheio de mulheres e a arena de luta clandestina. Zoro não tinha especial apreço por essas saídas e até preferia se envolver o mínimo possível com gente da máfia, mas havia o detalhe daquele loiro saber tudo sobre sua irmã.
Zoro praguejou, olhando através da janela sem prestar realmente atenção ao trajeto. Devia haver algum motivo obscuro por trás das ações desse ômega, Zoro só não sabia qual era e nem o porquê de ter sido escolhido. Tentou chegar a alguma conclusão conversando com colegas do trabalho — sem mencionar que era ele próprio que estava na situação ou que a máfia estava envolvida —, mas somente recebeu respostas baseadas em experiência de filmes. Segundo Yosaku, um colega faxineiro da escola de natação, esses convites e insistência em ver pessoalmente só podia significar uma coisa: ele estava sendo cortejado. Zoro não acreditou muito nisso na hora, mas começou a duvidar quando o carro parou no estacionamento do lugar que visitariam àquela noite e Sanji borrifou perfume no corpo dele sem aviso prévio.
— Você cheirava a cloro. — Sanji disse simplesmente, saindo do carro.
Zoro, aturdido pelo súbito cheiro floral impregnado em sua pele e roupa, seguiu o outro pelo estacionamento, indo em direção a entrada de um dos maiores cassinos da região. A fachada não era grande coisa, mas dentro era tudo brilhante e ostentoso, lembrando a Zoro do clube chique de anfitriãs mestres na autodefesa. E assim como no clube, Sanji parecia conhecer bem aquele ambiente e as pessoas que ali frequentavam, pois enquanto passeava entre as mesas de jogos, várias pessoas o cumprimentavam com respeito.
Após um momento com Sanji dando uma apresentação rápida do lugar e do funcionamento do cassino, eles encostaram em uma mesa de roleta para jogar. Um funcionário do cassino apareceu pouco depois trazendo algumas poucas fichas e deslizando-as diante Sanji, que agradeceu o gesto.
— Crocodile envia saudações, sr. Vinsmoke. Por conta da casa. — disse ele antes de desaparecer.
Havia mais duas pessoas juntas a essa mesa, um homem beta de meia-idade vestido como se fosse o próprio Al Capone e uma mulher alfa de cabelo trançado que mal tirava os olhos de cima de Sanji. O crupiê de expressão neutra informou que podiam iniciar as apostas e Sanji pousou os olhos azuis em Zoro. Um suspeito sorriso benevolente nos lábios.
— Escolha um número para mim, Roronoa.
O alfa ficou desconfiado. O histórico de dívidas de jogos de seu pai o fizera ter um péssimo sentimento com apostas, mas apontou um número qualquer só para não prolongar aquilo. As palavras de Yosaku sobre Sanji estar cortejando-o, por algum motivo, não saía de sua cabeça. Mas a que fim um cortejo levava? Duvidava que aquele loiro quisesse um relacionamento amoroso, então ele queria apenas seu corpo? Era o motivo mais provável, mas se esse era mesmo o caso não teria sido mais fácil pedir direto para terem sexo? Demorar-se em um cansativo cortejo parecia uma grande perda de tempo para Zoro.
A mulher alfa ganhou a primeira rodada e comemorou com um gritinho, e na rodada seguinte Sanji pediu novamente para Zoro escolher um número. Ele assim o fez, embora um desconfortável sentimento de estar desperdiçando dinheiro tenha se acomodado dentro dele. O que era uma tolice, pois o dinheiro usado ali não lhe pertencia e parecia ter sido dado de cortesia a Sanji pelo dono do cassino. Bufou quando o ganhador da segunda rodada foi o homem beta. O crupiê empurrou as fichas apostadas para o ganhador e de repente Zoro cansou daquele jogo.
Perder dinheiro lhe incomodava, o olhar do crupiê que parecia julgar sua aparência lhe enervava e não aguentava mais tentar entender o comportamento daquele mafioso que adquiriu o direito de suas dívidas herdadas. Além disso, Zoro estava começando a se sentir inadequado naquele lugar. Como estivera trabalhando na escola de natação antes de ser levado ali, ele não tivera tempo de vestir algo mais apresentável do que uma camiseta azul e uma bermuda verde-musgo — não que tivesse roupas boas o suficiente para se igualar ao projeto de Al Capone à mesa, por exemplo. Quando a mulher não estava devorando Sanji com os olhos, olhava Zoro dos pés a cabeça antes de dar um sorriso repleto de escárnio.
Ademais, aquelas saídas aparentemente casuais lhe deixavam incômodo. Preferia que a relação entre eles fosse do modo mais impessoal possível, então se Sanji estava fazendo tudo aquilo por desejar seu corpo, Zoro resolveria depressa para voltarem a simples relação de endividado e cobrador de dívidas.
— Quando vamos transar? Prefiro parar com essas... — ele gesticulou para a mesa de jogos e para o ambiente ao redor. — ... Besteiras. Não preciso de cortejo, não sou uma princesa.
Os olhos de Sanji se arregalaram tanto com as frases ditas em alto e bom som que Zoro pode ver com detalhes a íris azulada. Os dois competidores e o crupiê piscaram desconcertados.
— Que... Do que você está falando? — Sanji conseguiu dizer depois de ter se recuperado do choque. Seu tom demonstrava certo espanto.
— Me levando para encontros, me oferecendo bebidas e toda essa baboseira de cortejo. Se queria foder era só ter falado.
Sim, isso resolveria tudo. Depois que transassem ele perderia o interesse em Zoro e voltariam ao normal. Contudo, por um momento achou ter interpretado algo errado, pois o Vinsmoke demorou muito a dar uma resposta. Mas quando um sorriso malicioso brincou nos lábios do outro, soube que não estivera errado.
Sanji levantou-se, informando que encerraria suas jogadas na roleta.
— Vamos para um quarto, então.
Chapter 4: En passant
Chapter Text
Sanji suspeitava que houvesse algum problema com a cabeça daquela alfa e talvez estivesse certo, pois somente assim para concluir tão erroneamente que Sanji queria seu corpo. Cortejo? Quando dera a entender isso? Seu objetivo ao levar Zoro para lugares de cobiça, luxúria e violência nada mais era do que fazê-lo se comportar como o animal descontrolado que era no interior. Afinal, Sanji já havia presenciado desgraças o suficiente para saber que alfas eram todos iguais, por mais que disfarçassem bem sua natureza abjeta.
Em uma sociedade de merda que passou séculos tratando os alfas como superiores, a desigualdade tornou-se tão crítica e absurda que revoluções foram inevitáveis. No fim restou aos ômegas e betas lutarem para desmistificar a ideia de alfas serem inatos a soberania social, rompendo velhas tradições e forçando os políticos a tomarem as medidas cabíveis pelo bem da sociedade como um todo. Entretanto, esse tipo de pensamento supremacista era como uma erva daninha impossível de eliminar por completo, principalmente por ter se propagado aos quatro ventos por um tempo tão longo.
Por mais que a sociedade atual se autointitulasse como avançada e diferente, o comportamento preconceituoso ainda permeava a população, em especial entre os alfas que repetiam entre si sobre sua dita proeminência como se fosse um mantra. Eles eram mais espertos, mais hábeis, mais forte e consequentemente destinados a grandeza. Ou pelo menos era isso que acreditavam com um fervor similar ao de líderes religiosos.
E ainda que o mundo fosse podre e os alfas fossem detestáveis, a vida reservava surpresas agradáveis de vez em quando. Um exemplo delas era Zoro, um alfa bem atípico no quesito esperteza. Afinal, não é qualquer um que conseguia errar três números de um telefone, perder-se com uma facilidade absurda em um curto trajeto de duas ruas, e concluir de súbito que está sendo cortejado. Dentro de todas as possibilidades a última com certeza era a de desenvolvimento mais inesperado.
Bom, se Sanji fosse um pouco mais sincero talvez admitisse ter um ou dois subplanos onde havia a potencialidade de um desenvolvimento erótico, embora nenhum deles envolvesse relações sexuais entre Zoro e o próprio Sanji. Se possível ele queria que Zoro caísse em alguma armadilha de sedução de alguma pessoa previamente selecionada, mas o alfa parecia imune a esse tipo de investida. Seria por essa razão, por todos os comportamentos inusitados, que Zoro atraía a atenção de Sanji? Nem ele próprio saberia responder, apenas sabia que um interesse que surgiu como implicância e até raiva pelo alfa que parecia resistente aos seus feromônios estava virando algo além de curiosidade.
Sanji ativou a chama do isqueiro para acender um cigarro, sorrindo diante a ironia. Mais cedo, pego de surpresa, Sanji só conseguiu achar que era um estranho blefe que Zoro estava fazendo. E curioso para saber até onde ele iria antes de voltar com a palavra, Sanji seguiu com a correnteza. O cassino disponibilizava alguns quartos em um prédio anexo e foi para lá que Sanji o levou. Pediu um dos quartos que disponibilizava uma variedade de acessórios e seguiram em silêncio para lá.
Quando ambos já estavam dentro do quarto, informou para ele que desejaria utilizar alguns apetrechos para a ocasião. Imaginava que ao ser visto pegando uma corda, Zoro iria reclamar. Mas para sua surpresa ele acatou com um murmúrio ininteligível, embora a linguagem corporal demonstrasse algo de rigidez quando começou a tirar as roupas. Estaria ele aceitando tudo aquilo ainda pensando no bem estar da irmã? Sanji quis parabenizá-lo por ser um irmão tão exemplar.
Então mansamente Zoro fez tudo o que ele pediu. Bom, mansamente talvez não fosse bem a palavra certa. Havia contrariedade evidente em seu rosto e podia notar sua mandíbula travada enquanto enlaçava-o com a corda, mas o alfa não pronunciou negativa alguma.
Quando aprontou tudo, Sanji se afastou para avaliar o trabalho. Em cima da cama jazia Zoro de olhos vendados e nu, os pulsos pendendo amarrados da cabeceira da cama. As pernas estavam afastadas uma da outra e firmemente dobradas — a perna unida a coxa forte — graças a um belo trabalho com cordas (que evitava apertar as articulações para não causar danos), deixando-o exposto de uma forma que Zoro não devia estar acostumado, pois Sanji viu um leve rubor em seu rosto enquanto o prendia. Duas correntes finas de metal desciam da coleira de couro no pescoço, ligando a coleira a prendedores de pontas emborrachadas que apertavam os mamilos no peito moreno. Por último, mas não menos importante, um plug anal, bastante untado com lubrificante, fora enfiado com cuidado em seu ânus e vibrava suavemente.
Sanji sentou em uma cadeira estofada que tinha o mesmo tom roxo escuro dos lençóis da cama, cruzando as pernas. Zoro estava tão à sua mercê que não conseguiu evitar o sorriu que lhe subiu aos lábios. Era extremamente gratificante ver um alfa de tão alto calibre exposto e submisso numa cama de hotel.
Um pensamento surgiu. Para aceitar com tanta naturalidade suas demandas, talvez ele fosse acostumado a isso. Seu sorriso diminuiu e ele estalou o isqueiro para acender um cigarro.
— Tem alguém te esperando fora da cidade, Roronoa? Talvez onde sua irmã mora? — em cima da cama, Zoro franziu o cenho sem responder. A pergunta talvez não tivesse sido muito clara. — Um namorado, noiva ou algum amante em particular?
Ele podia não ser um alfa muito inteligente, mas aquele corpo e aspecto certamente atraía alguns pares de olhos interessados. O próprio Sanji viu-se tentado a tocar a pele marrom que estava a mostra de tão bom grado.
— Ninguém. Estou trabalhando quase todo o tempo... — respondeu ele, numa voz que quebrou-se na última letra, pois Sanji aumentou a vibração do plug sem aviso. Zoro apertou os lábios para não emitir som, mas o pênis rígido entre suas pernas denunciava sua falsa indiferença.
Sanji expirou calmamente a névoa branca para só então apertar o botão para diminuir a intensidade. Sem conseguir ficar mais tempo longe, ele levantou-se da cadeira e se aproximou da cama, rodeando-a como um leão cerca a presa incapacitada. Uma gotícula de suor escorreu pelo pescoço largo e seus olhos a seguiram até sumir atrás da coleira de couro. O corpo de Zoro arrepiou-se como se sentisse sua presença e quando Sanji voltou a falar, ele não se assustou com a voz circunjacente.
— Já esteve em situação parecida, Roronoa? A mercê das vontades de alguém? — Sanji mexeu distraidamente um dos prendedores de mamilo em Zoro e em resposta o outro mordeu os lábios, negando com a cabeça.
O olhar azulado cintilou. Zoro poderia estar mentindo, mas por algum motivo Sanji acreditou nele. O alfa mostrara um olhar relutante indisfarçável antes de ser vendado e amarrado, e juntando isso com os músculos retesados só podia concluir que foi à custa de bastante esforço que ele se deixou ser subjugado de tal forma. Os dedos encobertos por luvas negras coçaram desejando tocar o corpo alheio. O que era incomum, pois pouco se interessava por tais contatos. Suportava tocar a mão de mulheres diretamente com a sua, mas quase nunca tocava em homens. Apenas pensar em tocá-los causava ânsia de vômito; possuía uma coleção e tanto de luvas, que utilizava não importando qual fosse a situação, justamente para prevenir toques inconvenientes. Por esse motivo — e também pelo preconceito para com alfas — jamais tivera amantes. Seu cio era fortemente controlado por medicamentos pouco indicados por médicos convencionais, pois se recusava a precisar de alguém nesses momentos de fragilidade. Até os galanteios que ocasionalmente dedicava às mulheres não passava de mera bravata.
Então porque justo esse alfa desmiolado parecia lhe despertar algo? De tantas opções, dentre muitos betas e ômegas interessantes, porque justo Zoro conseguira ultrapassar a barreira que construíra há tantos anos? Ele não entendia, mas procurou não pensar com profundidade sobre isso. Não queria dar mais sentido àquele encontro casual do que realmente merecia. O que importava é que havia desejo em si e pretendia investigar até que ponto conseguia avançar além de seus limites.
Mas, antes, precisava averiguar algo mais. Desligou as vibrações do plug em Zoro e tragou mais um pouco do cigarro.
— Roronoa Zoro, está de acordo com o que faremos a seguir dentro desse quarto de hotel? Talvez pareça tarde, mas não pretendo forçá-lo se não quiser verdadeiramente.
Ambos ficaram quietos por um instante, mas ao ver que Zoro iria assentir com um meneio da cabeça, Sanji segurou firme o queixo com seus dedos enluvados.
— Fale. — o hálito de tabaco fez Zoro franzir o nariz. — E seja sincero.
Tudo na expressão de Zoro, das sobrancelhas unidas aos lábios crispados, dizia o quanto ficou contrariado com o tom de ordem, mas apesar dos sentimentos e desejos divergentes, ele se viu respondendo pouco depois:
— Sim, estou de acordo.
Sanji sorriu, satisfeito. Liberou o queixo e deslizou o polegar pela bochecha dele com surpreendente gentileza. Entretanto a ansiedade de tocá-lo permanecia em seus dedos protegidos pelo couro preto. Afastou-se da cama para depositar o cigarro em um cinzeiro na mesa, aproveitando para religar, na intensidade máxima, a vibração do plug. Um ruído roufenho escapou de Zoro, que se moveu na cama dentro das limitações que as cordas em suas pernas e em seus pulsos lhe impunham.
Distraído pelo ruído, Sanji retirou as luvas sem perceber. Deixou que mais um pouco de feromônios flutuassem pelo ar do quarto, mas não do modo intenso que costumava usar para subjugar alguém e sim apenas o suficiente para gerar alguma reação no alfa amarrado. Sobre os lençóis Zoro virou o rosto vendado em sua direção como se pudesse rastreá-lo — e provavelmente podia mesmo.
Parando ao lado da cama, Sanji observou-o sem pressa. A pele um pouco úmida de suor, as pernas amarradas, os pulsos pendurados na cabeceira da cama, os olhos que permaneciam vendados. Engoliu em seco, sentindo o próprio corpo começar a reagir ao cheiro da excitação do alfa. Em resposta liberou mais feromônios, deleitando-se com o resmungo dado pelo outro enquanto que o pênis dele gotejava sem parar. Subiu de joelhos na cama, erguendo a mão hesitante em direção ao corpo de Zoro. Porém, a hesitação durou pouco, pois logo espalmou a mão no abdômen firme.
Sanji não saberia dizer o que mais o surpreendeu: se a falta de nojo que costumava sentir ou o sobressalto de Zoro ao menor toque. De qualquer modo, a reação lhe agradava. Sorriu travesso, percorrendo a pele marrom com seus dedos pálidos, divertindo-se um pouco ao mexer nos prendedores de mamilo. Zoro seguia mordendo os lábios para impedir os sons de saírem e procurando fazê-lo parar de conter os gemidos, Sanji abaixou o rosto e lambeu a porção de pele entre a coleira e a linha da mandíbula por onde a gotícula de suor tinha percorrido momentos antes. Zoro não gemeu por isso, mas quando Sanji desceu a boca e mordeu com força o seu ombro... Ah, isso lhe tirou do voto de silêncio.
— Até que enfim uma reação apropriada. — soprou junto a orelha de Zoro, percebendo, com surpresa, ele se arrepiar inteiro.
As reações dele eram tão maravilhosas... Uma das mãos que descansava na curva da cintura, deslizou até o peito para circular o mamilo recém liberto do prendedor. Mas os dedos não eram suficientes, então Sanji dirigiu os próprios lábios para aquele mamilo já avermelhado e rígido, sugando-o e lambendo-o com vontade.
A provocação foi bem recebida se os grunhidos de Zoro fossem um bom indicativo. Sob seu toque, o alfa arfava e voltava a morder os lábios, ação essa que já começava a irritar Sanji. Não queria que ele maltratasse os próprios lábios quando Sanji estava ali para fazer isso por ele. Decidido a impedir que essas mordidas continuassem, ele atacou a boca alheia com a sua. Primeiro mordeu e puxou o lábio inferior, que já exibia um pequeno corte, para em seguida iniciar propriamente o beijo.
Zoro não reclamou do trato rude em seus lábios, nem mesmo rejeitou a língua que invadiu sua boca com tanta impetuosidade. Em vez de repelir, ele retribuiu sugando-a prontamente, além de forçar os pulsos amarrados como se quisesse tocar o ômega. Ao perceber isso Sanji felicitou-se por tê-lo amarrado antes, pois não desejava ser tocado. Era ele quem estava no controle e assim permaneceriam até que se sentisse satisfeito.
Comprovou isso ao continuar a lenta incursão de toques apreciativos pelos músculos do abdômen, correndo os dedos pelo caminho de pelos que surgia um tanto abaixo do umbigo, mas desviando-se do lugar que mais interessava no último instante. Em vez de ir direto ao ponto, Sanji apertou a parte da coxa onde não havia cordas, arranhando a pele marrom com suas unhas curtas enquanto, com os dentes, puxava o lóbulo no qual havia furos de brincos. Sentia uma vontade imensa de mordê-lo o máximo possível. O que era curioso, pois nunca imaginou que seria tomado pelo súbito desejo de deixar suas impressões em alguém.
Seu próximo passo foi envolver com a mão, finalmente, o pênis que gotejava e espalhar o pré-gozo dele por toda a extensão em uma vagareza torturante. Ao mesmo tempo voltou a atenção aos lábios que descobrira gostar muito, levando os dedos da mão livre para a nuca de Zoro e puxando o cabelo verde com força para que os lábios fossem oferecidos tal como um altar os deuses, sendo o próprio Sanji o deus que tomou sua boca com sofreguidão.
A mão que envolvia o pênis continuava com movimentos sutis de subida e descida, as vezes dando atenção a glande sensível ou as vezes pressionando sua extensão com um pouco mais de força, causando estremecimentos no corpo musculoso. Quando a cadência aumentou de leve e o corpo de Zoro deu sinais de que iria alcançar o clímax, Sanji parou todo e qualquer estímulo, pressionando a fenda na glande para que nada saísse por ela.
— Ainda não te dei permissão para gozar. — advertiu Sanji, aproveitando a pausa para encaixar um anel peniano ali.
— Mas que merd...
A mesma mão que ainda repousava próxima a sua virilha voltou a apertar o pênis e Zoro deu um gemido estrangulado.
Ficaram quietos e parados, o peito do Roronoa subindo e descendo enquanto normalizava a respiração. Sua boca estava torcida pela frustração e as sobrancelhas unidas. Sanji poderia ter prolongado essa tortuosa provocação, testando as reações e paciência do alfa, mas até ele estava com o corpo quente desejando alívio.
Exalando uma nova onda de feromônios, Sanji passeou com os dedos pelo anel peniano, descendo para acariciar os testículos e por fim deslizando pelo períneo até encontrar a reentrância desejada. Puxou o plug — já desligado há algum tempo — para fora e afastou-se o suficiente para ver a bagunça que Zoro estava. O suor brilhando da pele marrom marcada por mordidas, o peito amplo que subia e descia numa fúria silenciosa, a boca um tanto inchada pela pressão dos dentes e dos beijos nada suaves.
Sentir o calor de Sanji se afastar, mesmo que minimamente, fez Zoro soltar um quase rosnado de protesto; ato esse que reverberou por Sanji e este substituiu, prontamente, o espaço vazio deixado pelo plug pelos seus próprios dedos longos embebidos de lubrificante. Pego de surpresa, Zoro deu um ofego mudo, novamente forçando os pulsos amarrados, mas não o suficiente para rompê-las.
Após verificar que o alfa estava mais do que preparado para recebê-lo — tudo o que ele não queria era acabar provocando feridas sérias —, Sanji desabotoou a calça que ainda sufocava sua ereção e direcionou o pênis para a entrada relaxada. Ele, então, arremeteu com força, sabendo ter feito o correto quando Zoro deu um gemido alto e rouco, tombando a cabeça para trás. Nesse momento Sanji quase se arrependeu dele ainda estar com os olhos vendados, mas ao menos Sanji não precisava fingir que o cheiro de sexo e excitação de Zoro não lhe afetava. Ele próprio sentia o sangue correr ardente nas veias, o suor umedecendo sua camisa.
Afrouxou a gravata, enquanto com a outra mão afastava a franja da testa. Aquele imprevisto exercício corporal ainda duraria algumas horas e até lá, Sanji retiraria o que restava de roupa em seu corpo e também parariam um pouco para tomar água.
Ao fim, esgotados e satisfeitos, Sanji se levantaria para pegar uma tesoura sem ponta previamente separada para cortar as cordas em Zoro. Depois tiraria o excesso de sêmen no corpo dele com uma toalha úmida, mas o alfa mal registraria seus cuidados pós-sexo, pois estava cansado demais para se atentar a essas coisas.
*
A mera lembrança do dia no cassino fazia uma sensação esquisito imperar em Zoro. Quando foi levado para o quarto e Sanji começou a atá-lo com cordas, mal conseguia compreender o que estava se passando. Quando menos esperou, já estava vendado, amarrado e com um objeto vibratório enfiado cuidadosamente no lugar onde nunca havia recebido algo semelhante na vida. Ele não era tão experimentado e jamais se interessou tanto pelo assunto, mas em suma não eram os ômegas que desejavam ser tomados? Viu isso em alguns filmes e em relatos entreouvidos durante os trabalhos que fizera.
Independentemente do que o mundo considerava mais convencional, naquele quarto quem estava no comando era o ômega dominante de insuportáveis olhos azuis. Zoro, então, foi tomado por Sanji até se sentir exaurido e as pernas ficarem doloridas devido a posição e pressão das cordas. Quando tudo acabou sua garganta ardia e o corpo estava pegajoso de suor e sêmen. Seus olhos piscaram aturdidos quando a venda foi retirada de súbito, levando automaticamente a mão recém liberta para barrar a luminosidade de chegar a sua visão.
Acabou cochilando enquanto esperava o outro desocupar o banheiro para que ele próprio pudesse ir se livrar da sujeira. O cansaço após um dia de trabalho extenuante e os exercícios intensos na cama, foram o suficiente para lhe fazer imergir em um sono leve. Teve a impressão de alguém ter limpado o sêmen grudento em seu abdômen e de ter sentido o calor de alguém deitado no lado vazio da cama, mas depois disso o sono leve virou um profundo e ele nada mais percebeu. Somente despertou bem tarde do dia seguinte, sem sinal de Sanji pelo quarto além do bilhete em cima da mesinha de cabeceira.
“O quarto está pago, durma o quanto quiser. Logo mais entro em contato”, dizia o bilhete. Não havia assinatura, mas não havia dúvidas de que a mensagem era de Sanji.
Por algum motivo Zoro se sentiu sujo e usado ao se ver sozinho em um quarto de hotel que ainda cheirava a sexo. Mas esperava o que? Que o outro ainda estivesse ali esperando-o acordar para talvez conversarem sobre a loucura da noite passada? Zoro não via aquilo como nada mais do que sexo casual e não deveria se sentir surpreso pelo ômega ver da mesma forma. Então, tomou um banho quente para retirar quaisquer resquícios de cheiros em sua pele e partiu do hotel ainda com os cabelos úmidos, indo trabalhar com as mesmas roupas do dia anterior, pois estava atrasado.
As marcas das cordas que prenderam seus pulsos e as mordidas por todo seu corpo perduraram por quase uma semana, mais tempo do que imaginava que levaria para todas sumirem. Contudo, o que mais lhe irritou foi a falta de voz que persistiu por dois dias completos. Ao que parecia tinha gemido e grunhido tanto que as suas cordas vocais inflamaram o suficiente para não funcionar bem. Talvez tivesse se recuperado mais rápido caso não estivesse fazendo jornada dupla e assim mal tendo tempo para descansar. Cedo da manhã ia para a escola de natação e só saia as 16 horas, mas logo se apressava para ir para o segundo trabalho, o de segurança em boate, onde permanecia até as 2 da madrugada.
De qualquer modo, sua rotina logo tirou aquele último acontecimento da sua cabeça. O objetivo do cortejo de Sanji já tinha sido alcançado, então ele supunha que não seria mais arrastado para saídas semanais ou que o ômega quisesse prová-lo uma segunda vez. Não era belo, nem intrigante o suficiente para gerar tanto interesse por parte de Sanji. Sabia quão superficial era o relacionamento entre os dois e ficou um tanto menos incomodado agora que voltaria a vê-lo para unicamente entregar o dinheiro da parcela da dívida.
Quando a voz estava recuperada e mal se viam sinais das marcas na pele, seus dois chefes, coincidentemente e de súbito, lhe deram três dias seguidos de folga. Zoro estranhou a coincidência, mas não reclamou. Podia aproveitar esses três dias para arranjar algum bico rápido para arrecadar dinheiro extra, quem sabe pudesse comprar algumas grades de cerveja com isso. Voltou para casa com a intenção de dormir mais um pouco antes de procurar algum serviço pelo bairro, mas assim que passou pela porta de sua apertada moradia, avistou um convidado indesejado sentado sobre seu sofá-cama.
— O que faz aqui? — havia mais surpresa do que hostilidade em seu tom, embora não gostasse da casualidade que o outro expressava ao invadir sua casa. Bom, chamar de casa talvez fosse um exagero.
Sanji bloqueou o celular e o enfiou no bolso interno do paletó. Em seguida apontou para as sacolas sobre a mesa que Zoro ainda não tinha percebido.
— Trouxe comida. Imagino que alguém do seu tamanho coma bastante, então trouxe uma boa quantidade.
Zoro estreitou os olhos, desconfiado. Era muito improvável o mafioso estar fazendo uma boa ação tão espontânea, então ele suspeitou que de algum modo aquilo fosse ser acrescentado a sua dívida já tão extensa. Apesar disso, Zoro se aproximou da mesa e investigou o conteúdo das sacolas, encontrando várias caixas de comida chinesa e algumas latas que a princípio achou ser de cerveja, mas depois percebeu ser de bebida energética. Zoro fez uma careta, pegando uma das latas.
— Isso é uma porcaria, nem deveria se chamar bebida e, sim, de dinheiro mal gasto.
Sanji deu de ombros, nem um pouco surpreso pela sua reação.
— Você precisa de energia para o que vem depois.
A frase dita sem complemento imediato fez o alfa ter um pensamento arguto. Estaria Sanji planejando repetir o feito no dia do cassino...? Não. Não poderia ser isso, não é? O lance de cortejo estava encerrado entre eles. Ou seria...? Mas o pensamento se perdeu quando Sanji continuou a falar depois de se levantar e andar um pouco pelo pequeno ambiente.
— Esse muquifo, digo, lugar assombra meus pensamentos desde que vim aqui a primeira vez. É preciso ter alguma atitude sobre essa imundíce... — ele gesticulou amplamente, indicando o lugar inteiro.
Zoro, que jamais admitiria o choque com a quebra de expectativa, franziu as sobrancelhas. O ômega falou como se o lugar fosse insuportável de tão sujo, mas ele não conseguia ver qual era o problema. O ambiente estava sim um pouco sujo, mas não ao ponto de ser considerado abominável. Zoro vivia bem ali do jeito que as coisas estavam e não tinha tido problema algum até o momento. Bom, só teve uma situação onde precisou lidar com uma ratazana que arrancou um pedaço da sua porta do banheiro, mas isso já fazia algumas semanas.
— Faremos uma faxina. — concluiu Sanji. Apontou para outro conjunto de sacolas que Zoro não tinha avistado, essas estavam no chão aos pés da pia, voltando a sentar no sofá-cama. — Todos os materiais necessários estão aí.
Zoro deveria ter desconfiado que o “faremos” não foi usado no real sentido de plural quando, após comer todas as caixas de comida chinesa (não rejeitaria comida gratuita), Sanji começou a mandar e desmandar sobre os passos de limpeza que Zoro devia seguir, mas sem mostrar sinais de que contribuiria fisicamente em algo. Sanji apenas saiu temporariamente do sofá-cama quando Zoro precisou espanar e varrer o pequeno espaço da sala, e quando quis observar de perto o alfa limpando o fogão elétrico de duas bocas.
Além disso, havia apenas um par de luvas de borracha e um avental dentre os muitos produtos de limpeza nas sacolas — Zoro se recusou a usar o avental. Ele parou de esfregar os azulejos do chuveiro e olhou duro para o homem que o assistia da porta.
— Você não vai ajudar em algo?
Parecendo esperar por aquela pergunta, Sanji piscou com uma ensaiada inocência.
— E por que eu o faria? Quem mora aqui é você, não?
Rangendo os dentes, Zoro nada pôde retrucar. Voltou a esfregar os azulejos com maior afinco graças a raiva que sentia, porém, mais tarde quando fosse dormir, acabaria chegando à conclusão que dormir em uma casa cheirando a produto de limpeza não era tão ruim assim.
*
Depois da visita de Sanji para lhe obrigar a fazer faxina, Zoro imaginou que só o veria no próximo pagamento já que agora não havia mais motivos para se encontrarem antes disso. Mas aparentemente o ômega gostava de contrariar suas previsões, pois no seu terceiro dia de folga, Sanji reapareceu na entrada da oficina mecânica. Sem maiores explicações, Zoro foi levado para o centro comercial e arrastado de uma loja a outra, carregando sacolas e mais sacolas de compras para Sanji.
Em dado momento achou ter sentido uma presença de alguém os seguindo, mas podia ser paranoia sua. Contudo, mesmo depois de irem em três lojas de roupas em pontos diferentes, a presença não desapareceu. Não sabia quem era o covarde que observava à distância, mas a persistência começava a irritá-lo. Então, aproveitando que Sanji flertava com a atendente de uma loja de perfumes, ele largou as sacolas ali perto e saiu casualmente como se procurasse a fachada de uma loja em específico.
Antes de tomar qualquer atitude, precisava saber quem era o alvo do perseguidor: ele ou Sanji. Para isso colocou as mãos nos bolsos e seguiu pela rua movimentada, aparentemente distraído com um chiclete na sola do tênis. Sentiu a presença segui-lo pouco depois de ter avançado na calçada, descobrindo que era realmente o alvo. Não fazia ideia do que essa pessoa poderia querer com alguém sem dinheiro e sem status, mas ele seguiu fingindo não ter se dado conta. Quando passou por uma ruela sombreada e deserta, ele entrou e esperou que o perseguidor aparecesse.
Um homem surgiu assim como o previsto e Zoro o agarrou pela gola antes que o sujeito tivesse tempo para se surpreender, pressionando-o contra a parede suja do beco.
— O que quer comigo? — ele inquiriu baixo, mantendo o outro firme contra a parede.
O homem usava uma faixa de listras horizontais rodeando o cabelo e possuía as olheiras mais terríveis que Zoro já viu na vida. Fora isso usava roupas casuais discretas o suficiente para ninguém reparar e possuía um físico que poderia ser descrito como não-exatamente-musculoso. Segundo o ponto de vista de Zoro o homem, que intuiu ser beta, não representava perigo, mas por desconhecer o motivo de estar sendo seguido continuou atento. E por estar alerta, conseguiu desviar, no último instante, do ataque surpresa que o outro desferiu com uma tonfa oculta na roupa folgada.
Zoro se afastou em um salto, sorrindo selvagem quando percebeu um filete de sangue escorrer de onde a ponta metálica da tonfa passou de raspão em seu rosto. Por mais que ele não fosse do tipo que buscava desesperadamente por uma luta, não ia ignorar quando ela vinha de tão boa vontade a seu encontro. Era cedo da tarde, o sol ainda iluminava bem e havia um constante movimento de pessoas na larga avenida adjacente ao beco onde estavam. Alguém poderia flagrá-los e chamar a polícia, mas Zoro não se importava e aparentemente seu oponente também não, visto que adotava uma pose de combate ao retirar uma segunda tonfa metálica da roupa.
— Você tem ótimos reflexos. — o desconhecido elogiou.
Zoro girou um dos ombros com o pescoço inclinado ligeiramente para o lado e fechou os punhos, preparado para a briga.
— Boas tonfas essas aí.
O homem levantou uma sobrancelha, dando um olhar de relance para a próprias tonfas que reluziam na luz do entardecer.
— Normalmente eu as dispensaria para lutar de igual para igual, mas... Seus punhos não podem ser comparados aos meus, não é? — olhou-o de cima a baixo com olhar clínico de quem sabe avaliar qualidades e fraquezas. — Já pensou em entrar para a máfia, rapaz? Nosso grupo o receberia bem...
O homem mal pôde compreender o que se passava, pois em um momento realizava um convite e no outro tropeçava para trás devido ao soco preciso que recebeu no rosto. A cabeça mareou, confuso pelo ataque rápido. A lateral do rosto onde foi atingido logo começou a arder, o homem teve certeza que voltaria para casa com a cara inchada e possivelmente arroxeada. Quando pensou em erguer as tonfas para contra-atacar, voltou a ser prensado contra a parede por Zoro com mais rudeza do que antes. O antebraço de Zoro prensava sua clavícula sem moderação, mas tinha sorte dele não ter ido direto em seu pescoço. Ao menos os ossos por si só podiam oferecer alguma resistência, mesmo que temporário.
Sendo beta não era capaz de reconhecer totalmente as minúcias dos hormônios e de auras — certas percepções cabiam apenas a alfas e ômegas —, mas não pôde encontrar outra justificativa senão essa quando sentiu uma pressão sufocá-lo e uma apreensão crescente, inusual, recobrir seu corpo como um manto invisível.
— Nunca farei parte da máfia — respondeu Zoro em uma voz grave. Alguém que o conhecesse melhor poderia afirmar ter certo rancor em seu tom.
O homem já nem lembrava da pergunta feita a poucos instantes, então demorou a fazer a ligação. Seria esse o motivo de sua raiva súbita? Antes de conseguir refrear, perguntou outra vez.
— Tem certeza? Seria um desperdício continuar nesses empregos temporários tendo a habilidade inata para a luta... Poderia, inclusive, superar sua mãe.
As linhas do rosto de Zoro exprimiam bem a raiva que sentia com a mera suposição de se unir a máfia, mas a menção de sua mãe... Ah, aquilo era mais do que raiva. O homem deve ter percebido essa mudança sutil, pois lutou contra a pressão que o imobilizava e trouxe as tonfas para a frente do corpo, pronto para se defender ou ao menos tentar.
Entretanto, a luta, que poderia ter terminado muito mal devido a ira do alfa, pôde ser evitada quando um terceiro elemento — presente até então apenas assistindo a cena — atingiu um chute certeiro na lateral do corpo de Zoro, jogando-o alguns metros na direção do final do beco.
Ali de pé, com as mãos casualmente nos bolsos da calça social cinza, Sanji os avaliava com calma nos olhos azuis. Voltou-se para o homem que a pouco estivera encurralado.
— Gin. Explique-se.
Agora a salvo, o beta chamado Gin abaixou as tonfas com um suspiro.
— Não pretendia me revelar, mas ele tem uma percepção apurada. — apontou para o homem mais afastado. — Ter alguém como ele ao seu lado seria bastante útil.
Zoro se levantou com uma das mãos tocando a região das costelas, lugar onde tinha recebido o chute. Piscou com o cenho franzido. Aquele chute forte tinha sido dado por Sanji? Em seu raciocínio tinha classificado-o como alguém de poder dentro da máfia, mas que não possuía força física para o combate. Uma ideia equivocada, talvez até preconceituosa. Como era que sua irmã dizia? “Não pré-julgue alguém pelo gênero secundário!”, alguma frase assim.
Voltou a se concentrar nos outros dois bem no momento que Sanji inquiriu com uma suavidade suspeita:
— Não desvie do assunto. Está aqui a mando de Zeff?
Gin suspirou novamente, negando.
— Foi iniciativa própria. E falei sério sobre ele ser útil ao seu lado, mas o erro foi meu de mencionar sua mãe. — finalizou a frase encarando o alfa, claramente sem jeito pela situação anterior. — Só queria verificar quais eram suas intenções com Sanji, ele é como um filho para mim.
Tanto Sanji quanto Zoro ficaram emudecidos encarando o beta que devolvia as tonfas aos esconderijos sob a roupa folgada. Nenhum deles esperava por essa justificativa tão... dissonante? Aquele grupo mafioso, o Baratie, era muito estranho se comparado aos estereótipos construídos nos filmes de organização criminosa.
Sanji tossiu.
— Dois filhos não são suficientes para você, Gin? Agradeço a preocupação, mas sei cuidar de mim. — virou-se para sair do beco, antes gesticulando para Zoro segui-lo. — É melhor se apressar em colocar gelo nisso ou seus filhos vão se assustar quando olharem para você.
Percebendo que não havia com o que se preocupar sobre Gin (e também um pouco desconfortável com o descontrole que protagonizou), Zoro deu um cumprimento curto para o beta e saiu no encalço do outro que não diminuiu o passo para esperá-lo.
Voltaram para a loja onde os pacotes tinham sido guardados pela atendente e em seguida visitaram o estabelecimento das ômegas lutadoras de artes marciais. O lugar estava completando dois anos de funcionamento e Sanji, como o Don Juan que era, levou presente para cada funcionária de lá. Beijou a mão de cada uma, encheu-as de elogios, parabenizou o trabalho do clube e, por fim, deixaram um cheque assinado na mão de uma satisfeita Nami.
Somente ao saírem Zoro percebeu a tensão que o deixou. Dentro do clube sentiu-se inibido diante tantos olhares cautelosos dirigidos a si. Ômegas femininos e masculinos vigiavam-no descaradamente, passando a mensagem de que ao menor comportamento inadequado eles reagiriam. Zoro não tirava a razão deles, até porque há pouco tempo foi a prova viva de alfa tomado pela raiva. Deu de ombros. Pelo menos agora estava livre para voltar para casa e, quem sabe, dormir o resto de seu último dia de folga.
Mas foi só se virar para partir que Sanji chamou sua atenção outra vez.
— Para onde acha que vai? Você ainda tem uma última tarefa antes de ser dispensado.
Cansado de tentar entender os objetivos daquele homem, Zoro resmungou impropérios e seguiu-o até o carro estacionado. Imaginou que seria levado para algum outro lugar estranho, talvez um sushi-bar onde servissem o sushi em cima de corpos humanos nus ou um lugar que oferecesse rodízio de bebidas alcoólicas (ele na verdade gostaria de ser levado nesse último), mas ao ver que iam a caminho de um bairro de classe média alta, estranhou. Ficou ainda mais cismado quando entraram no estacionamento subterrâneo de um edifício de arquitetura chique.
— Por que estamos aqui? — indagou quando entraram no elevador espelhado.
Sanji sorriu para ele de um modo cínico, mas nada respondeu. Esperou até entrarem em um apartamento do oitavo andar — Zoro quase esbarrou na mesinha com um vaso de planta que havia na entrada por estar distraído com o ambiente luxuoso — e então apontou para a área de serviço logo após passarem pela cozinha.
— Gostei muito da faxina que fizemos no seu... lar. — o sorriso cínico não estava mais em seus lábios, mas havia um brilho inegável de diversão no olhar. — Por isso faremos faxina no meu apartamento também.
Tendo a experiência do primeiro engodo, Zoro não se deixou enganar pelas palavras ditas no plural por Sanji. Quando o ômega surgiu em sua moradia dizendo que fariam uma faxina juntos, acabou que Zoro fez tudo só. E isso havia acontecido a apenas 2 dias atrás, não tinha nem risco de ter esquecido. Por isso não se surpreendeu quando Sanji sentou-se em uma poltrona de couro e ficou de pernas cruzadas, bebericando uma taça de vinho enquanto assistia Zoro esfregar o chão.
Entre muitos resmungos, caretas irritadas e palavrões, Zoro limpou o que estava dentro de sua, recém imposta, habilidade de limpar. Não sabia se Sanji pegou leve com ele — algo difícil de acreditar de alguém que reclamava o tempo todo e demandava passo-a-passo — mas a limpeza não foi tão detalhista quanto na sua casa. Após terminar de espanar os móveis (o lustre incluso), varrer e esfregar o chão, polir um estranho enfeite no quarto e tomar banho, foi informado que estava livre para ir embora.
Zoro parou próximo ao balcão americano estando ainda com os cabelos e dorso úmidos. Saiu da suíte onde se banhara, trajando apenas a calça e uma toalha sobre os ombros por questão de praticidade, e foi direto buscar o ômega responsável por suas dívidas. Encontrou-o de costas junto ao fogão, mexendo algo na frigideira que chiava. Pelo cheiro supôs tratar-se de omelete, confirmando as suspeitas ao ver um prato com alguns rolinhos já prontos e cortados. (Sanji cozinhava sem luvas, percebeu).
Ele deve ter feito algum ruído, pois Sanji olhou-o de esguelha de repente.
— Achei que sairia correndo assim que fosse liberado. — comentou o ômega, curioso. — Sente e coma já que ainda está aqui. Uma pequena recompensa por ter trabalhado duro.
Zoro poderia ter negado, não lhe agradava a ideia de compartilhar uma refeição com aquele homem, o máximo que tinha dividido com ele tinha sido algumas garrafas de vinho no clube Oásis e isso era mais impessoal do que dividir uma refeição de verdade. Entretanto, viu-se sentando e comendo os rolinhos de omelete sem reclamar. Estava com fome, era verdade, mas o verdadeiro motivo para estar se demorando ali tornou a deglutição um pouco difícil.
Por mais que tenha comido com uma vagareza inusual, Zoro inevitavelmente terminou com a omelete e a tigela de arroz que lhe foi oferecido. Observou Sanji retirar os pratos e lavá-los sem pressa. Depois o outro apoiou o quadril na bancada da pia e cruzou os braços, olhando diretamente para Zoro, que permanecia sentado. Um silêncio estranho reinou, com o olhar de Sanji transmitindo bem pouco de seus pensamentos. Não que Zoro pudesse captar algo, pois ele próprio tinha emoções estranhas para lidar.
— Pelo o que está esperando, Roronoa? Está livre para sair daqui. Posso até pedir um táxi para você caso não saiba se locomover no bairro.
Zoro contraiu o cenho, pensando seriamente na pergunta. Não poderia ser objetivo demais na resposta, porque isso faria parecer que ele expectava por algo indecente e isso não era verdade. Mas o que poderia concluir quando alguém com quem já teve relações sexuais lhe pede para tomar banho de repente? Parecia lógico o propósito daquilo tudo, até da desculpa esfarrapada do apartamento chique estar precisando de faxina. O lugar mal tinha sujeira! Que tipo de banheiro não tinha uma manchinha de lodo?
Não, certamente Sanji gostara tanto de provar de seu corpo que estava esperando a próxima oportunidade para atacá-lo. E, como já se era sabido, ele não estava em posição de recusar. Na primeira faxina se enganou sobre as segundas intenções do ômega, mas agora não tinha como estar errado, não era?
Então por que parecia que estava sendo dispensado? Zoro praguejou. Só podia ser algum tipo jogo psicológico onde além de ficar recuado — não que ele, de fato, se sentisse dessa forma — Sanji ainda queria que ele dissesse com todas as letras o que fariam dentro daquele apartamento caro!
Ademais, o olhar estranho de Sanji sobre si começava a lhe enraivecer.
— Acho que está mal interpretando algo aqui, Roronoa — por algum motivo seu sobrenome soava sensual naquela boca. — Não aceito pagamentos por meio de favores sexuais, nem cortejo as pessoas de quem cobro dívidas. O que fizemos àquele dia foi uma exceção, já que seu empenho em me seduzir me comoveu um pouco.
Sanji retirou o avental e calmamente deu a volta no balcão americano, enquanto Zoro tentava compreender o que ouvira. Favores sexuais? Empenho em seduzir? Definitivamente tinha algo errado ali, mas era dentro da cabeça do ômega loiro e não com Zoro. As mãos pálidas de Sanji apertaram seus ombros tensos e quando voltou a ouvi-lo, a voz estava bem perto de seu ouvido.
— Ou deseja realmente se tornar meu amante?
Zoro virou a cabeça, deparando-se com o rosto de Sanji muito próximo ao seu. Mesmo se tivesse a resposta na ponta da língua, o que não tinha, ela teria lhe escapado quando seus olhos traidores desceram das írises azuis para os lábios dele. A vontade de beijá-lo estava presente mesmo sem ter sido convidada. Também sabia não estar sob influência dos feromônios do ômega, visto que mal havia traços de seu cheiro no ar. Portanto, não podia culpar ninguém mais além de si próprio quanto a sua ação seguinte: uma mão ligeira foi ao pescoço de Sanji, puxando-o de encontro a sua boca.
Os lábios estavam macios iguais a primeira vez que ele lhe beijou, embora a intensidade tenha sido outra. Sem estar movido pela tensão sexual ou pelos feromônios, Zoro soube saborear melhor os lábios e a língua morna. Porém, seu domínio durou pouco, pois logo Sanji arrebatou o comando e impôs profundidade ao beijo.
Beijo este que poderia ter sido mais duradouro, as chances eram muito positivas quanto a isso, mas o toque de um celular interrompeu o momento. Sanji se afastou, pegando o celular com uma careta irritada. Por um instante parecia que não atenderia ao ver o nome na tela, mas acabou aceitando a chamada e levando-a ao ouvido.
— Bellamy, espero que seja importante... — iniciou ele, apertando a ponte do nariz.
Zoro obviamente não conseguiu ouvir a voz do outro lado da chamada, mas percebeu terem dito algo impactante o suficiente para a pele de Sanji ganhar a palidez de um morto e a expressão tornar-se circunspecta.
Após a chamada ser encerrada eles se despediram sem maiores esclarecimentos e Zoro saiu a procura da estação mais próxima para poder ir para casa. Durante todo o percurso a expressão de Sanji permaneceria em sua mente como se fosse um encanto maldito.
Chapter 5: Cravadura
Chapter Text
O polegar batia repetidamente no volante, denunciando a ansiedade do motorista. Em seu estado normal Sanji controlava bem seus humores para, acima de tudo, manter a imagem esperada diante dos muitos olhos que o vigiavam. A imagem de uma calma imperturbável e de um exímio controle, de que tinha pulso firme para lidar com quaisquer atividades, por pior que fossem, do grupo Baratie. A imagem que cultivou cuidadosamente por vários anos de legítimo herdeiro de Zeff, o perna-vermelha. Mas a informação dada por Bellamy lhe tirou dos trilhos com uma facilidade vergonhosa.
“É o coração do chefe, ele parou...”
Sanji não conseguiu ouvir o restante da frase. Desligou o celular e buscou as chaves do carro de imediato, pressentindo o pior. Registrou de modo vago a presença de Zoro lhe seguindo até elevador espelhado e depois acompanhando-o até o subsolo do prédio onde seu carro estava estacionado, mas não se virou uma única vez para verificar se o alfa sabia como sair de lá sozinho. Isso não importava.
Pisou forte no acelerador para o automóvel cruzar rápido as ruas vazias até chegar nas avenidas mais movimentadas, sentindo o aperto no estômago de apreensão crua. Em geral, agia como bem entendia e respondia de modo grosseiro quando Zeff mandava recado por meio de alguém, mas só de imaginar que perderia aquela figura paterna seu coração bateu em um solavanco dolorido. Queria chegar o quanto antes — poderia estar perdendo minutos preciosos, mas viu-se preso em um engarrafamento ridículo em frente ao estádio onde ocorreria uma partida de futebol daqui a algumas horas.
Estava em uma larga avenida, mas ainda assim o trafego seguia lento. Sanji olhou pela janela, pensando nas alternativas. Não levou meio segundo para decidir por subir na calçada, felizmente vazia daquele lado, seguir por ela passando por cima de gramíneas e flores até alcançar uma rua adjacente. De lá ele cruzou rotas alternativas, muitas vezes dirigindo contramão, mas sequer desperdiçou o mínimo de preocupação em relação a isso. O carro que dirigia não estava em seu nome, então as multas que a placa receberia nem chegariam em suas mãos.
Ao chegar em frente a uma residência antiga e respeitável, cerca de meia hora depois, Sanji estacionou o carro de qualquer jeito na calçada e saiu do automóvel sem nem trancá-lo. Ignorou os cumprimentos dos homens que faziam a guarda dentro dos portões, tirando os sapatos na entrada mais por hábito do que de vontade de agradar. A governanta o cumprimentou inclinando o corpo respeitosamente quando o avistou no hall de entrada, mas nem a ela Sanji deu atenção — embora mais tarde fosse procurá-la para se desculpar.
Em passos duros cruzou os corredores, indo em direção ao único cômodo que era de seu interesse naquela casa que pouco mudara nos meses que se mantivera distante dali. Enfim, chegou diante a porta almejada e a arrastou com um baque rude, parando confuso quando viu duas figuras sentadas e uma terceira de pé em um canto, mantendo o posto de segurança.
Seu olhar passou de Bellamy, de pé trajando roupas casuais, (era seu dia de folga, mas voltara tão logo recebeu o aviso) para as figuras de Patty e Zeff sentados à mesa de chá. Patty era o homem, beta, de maior confiança de Zeff, chegaram juntos ao país e quis o destino que unissem força para criar um dos grupos mais influentes daquele lado da cidade. Sua aparência correspondia ao estereótipo de gângster: braços fortes e tatuados, cabeça raspada, altura de armário e um rosto assustador — mesmo quando sorria. O que quebrava um pouco o estereótipo era sua cabeça com formato de pera e a barba que era cuidadosamente cortada e desenhada por um artesão famoso. Bom, e também seu hábito de usar avental em qualquer lugar que fosse para lembrar a todos quem era o cozinheiro oficial do grupo.
Defronte a Patty, com a mesa servindo de limiar entre os dois, Zeff exibia um aspecto pálido e cansado. Era beta, assim como a maioria dos membros daquele grupo mafioso. Fios grisalhos dominavam sobre o pouco do loiro que ainda havia em seus cabelos. O bigode, longo e trançado, ia em vias de se tornar todo branco e cinza. Por mais que fingisse estar bem nas reuniões gerenciais do Baratie e nos encontros com outros chefes, não disfarçava totalmente os golpes que seu corpo vinha recebendo da saúde cada vez mais frágil. O homem que um dia foi bem mais forte e robusto não chegava a definhar a olhos vistos, mas exibia um notável cansaço nas feições.
Porém, ele não estava encarando as portas da morte como imaginara que estaria.
Quer dizer, Zeff não era exemplo de aparência saudável, mas a expressão dura no rosto não indicava que estivesse à beira da morte. A mensagem de Bellamy dita num tom urgente demais o fez pensar no pior. O coração ainda doía pelo pensamento de não poder se despedir do homem que o salvou, então sentiu-se traído pela mentira desavergonhada.
Sanji crispou os lábios, olhando para Bellamy.
— Você disse que o coração dele parou. — sibilou, estreitando os olhos.
Bellamy arregalou os olhos, confuso.
— Eu não disse isso. Você desligou antes que eu terminasse de falar... Eu ia avisar que o chefe parou de tomar os remédios.
O suspiro audível vindo de Zeff interrompeu o que poderia vir a ser uma discussão, pois todos se viraram para encarar o chefe.
— Moleque idiota, eu já não disse para se afastar do grupo? Vá embora daqui! Não precisamos de um fracote que está sempre desperdiçando dinheiro para ajudar todo rabo de saia que vê.
Passara meses sem ir naquela casa, mas no momento que Zeff pousou os olhos nele já foi expulsando-o novamente? Sanji sentiu vontade de fumar, mas reteve a mão antes de buscar a carteira guardada no bolso interno do paletó. Não sabia em que grau estava a saúde do pai, além de ter esquecido o paletó no apartamento por sair às pressas.
Ademais, sabia o porquê de Zeff estar fazendo de tudo para rechaçá-lo. De uma forma não convencional, Zeff estava tentando ser um bom pai.
— Sanji! — o quarto homem naquele cômodo chamou-o de repente e só então Sanji percebeu que ele chorava. Ou parecia que chorava. Provavelmente eram lágrimas advindas de um colírio, pois Patty acreditava que seu rosto choroso era capaz de comover até os mortos. Ou seja, eram lágrimas de crocodilo. — Convença a esse imbecil que ele precisa ir para o médico!
Sanji enfim adentrou o cômodo, fechando a porta ao passar, e deu alguns passos em direção a mesa de chá. Parou faltando ainda vários centímetros para de fato estar próximo e levou as mãos aos bolsos da calça.
— O que aconteceu? — Sanji deu uma olhada ao redor, avistando um potinho marrom jogado no chão perto da parede e vários comprimidos espalhados ao redor.
Patty bateu com o punho fechado na superfície da mesa fazendo a louça do conjunto de chá saltar e quase ir ao chão.
— Esse velho cabeça-dura sabe que está doente e não quer ser consultado. Há dias ele anda tendo inchaços nos pés, por isso chamei um médico. Mas ele pegou a maldita katana que tem na sala e usou para afugentar o médico! No meio do alvoroço passou mal e quase bateu a cabeça na ponta da mesa.
Sanji apertou os lábios em frustração. Conhecia Zeff bem o suficiente para saber que quando ele colocava algo na cabeça, dificilmente mudava. À medida que foi ficando mais velho, mais intransigente tornou-se.
— E o que você sentiu? — perguntou a Zeff, lutando para manter a calma.
Zeff bufou, irritado. Claramente não queria ter aquela conversa na frente do filho.
— Só um escurecimento de vista e dor no peito, nada que seja novidade para alguém na minha idade. — Zeff tossiu seco e levou a xícara aos lábios para beber o que restara do chá. — Não preciso da porra de um médico. Quando chegar minha hora, aceitarei e morrerei de vez.
Sanji colocou a mão no quadril e ergueu uma sobrancelha, a que estava visível. Se o velhote de merda queria ser teimoso, Sanji mostraria que podia ter tão cabeça-dura quando ele.
— Ótimo. Desse jeito herdarei a liderança rápido e ninguém estará aqui para impedir.
Zeff o encarou, sobressaltado. Bateu a xícara na mesinha com tanta força que ela se partiu em vários pedaços, espalhando gotículas de chá e fragmentos da xícara.
— Você não vai herdar porcaria alguma! — Zeff esbravejou.
— Sou seu único filho e o mais indicado para ocupar seu lugar. Além disso, — sorriu. — sou popular entre nossos homens e mulheres.
Embora continuasse preocupado com a saúde do pai, Sanji precisou arriscar irritá-lo para resolver o problema. E ao ver o rosto vermelho de raiva, dando a impressão que a qualquer momento estouraria uma veia, soube que conseguira alcançar seu objetivo. Havia mais energia na expressão dele agora do que quando chegara ali.
— Seu moleque imbecil, acha que pode fazer o que quiser? Eu não vou morrer tão cedo e enquanto eu estiver aqui, você está proibido de mencionar isso de novo! Marque essa porcaria de consulta, Patty. Irei viver mil anos se preciso, mas vou impedir que esse meu filho de merda tente ser meu clone!
O sorriso de Sanji se alargou, era para isso que tinha sido chamado. Satisfeito pelo resultado, ele deu de ombros e marchou de volta para a porta.
— Se quiser conversar mais sobre a sucessão inevitável, pode me chamar mais tarde. Estarei em meu antigo quarto.
— Vá embora para sua própria casa! — esbravejou, jogando a xícara intacta, a que tinha sido colocada para Patty, em direção a Sanji. Mas este apenas riu e fechou a porta antes que a xícara tivesse chance de alcançá-lo.
Depois que Patty saiu para decidir o que fazer para a próxima refeição e Bellamy foi mandado embora (afinal ainda estava em seu dia livre) Zeff serviu-se uma nova xícara de chá com o conjunto substituto que um empregado trouxe. A entrada que dava para o jardim estava aberta, permitindo que a brisa noturna arejasse o cômodo. Gin, que chegara a pouco tempo, estava sentado no engawa com uma lata de coca na mão.
— Soube que vai para a consulta.
Zeff suspirou.
— Achei que o pirralho tinha superado a vontade de me substituir, mas ele ainda insiste nisso. — esfregou as pálpebras sentindo-se subitamente muito cansado. — Mandei-o para longe, dei um lugar pra morar e pedi pra Roxanne ajudá-lo a encontrar algo que quisesse fazer na vida...
Gin tomou um gole da coca.
— Ele já tem idade o suficiente para saber o que quer, chefe. Por que não aceita ele como sucessor? Ou tem alguém em mente que seja mais indicado para isso?
Zeff mirou a superfície líquida dentro da xícara sem responder. Apenas queria que Sanji se afastasse daquela realidade, que pudesse traçar seu próprio caminho longe da máfia. Mas Sanji insistia em continuar ajudando o grupo, fazendo de tudo para provar seu valor dentro do Baratie. Sabia não ser mentira que ele possuía uma fama entre seu pessoal. Informes regulares lhe eram enviados de tempos em tempos para ter conhecimento de suas ações e na maioria Sanji resolvia por si só os problemas que chegavam a seus ouvidos. Conquistou a confiança até dos membros mais complicados.
Zeff suspirou fechando os olhos. A memória daquele dia ainda estava fresco na mente por mais que desejasse o contrário. A primeira vez que o viu ficou consternado, apesar de não ter mostrado isso nas linhas do rosto ou na postura. Na época o Baratie estava estabelecendo acordos de não-conflito com grupos de regiões próximas para diminuir o número de sangue derramado inutilmente em disputas territoriais. Podia ser um grupo formado majoritariamente por betas, mas àquela altura, com o Baratie no auge do poder, nenhum dos grupos médios ou menores pensou em contrariá-los. Quando chegou a vez de visitar o líder do grupo Garuda, Zeff não esperava se deparar com uma oferta tão nojenta.
Garuda era um grupo pequeno ainda, mas em constante crescimento. Aumentaria a área de sua influência aliando-se a grupos menores e assimilando-os com o passar do tempo, mas isso aconteceria durante os anos posteriores a esse encontro. Na época, Garuda não pensou duas vezes em aceitar o acordo. Zeff estava sentado sobre o tatame, discutindo os detalhes dos termos com Vinsmoke Judge, líder do Garuda, quando uma mulher se aproximou e segredou algo no ouvido do outro homem.
Um sorriso pernicioso tomou a face de Judge.
— Sei que meu pedido pode parecer excessivo, mas estou disposto a pagar o preço que você achar necessário. — disse ele, assentindo para algo que a pessoa em seu ouvido disse. — Traga-o.
De cara Zeff não gostara dele. Percebia um ar arrogante em Judge característico de pessoas que se achavam superiores somente por serem alfas e Zeff, como beta, já vira muito disso por aí. Contudo, sua opinião sobre ele caiu ainda mais quando Judge pediu, dentro do acordo de não-conflito, um termo que desse total liberdade para o grupo Garuda buscar clientela para suas drogas no território do Baratie. Zeff franziu o cenho. Ouvira boatos que eles estavam desenvolvendo uma nova droga que viciava na primeira provada e gerava efeitos violentos. Sua desaprovação deve ter sido óbvia, pois Judge logo tratou de buscar formas de convencê-lo.
Imaginou que trariam dinheiro ou talvez uma porção da droga para caso Zeff desejasse experimentar — o que já contaria como uma afronta pessoal — mas o que veio foi muito pior. A mulher que saíra silenciosamente, retornou trazendo um garotinho franzino de cabelos loiros como os Judge. Era jovem e magricela demais para a idade que provavelmente tinha, e vestia apenas o blusão de um moletom grande que alcançava suas coxas. Mas o que angustiou Zeff foi ver marcas ainda vermelhas na pele exposta das pernas e os olhos azuis desfocados da realidade. Eram marcas típicas de quem é açoitado com algum tipo de vara, e junto a essas marcas haviam outras mais antigas de cortes superficiais e hematomas na fase em que deixam de serem roxas para aderirem a um tom amarelado. A expressão do menino era vazia, dando-lhe a aparência de um boneco sem alma preste a se romper.
A surpresa foi tanta que Zeff ficou sem palavras e Judge viu isso como uma possibilidade de aceitação. O menino caiu de joelhos perto de Judge ao menor gesto dele. O corpo tremia um pouco e lágrimas começaram a se acumular no canto dos olhos.
— Bonito, não é? — torceu a boca em desagrado, depois franziu o nariz como se até o cheiro do menino fosse insuportável. — Infelizmente nasceu ômega, então não serve para muita coisa. E ainda não foi treinado o suficiente, mas a parte que mais importa ainda não foi tocada. Até um beta como você entende que o privilégio que isso representa, não é?
O menino tremeu um pouco mais, as lágrimas descendo silenciosas pelo rosto imberbe.
A fúria borbulhou dentro de Zeff e dilatou as veias do pescoço, mas transpareceu muito pouco de sua ira. Caso matasse Judge naquele momento, o menino poderia ser alvejado na troca de tiros que ocorreria em seguida e ele não queria machucar ainda mais aquela pobre criança. Respirou fundo e encarou Judge nos olhos.
— Vou levar o garoto comigo. Ele vai ser o pagamento pelo seu desrespeito. — Zeff manteve a firmeza no tom. — Seu termo não será acrescentado em nosso acordo e se eu vir qualquer Garuda pisando nos limites da minha área, virei pessoalmente esmagar você.
Judge mostrou os dentes em ameaça, fazendo sua aura de ira espalhar-se livremente pela sala. Zeff não foi afetado visto que apenas auras de alfas muito especiais conseguia afetar betas. Porém, o menino se encolheu onde estava, dobrando o corpo e chorando ainda mais forte como se sentisse dor. Zeff rangeu os dentes. Precisava acabar logo com aquilo.
— Tenho poder e posso usá-lo para acabar com seu grupo quando eu quiser. Estou sendo muito benevolente em ainda firmar o acordo com você, então não me provoque.
O momento tenso estendeu-se durante algum tempo, mas Judge sabia reconhecer uma ameaça verdadeira quando a recebia. Então com o orgulho em frangalhos, sua aura recuou e ele chutou o menino na direção do beta sem qualquer sombra de remorso nos olhos.
— Ele é todo seu, espero que tenha bom proveito. — disse com outro sorriso pernicioso na face. Aquele era o rosto de alguém que não esqueceria uma ofensa e Zeff passaria anos vigiando-o de longe, enquanto observava Garuda crescer e se fortalecer.
Zeff nunca soube os detalhes do que Sanji passou naquela casa, mas cuidou-o e amou-o como se fosse seu próprio filho. Levou longos meses para Sanji começar a confiar nele e parar de se esconder debaixo da cama, levou ainda mais tempo para começar a falar. Quando ele pediu para aprender a ler, todos comemoraram silenciosamente para não assustá-lo. Quando certa vez deixou que a governanta o ajudasse no banho, ela chorou como um bebê recém-nascido pelas tantas marcas de maus-tratos que havia no pequeno corpo.
Aos poucos Sanji mostrou-se uma criança curiosa, inteligente e aversa a contato, principalmente masculino. Quando encostava em algum homem, não importando qual fosse o segundo gênero, era acometido por um ataque de pânico que por vezes deixava-o sem ar ou o fazia vomitar todo o conteúdo estomacal. Sinais de um trauma que talvez o marcasse para o resto da vida.
Trataram-no da maneira mais amável que um grupo mafioso poderia ser com uma criança naquele estado e talvez esse tenha sido seu erro. Deveria tê-lo enviado para longe ainda jovem, para a criação saudável que uma família comum poderia oferecer. Talvez isso pudesse tê-lo afastado do futuro ao qual Sanji se esforçava tanto para alcançar.
O barulho de Gin amassando a lata vazia despertou-o das memórias e Zeff grunhiu pesaroso.
— Não, não tem. Sanji é o que poderia guiar melhor o Baratie.
— Então, vai aceitá-lo?
— Não. Dissolverei o grupo antes que ele possa interferir.
Gin virou-se depressa, achando ter ouvido errado.
— Não tem como fazer isso... Tem? O Baratie mantém o domínio há anos, se sumir de repente, a guerra para tomar o lugar será terrível! — Gin piscou, desacreditado. Até que extremo aquele homem chegaria para impedir o filho de substituí-lo no cargo de chefia? — Sanji não vai reagir bem a essa notícia.
— Ele não vai saber até ter acontecido. — esclareceu e bebericou o chá frio. — É melhor assim. Dessa forma ele jamais terá o risco de se reencontrar com Judge. O acordo segue sendo obedecido, mas ele não é um homem confiável. Se sentiu humilhado por mim e poderia descontar o rancor em Sanji, pois é de conhecimento de todos que o adotei como meu filho. Ouviu algo mais recentemente?
Gin voltou a olhar para o jardim escurecido pelo véu noturno. Podia ouvir o coaxar de um sapo e ruídos de grilo partirem de lá.
— Nas últimas semanas não recebi mensagens do homem infiltrado. Imagino que esteja morto em algum beco, com os traços irreconhecíveis. Garuda anda muito quieto e discreto em suas ações, mas ouvi que a esposa do chefe de um bando de traficante de armas sumiu e reapareceu aos pedaços dentro de uma sacola de lixo. Quase certeza que eles estão envolvidos.
— Hm. O filho alfa de Judge. — constatou Zeff.
Ele sentiu uma dor-de-cabeça se insinuar no canto do cérebro. Fora Sanji, Judge tivera mais dois filhos com outras mulheres. Um beta, que ninguém mais ouvira falar nos últimos anos, e um alfa que chegava a ser mais peçonhento que o pai. O herdeiro descontrolado e perfeito aos olhos de Judge.
— Sim. É o tipo de sanguinolência que ele gosta.
— Onde foi?
Gin levantou-se de onde estava para sentar-se diante Zeff, repousando a lata amassada sobre a mesinha.
— No lado oeste, longe demais para ser motivo da quebra do acordo conosco. O que quer dizer que eles ainda se preocupam em não romper o acordo, mas não se sabe até quando.
Os dois ficaram em silêncio, cada um pensando nos pormenores que essa cuidadosa manutenção do acordo queria implicar. Além disso, a tal esposa esquartejada provavelmente não era uma morte aleatória e sem objetivo. O silêncio de Judge nos últimos tempos também ajudava a fechar a ideia de uma trama acontecendo longe dos ouvidos do Baratie.
— Quais as chances de Sanji aceitar um segurança integral? — a pergunta não exigia uma resposta, já que era óbvia a recusa por parte de Sanji. Mas a expressão incerta que Gin exibiu deixou Zeff intrigado. — Alguma sugestão de como impedir o pirralho cabeça-dura de fazer burrice e acabar se matando?
Gin segurou o queixo.
— Ele tem, hm, se interessado por um certo alfa. Aquele que lhe mencionei da outra vez, lembra? — Zeff franziu o cenho para ele, mas não o interrompeu. — Acredito que, a essa altura, eles já sejam amantes. E esse Zoro tem um reflexo e percepção muito bons. Se pudéssemos trazê-lo para o Baratie, daria um ótimo guarda-costas para Sanji. Tentei falar com ele sobre isso, mas parece que toquei um ponto sensível ao mencionar a mãe. A mãe dele foi uma pessoa incrível! É a dona original da katana que está na sua sala e...
Gin parou de falar ao ver a expressão fechada do outro. O rosto estava sério, beirando a raiva. Achou que seria repreendido ou, no mínimo, escorraçado dali, mas de repente Zeff jogou a cabeça para trás e riu a plenos pulmões. Gin encarou-o, surpreso.
— Um amante! E ainda alfa! — deu mais uma gargalhada alta, arrependendo-se do feito quando uma tosse o engasgou. Levantou a xícara para beber um pouco de chá, mas já tinha acabado. — Enfim, o momento foi um pouco inapropriado para fazer piada, mas você deve estar cansado, Gin. Tire um tempo para ficar com a esposa. Diga que mando lembranças.
Vendo a reação de incredulidade do homem, Gin achou melhor não comentar sobre a fita do hotel-cassino mostrando Zoro e Sanji entrando em um quarto e somente saindo no dia seguinte. Ainda acreditava fortemente que a união deles dois, Sanji com sua habilidade de liderar e Zoro com sua alta percepção, seria a porta de entrada para uma fase ainda mais poderosa para o grupo Baratie. A ideia de Zeff conseguindo dissolver o grupo sequer lhe passava pela mente, pois observara Sanji de perto nos últimos anos e sabia de seu potencial. Porém, não podia dizer algo assim diante do homem já envelhecido e temendo pelo filho.
Então, guardou seus pensamentos e imaginou de que forma poderia contribuir para Zoro aceitar o cargo de guardião do próximo cabeça do grupo mafioso mais respeitado das últimas décadas.
*
Plumb!
Zoro ignorou o celular em seu bolso que emitia, a cada meia hora, o efeito sonoro do aplicativo de mensagem instantânea. Essa nova irritação começara no dia anterior quando um número desconhecido lhe deixou as seguintes mensagens:
Tenho uma oferta melhor. Em vez trabalhar como segurança de uma boate, por que não vira guarda-costas de Sanji? Se eu fosse você não perderia essa oportunidade única 02:17
Aliás, desculpa mesmo pela vez passada. É que sou fã da sua mãe, ela foi a pessoa mais honrada que conheci 02:20
Zoro nem precisou pensar muito para descobrir quem era o autor das mensagens. Só tinha uma pessoa que tivera a ousadia de mencionar a falecida senhora Roronoa na sua frente. Leu as mensagens desinteressadamente e optou por não responder. Não havia o menor risco de Zoro cogitar se envolver ainda mais com mafiosos, o mesmo tipo de gente que tinha desgraçado a vida da família dele e ainda roubado a vida da mãe. Então, ele bloqueou a tela do celular e nem pensou mais no assunto.
Isso até 1 hora depois quando o celular apitou novamente.
Vou considerar seu silêncio como um não, mas não desistirei. Que tal eu te contar curiosidades sobre Sanji para fazermos as pazes? 03:21
Imagino que agora que são amantes tenha curiosidade sobre ele. Posso te passar algumas informações bem boas 03:25
Zoro, que tentava dormir, ficou particularmente desconfortável com essa afirmação e irritado pela insistência. Eles não eram amantes, longe disso! De onde ele tirara aquelas ideias descabidas? Bem, é certo que depois do dia que foi largado no subsolo do prédio onde o ômega morava, Zoro voltou a vê-lo no final de semana. Sanji simplesmente apareceu de surpresa na oficina, enquanto Zoro investigava alguma falha embaixo do carro. Apenas a metade inferior de seu corpo não estava embaixo do automóvel e concentrado do jeito que estava, demorou a perceber a presença de Sanji ali. Foi por isso que Sanji abaixou-se e apertou, com a malícia de uma pessoa travessa, a área entre as pernas dele de súbito. Zoro bateu a cabeça no fundo do carro (acarretou em um enorme galo na testa), mal tendo tempo de reclamar antes de sentir mãos mexendo no botão e zíper da calça que vestia.
— Continue o que está fazendo — Zoro sentiu o riso maldoso na voz dele. — É só se concentrar como antes. Nem percebeu a minha chegada, não é?
Zoro o maldisse com todas as expressões que lhe vieram à mente, mas de fato tentou voltar a trabalhar porque precisava entregar o carro em poucos dias. Porém, sua tentativa foi mais do que falha. As mãos de dedos longos e elegantes eram habilidosas o suficiente para fazer sua cabeça se concentrar unicamente nelas. O sobe e desce lento, a pressão exata, o polegar macio acariciando a glande. Entretanto, a frente da oficina estava aberta, o que significava que a qualquer momento alguém poderia ter passado e tê-lo flagrado em tal situação exposta. Mas, apesar de não gostar de admitir, esse risco lhe deu a impressão de estar mais sensível e acabou gozando mais rápido.
Depois arrastou-se para sair de debaixo do corpo de metal, o rosto afogueado e o suor colando a roupa na pele. Foi estranho e sinceramente Zoro achou que tinha acabado quando ejaculou rápido nas próprias roupas (e um pouco no carro), mas Sanji o levou para o apertado banheiro do quarto-casa dos fundos e fez o que bem quis, usando a desculpa de estar limpando o corpo de Zoro.
Enfim, de qualquer modo eles não eram amantes. Era apenas uma convivência forçada que mais cedo ou mais tarde seria finalizada com o pagamento total da dívida. Nenhum dos dois tinha um apreço especial pelo outro, por isso Zoro continuou repetindo para si mesmo que não se interessava por quaisquer curiosidades que Gin pudesse oferecer.
Pelo resto de suas horas de sono não foi mais perturbado, mas quando partiu para seu turno na escola de natação o celular começou a soar com uma regular frequência.
Plumb!
O celular no bolso soou irritantemente outra vez, mas Zoro continuou ignorando-o, até porque no momento estava com as mãos e a boca ocupadas em dar prazer para Sanji.
— Não vai ver se é importante? Talvez seja sua irmã lembrando de você não lutar por aí...
Zoro ergueu o olhar, irritado por Sanji ainda estar coeso o suficiente para fazer provocações. Estavam no vestiário dos funcionários com Sanji com as calças caídas na metade das coxas, apoiando as costas contra um dos armários de metal, e Zoro ajoelhado com a boca cheia com o pênis de Sanji e as mãos firmes no quadril do ômega.
Mais cedo, antes de Sanji surgir no vestiário quando ele estava prestes a trocar de roupa, Zoro visualizou por acidente algumas mensagens que Gin enviara. Em uma delas dizia que Sanji detestava bebidas energéticas — então, por que levara para Zoro no dia da faxina?! — e noutra dizia que Sanji usava luvas, pois não suportava tocar homens. Gin não ofereceu explicações e Zoro não perguntou. Mas indagou-se depois se Gin não estava inventando tudo aquilo, afinal naquele instante Sanji enfiava os dedos nus na cabeleira esverdeada do alfa sem receio.
Não sabia se as pequenas informações eram verdadeiras ou não, mas uma coisa era certa, aquela era a primeira vez que Sanji se deixava ser tocado por Zoro e isso satisfez algo em seu íntimo. As íris azuis de Sanji assistiam atentamente a língua dele subir pelo pênis ereto e engolir o máximo que sua inexperiência em boquetes lhe permitia fazer. A face do ômega estava levemente rubra, mas o sorriso malicioso nos lábios não deixava dúvidas sobre a total falta de embaraço que sentia pelo ato.
— Acho melhor se empenhar mais se quer ter tempo de limpar o lugar antes dos outros funcionários aparecerem. — disse casualmente, enquanto pressionava a sola do sapato lustroso no volume notável nas calças do Roronoa. Liberou um pouco mais de feromônios do que o pretendido quando ouviu Zoro gemer engasgado graças aos lábios ocupados. — Ou talvez você queira que eles saibam que algo se passou aqui...
A voz de Sanji saiu baixa e rouca ao articular a última suposição, causando um arrepio que viajou o corpo do alfa até chegar a uma parte específica e muito rígida. Zoro pouco se importaria se alguém os flagrasse naquele momento; nem mesmo a possibilidade de ser despedido o incomodou. Os olhos de Sanji continuavam atentos a seus movimentos e o cheiro que partia dele incentivou-o a sugar o pênis com mais afinco.
Não demorou muito para Sanji gozar, parte do sêmen caindo em sua boca e o resto em seu rosto. Mais por reflexo do que por vontade, Zoro acabou engolindo o que havia na boca, surpreendendo-se por não desgostar do sabor. Era fruto da influência do feromônio que ainda permeava o ar ou uma preferência particular que acabara de descobrir? Não soube dizer. Em vez de se preocupar com isso viu-se preso sob o olhar ainda enevoado de prazer do ômega, como se enfeitiçado pelas feições levemente ruborizadas. Íris azul na íris castanha. Zoro deixou uma mordida na coxa alva de Sanji sem cortar o olhar que trocavam, Sanji respirou fundo.
Plumb!
E como se a notificação sonora destruísse o efeito sensual entre ambos, Sanji ergueu uma sobrancelha e conferiu o relógio de pulso, quebrando assim o contato visual.
— Bem, tenho um compromisso agora. — informou ele com casualidade, enquanto ajeitava a calça e saia de perto de Zoro. — Não precisa olhar assim para mim. Outra hora lhe dou uma compensação...
O tom sugestivo do ômega fez Zoro se perguntar que tipo de expressão estava mostrando. Não tinha como negar que estava frustrado — afinal, o outro estava indo embora e deixando-o com o volume intocado entre as pernas —, mas não achou que estivesse demonstrando isso de algum modo.
Plumb!
— E parece que alguém está tentando bastante chamar sua atenção. — Sanji deu um sorriso estranho.
Depois que o loiro saiu e lhe deixou sozinho no vestiário, Zoro surpreendeu-se pensando no sorriso que não soube decifrar. Mas ao se dar conta do estranho que era estar pensando nisso, afastou da mente e manteve-se ocupado até o horário de sair do turno.
Sentia que a cada vez que se permitia gastar tempo pensando em detalhes que envolviam Sanji, tornava-se cada vez mais permissivo com aquela existência em sua vida. As aparições ocasionais que ele lhe fazia em sua casa, as vezes que dividiram caixas de comida chinesa em frente à televisão pequena, os cochilos rápidos após uma transa onde Sanji mal tirava as roupas. As paredes de sua moradia já cheiravam a nicotina de tantas vezes que Sanji aparecera por lá e fumara em silêncio, sentando em um canto. Depois, sem dizer nada, ele ia embora e não dava estimativa da próxima aparição. E nem precisava, pois Zoro já imaginava que seria logo mais.
As vezes precisava se lembrar de que aquela ainda era uma convivência forçada onde ele apenas estava tendo que lidar com os termos indeterminados de um mafioso. Não eram amantes, muito menos amigos. Se lia, por acidente, alguma curiosidade a cerca de Sanji enviada por Gin, isso em nada mudava a situação ou sua opinião de mafiosos.
— Se continuar franzindo o rosto assim vai ficar velho antes do tempo. — comentou uma voz divertida, surpreendendo Zoro.
Zoro, que percorrera o caminho do trabalho na escola de natação até sua casa perdido em pensamentos, percebeu que havia uma mulher de cabelos curtos e escuros parada junto a entrada da oficina. Ela estava vestida com uma bermuda jeans e uma blusa de babados simples. Nas costas, uma mochila pequena e um guarda-chuva grande pendurado em uma das alças. E havia também sacolas de supermercado cheias a seus pés.
A expressão de Zoro mal teve tempo de suavizar antes de retornar o vinco entre as sobrancelhas.
— Kuina — disse ele em tom de censura. — Como me encontrou?
A mulher sorriu.
— Faz meses que não nos vemos e sou recebida por essa cara sisuda? — ela deu de ombros, não se importando nem um pouco com a hostilidade do irmão. Abaixou-se e puxou a porta de aço da oficina, usando um empurrão para fazê-la enrolar para cima. — E você não é tão bom em esconder seus rastros quanto imagina.
Zoro estalou com a língua, seguindo-a para dentro da oficina e de lá indo para a moradia nos fundos. Tinha se mudado do lugar anterior porque Kuina descobriu o endereço e foi deixar pessoalmente uma porção de legumes frescos para ele, mas lá estava ela surgindo quando menos esperava. Resmungou mais uma vez. Queria mantê-la longe daquela bagunça que era sua vida, tinha medo — odiava admitir, mas era inevitavelmente “medo” o nome do sentimento — que de algum modo Kuina se envolvesse e acabasse como sua mãe, mas ela ignorava suas precauções e continuava reaparecendo quando queria.
Pensando bem, o número de pessoas que ignoravam sua clara hostilidade e insistiam em incomodá-lo tinha aumentado para dois. Bufou uma risada quando imaginou essa estranha similaridade entre Kuina e Sanji, mas logo o sorriu sumiu quando percebeu que a irmã o encarava. Ela nem tentou disfarçar os olhos arregalados.
— No que estava pensando que te fez sorrir sem perceber?
Zoro abriu a geladeira que quase não gelava e tirou uma cerveja de nome estrangeiro de lá. Presente de Sanji de um dia que apareceu de bom-humor e relaxado. Respondê-la nem se passou pela sua cabeça.
— Não vai me responder? — Kuina insistiu, pousando a mochila e o guarda-chuva no sofá-cama, e as sacolas no chão mesmo. Um sorriso expectante brilhou nos lábios. — Alguma novidade que queira me contar?
Enquanto aguardava a resposta (que não viria) de Zoro, Kuina avaliou o lugar com atenção crítica. Passou o dedo pelos móveis procurando poeira, cheirou o ar do banheiro apertado e conferiu os armários acima da pia da cozinha.
Por fim, parou na frente de Zoro com as mãos na cintura.
— Vim achando que você ia precisar de uma ajuda para limpar o lugar, mas vejo que anda se virando muito bem. — o sorriso expectante deu lugar a uma sobrancelha erguida em suspeita. Duvidava que o irmão tivesse mudado de comportamento quanto a limpeza da noite para o dia, então só havia uma justificativa plausível. — Quando vai me apresentar a pessoa que você anda saindo?
A bebida que antes descia fácil, engasgou-o e Zoro tossiu sofrido por alguns segundos até o corpo decidir que não corria risco de vida. Os olhos lacrimejaram graças ao incômodo do engasgo, mas nada disso desviou a irmã do foco.
— Então, quem é? — Kuina perguntou, inabalada pelo susto de Zoro.
Zoro pigarreou, afastando a lata de cerveja da boca antes que pudesse dar outro gole perigoso.
— Não existe essa pessoa. — afirmou rotundo.
Kuina não acreditou em sua resposta, dando-lhe um olhar desconfiado, mas não querendo invadir mais da privacidade de Zoro, ela deixou passar.
— Já que não precisa da minha ajuda nisso, vou direto ao assunto. — disse ela sentando-se em uma banqueta de plástico que havia por ali. Zoro continuou onde estava, ainda segurando a cerveja meio cheia. — Eu quero que você pare de enviar dinheiro para a tia.
Ao vê-la com aquela expressão séria Zoro achou que ela traria um tema mais importante para a conversa. Porém, era de novo o assunto de não enviar mais dinheiro. A princípio Zoro tentou enviar diretamente para ela uma quantia mensal que pudesse ajudá-la, mas depois da terceira vez de o dinheiro ter sido enviado de volta com uma mensagem irritada junto, Zoro passou a enviar para a tia. Sua tia era uma mulher relativamente orgulhosa, mas também era realista e aceitou guardar o dinheiro para qualquer despesa extra que aparecesse para Kuina. Mas pelo visto o segredo entre a tia e Zoro, que já durava vários anos, tinha sido descoberto por Kuina.
— Eu estudo e trabalho. Não recebo muito, mas é o suficiente bancar minhas necessidades extras e outras coisas. Já está na hora de você diminuir seu ritmo de vida, Zoro. Até quando pretende viver sob a sombra dos erros de nosso pai? Tentei respeitar sua vontade de me manter distante disso, mas não consigo ignorar mais. Estou verificando a possibilidade de antecipar a conclusão do curso e minha formatura. Além disso... — ela olhou para as próprias mãos que se mexiam inquietas no colo, cogitando o que falar em seguida. — Bom, se tudo der certo posso antecipar minha viagem também e eu queria que você viesse comigo.
Zoro colocou a lata em cima da pia e cruzou os braços. A proposta o pegou de surpresa, não imaginava que Kuina tivesse lhe incluído nos planos de sair do país. Sabia que ela tinha praticamente um emprego lá fora, garantido graças a um estágio exercido com excelência e indicações de professores influentes. Porém estava fora de sua capacidade imaginativa se ver nesse cenário. Nunca concluíra os estudos, não falava outra língua que não fosse a sua materna, nem sabia o nome do lugar para onde ela ia. O que tinha para ele lá? Era apenas um alfa sem qualidades que o valorizassem de algum modo.
Além do mais... Sacudiu a cabeça se recusando a concluir o pensamento.
— Não irei.
Kuina apertou os punhos, pondo-se de pé em um salto.
— Não vai nem pensar antes de me responder? Essa pode ser nossa chance de recomeçar, de ser uma família outra vez, Zoro!
O canto dos lábios de Zoro se curvaram em um sorriso irônico.
— O seu namorado vai com você. Por que precisa de mim também?
— Que merda, Zoro! Você é meu irmão! Ter um noivo não me desliga de você. Você sempre será o meu irmão, não importa o que aconteça. — ela cobriu os olhos com uma mão por um momento e por fim suspirou. — Por isso vou te dar um tempo para pensar na minha proposta. Estou planejando viajar daqui a 50 dias, logo depois de me formar. Caso sua resposta seja positiva, o que eu tenho certeza que será, te ajudo a resolver as pendências que te prendem aqui. E se estiver saindo sério com alguém, vocês poderiam conversar sobre a possibilidade de irem juntos conosco. Que acha?
Mal Kuina terminou de falar e Zoro já foi emendando:
— Não há ninguém e eu não irei.
Os dois se encararam em silêncio, ambos com expressões teimosas no rosto.
— Certo. Já dei o aviso que vim dar, depois mando as datas de formatura e da viagem para você conseguir se organizar melhor. Por favor me responda, pelo menos, duas semanas antes da data da viagem.
Kuina deu outro olhar demorado na direção do irmão, relutando durante meio segundo antes de dar outro suspiro cansado enquanto recolhia a mochila e o guarda-chuva, e rumou para a saída. Zoro a seguiu com o olhar, vendo-a interromper o passo antes de passar pela porta.
— Ah, dentro daquelas sacolas tem material de limpeza. Sei que fará bom uso já que está tão bom em faxinar... — sorriu e saiu dali.
Sozinho novamente Zoro se permitiu adotar um ar confuso. Por que Kuina encucara de levá-lo junto naquela altura do campeonato? E por que diabos todo mundo que lhe visitava deixava produtos de limpeza para ele?
*
Ao deixar a pequena moradia de Zoro, Kuina foi tomada pelo desânimo depois de ver o modo que ele levava a vida. Zoro assumiu a responsabilidade das dívidas do pai quando era pouco mais que um moleque e a afastou para que isso não a afetasse. Ela entendia seu ponto de vista, claro, era o irmão mais velho e apenas fez o que achou melhor para a irmãzinha, mas ainda assim ficava magoada ao vê-lo continuar esse distanciamento agora que eram adultos. Ainda mais agora que descobrira que estava grávida.
Talvez fosse culpa dos hormônios que começavam a preparar seu corpo para gerar um filho pelos meses que estavam por vir, mas ela simplesmente achou inimaginável criar o filho longe de Zoro. Inclusive pensou em usar essa cartada para convencê-lo, mas acabou recuando antes de contar. Afinal, isso podia acabar resultando em Zoro afastando-a de vez só para garantir a segurança da criança que ainda não era nascida.
Porém, não tinha tempo para perder lamentando velhas feridas ou possibilidades descartadas. Longe da supervisão de Zoro e da tia que a cuidou desde criança, Kuina reuniu uma quantidade relevante de dinheiro e esperava, se não pudesse quitar de imediato, que ao menos pudesse adiantar a finalização da dívida do pai desaparecido. Com o novo objetivo em mente, Kuina adotou um passo determinado rumo as indicações que uma senhora deu quando ela perguntou onde poderia encontrar os mafiosos da região.
Sua tia, apesar dos poucos recursos que podia oferecer para custos extras, presenteou-a com uma espada de bambu e trajes de kendo pagas com dinheiro próprio para que Kuina pudesse treinar em casa sempre que desejasse quando estava na escola média. Após isso adquiriu uma espada real com dinheiro economizado e a usava como decoração na sala de estar da casa da tia, embora também soubesse manuseá-la para combates. Não era, de forma alguma, uma pessoa indefesa. Porém, como não podia andar com uma espada por aí, nem seria normal carregar uma espada de bambu com sua idade, Kuina contentou-se em levar o guarda-chuva mais resistente que possuía para caso precisasse improvisar uma arma de defesa.
Mesmo longe de ser o ideal, ela engoliu em seco e seguiu adiante. O dia era de sol e ventava muito, portanto algumas pessoas lançavam olhares curiosos quando viam-na passando com o guarda-chuva em mãos. Mas Kuina não se abalou e continuou sua busca. Sabia que o pessoal da máfia com o qual seu irmão estava envolvido agia naquela região, pesquisara bem antes de tomar aquela decisão três dias atrás. Então, quando avistou um grupo de homens suspeitos reunidos contra um muro pichado de um beco, ela aproximou-se deles sem temer pela própria segurança. Zoro podia ser ótimo com socos, mas ela era ótima com a espada. Ou, se fosse o caso, com o guarda-chuva.
— Onde posso encontrar o líder de vocês? Tenho negócios a tratar com ele.
Os homens a encararam com faces irritadas como se ela estivesse interrompendo uma conversa muito importante.
— Quem diabos é você? — resmungou um deles.
Kuina suspirou.
— Ninguém nunca lhe ensinou que é falta de educação responder com uma pergunta? De qualquer modo, eu perguntei primeiro.
O homem fechou a cara, irritado pelo tom insolente. Adiantou-se na direção dela como se fosse atacá-la ou no mínimo intimidá-la, mas Kuina aproveitou a abertura para atacar primeiro. Como eles não esperavam por uma investida da parte dela, os três foram derrotados facilmente. Bom, não era bem o que Kuina esperava, mas seguiu em diante. Precisava encontrar com o tal líder antes que desse o horário do último ônibus que a levaria de volta. Imaginou que teria suas perguntas respondidas com o próximo mafioso que encontrasse, mas o acontecimento anterior se repetiu com o segundo, o terceiro e o quarto homem suspeito que encontrou pelas ruas do bairro.
Ela girou o ombro que estava um pouco dolorido pelo exercício e observou com certo grau de frustração o homem caído na sua frente. Aqueles mafiosos não eram fracos demais para impor medo a alguém? Se o líder fosse igualmente fraco, então por que Zoro ainda se submetia aquela dívida?
Kuina saiu da ruela em que indagara e batera no último homem e parou na calçada, pensando em onde mais iria buscar outros alvos. Porém, os pensamentos se distraíram quando uma limusine parou no meio-fio bem na sua frente. Ela mirou desconfiada quando o vidro escuro da janela abaixou lentamente e exibiu o rosto de um homem loiro. A franja dele caía sobre um dos olhos e seu olho visível tinha um exuberante tom azul. Inconscientemente, Kuina o comparou com o próprio noivo e soube que aquele homem desconhecido ganhava em beleza, mesmo tendo sobrancelhas engraçadas.
— Ouvi falar que uma linda mulher anda me procurando, então aqui estou. — disse o homem com um sorriso educado, abrindo a porta da limusine para ela. — Entre e conversaremos com maior privacidade.
Kuina apertou a mão em volta do guarda-chuva, hesitando diante tanta cordialidade. Então aquela era a pessoa que Zoro devia? Ele não parecia forte, mas definitivamente possuía um ar de liderança. Olhou de soslaio para a extensão brilhante do automóvel preto e entrou antes de conseguir se arrepender disso. Afinal, era esse o plano desde que pisou na cidade: encontrar o líder e resolver parte das dívidas do pai.
Kuina arrastou-se no banco lateral de couro macio ainda com o guarda-chuva firme nas mãos. Como o carro deu partida assim que ela se acomodou melhor, procurou manter a calma. O homem estava sentando de pernas cruzadas no banco diante de si, e ao lado dele repousava uma cesta cheia de frutas, chocolates e laços coloridos.
Um homem bonito, uma cesta de frutas e a limusine formavam um cenário muito esquisito. Ela mal podia acreditar que aquele homem era mafioso.
— Meu nome é Sanji.
— Kuina. — respondeu ela no automático.
O homem, que agora sabia se chamar Sanji, puxou um cigarro do bolso interno do paletó, mas pareceu lembrar de algo e voltou a guardá-lo no mesmo bolso.
— Soube que andou perguntando por mim. Alguns dos homens que você, hm, encontrou eram do Baratie e me informaram.
Kuina piscou surpresa e franziu o cenho.
— Espera, não eram todos da máfia?
Sanji deu uma tossida que parecia estar ocultando uma risada. Ela estreitou os olhos.
— Nem todo homem mal-encarado é mafioso, senhorita.
Não julgue um livro pela capa, relembrou ela, analisando-o dos cabelos claros aos sapatos lustrosos. De fato, não se podia acreditar em todos os estereótipos. Sanji era a prova viva que criminosos podiam ser charmosos e educados.
— Enfim, vamos ao que interessa. Estou aqui para finalizar a dívida de um homem chamado Roronoa Zoro. De quanto é a dívida?
— Roronoa Zoro — disse Sanji, demorando-se na pronúncia das sílabas como se saboreasse as letras do nome. — Imagino que o Roronoa não saiba que está intercedendo em favor dele.
Kuina apertou os lábios, mantendo-se firme. Sentia que mesmo que mentisse, Sanji saberia a verdade ao ler sua expressão.
— Não, ele não sabe. Mas isso não importa, não é? Eu tenho o dinheiro e estou aqui para pagar.
Sanji não aparentou felicidade ou descontentamento com sua revelação meio verdadeira. Ela esperava que o mafioso ficasse minimamente surpreso com a novidade de pagamento, mas nem isso ele aparentou. Aliás, nada nele indicava surpresa sobre o tema da conversa e isso não passou despercebido por Kuina.
O silêncio após sua fala estendeu-se por algum tempo com Sanji observando-a com uma estranha seriedade. Por fim, ele apertou em um botão que deve ter sinalizado algo ao motorista, pois o carro foi diminuindo a velocidade até parar junto a uma árvore frondosa.
— Você precisará me perdoar, mas não aceitarei sua intervenção. O acordo de pagamento da dívida é apenas entre mim e o Roronoa. — Sanji comentou de repente, mirando as próprias unhas bem aparadas. — Além disso, não acredito que a senhorita tenha dinheiro o suficiente para liquidar o valor. Essa é nossa parada.
Kuina ficou tão abismada com a rejeição que acabou saindo obedientemente do carro. Sanji a seguiu para o lado de fora, segurando a cesta com um dos braços.
— Foi uma conversa interessante, mas seu ônibus lhe espera, senhorita Roronoa. — estendeu a cesta para ela, que a pegou por puro reflexo. — É um presente. Da próxima vez pense primeiro na segurança do bebê antes de sair batendo em pessoas possivelmente perigosas. Nunca se sabe que tipo de maníaco pode estar circulando nessas ruas.
Kuina olhou ao redor enquanto ele falava, reconhecendo a estação de ônibus que usava para voltar para a cidade onde morava com a tia. No entanto, toda a sua atenção voltou-se para Sanji quando ele mencionou o bebê. Um calafrio percorreu sua coluna. Não tinha contado nem para Zoro, então como é que Sanji sabia? Empalideceu.
— E não precisa se preocupar com Zoro. Cuidarei muito bem dele. — complementou com um sorriso afável.
Logo após, Sanji despediu-se com uma mesura simples e entrou novamente na limusine. O automóvel partiu sem demora, deixando uma Kuina abalada para trás. Ela repetiu mentalmente a conversa com Sanji com uma atenção redobrada e teve certeza que em momento algum mencionou que estava grávida ou qual era seu sobrenome.
Mas, o mais importante era: o que ele quis dizer com cuidar de Zoro?
*
Sanji observava as ruas passando pela janela com o braço apoiado nas costas do banco e com a bochecha apoiada na mão. Os irmãos Roronoa eram, de fato, interessantes. Um era um alfa que abdicara das diversões mundanas contrariando sua natureza e a outra era uma beta que não pensava duas vezes antes de enfrentar alguém que tinha duas vezes seu peso corporal. Vendo como os irmãos agem, Sanji sentiu vontade de ter conhecido a mãe deles.
Mas afastou as divagações quando a voz de Bellamy soou pelo interfone da limusine.
— Para onde agora?
— Você irá devolver a limusine e eu irei para um compromisso em outro lugar. Sozinho.
— Sozinho?! Posso ficar quieto sobre você estar assumindo grande parte dos negócios do grupo e estar se passando por chefe antes mesmo do rito de sucessão, mas não posso deixar que ande sozinho. Seria como andar com um alvo nas costas.
Não houve resposta e achando o silêncio estranho, Bellamy estacionou a limusine no meio da avenida e abriu a janelinha que permitia a conversa direta com a parte posterior do carro. Porém, não havia mais sinal de vivalma ali além do próprio Bellamy.
Sanji sumira como uma assombração.
— Maldição!
Chapter 6: Blitz
Summary:
Sanji está cada vez mais cativado por Zoro e precisa tomar uma decisão difícil. Seu informante aparece com um detalhe impactante sobre Judge.
Notes:
(See the end of the chapter for notes.)
Chapter Text
Enquanto Bellamy se alongava nas reclamações sobre precaução e segurança, Sanji ocupou-se em trocar de roupa e vestir uma peruca longa e preta por cima dos fios loiros. Nos dias que precisava andar omisso por aí, ele dava preferência para vestimentas que não costumava usar diariamente. Abandonou, então, o traje social vinho — um dos mais bonitos de seu guarda-roupa e ficou satisfeito de estar usando-o quando conheceu a irmã Zoro, pois Kuina merecia o melhor de sua aparência — vestindo no lugar dele uma calça jeans escura e camiseta de mesmo tom, além de uma camisa xadrez de manga longa amarrada na cintura.
Trocou também os sapatos sociais reluzentes por um par de coturnos surrados que pegou de seu antigo quarto da última vez que visitou Zeff. Mas o detalhe que finalizava seu disfarce naquele dia era o óculos de lentes amarelas que comprou quando arrastou Zoro para um passeio e acabaram em uma lojinha de variedades. As lentes não possuíam grau e o óculos não combinava muito com o visual que montou, mas Zoro tinha dito um “fica bem em você” quando Sanji perguntou sua opinião e, bom... Sanji achou que valia a pena usá-lo vez ou outra, ainda que Zoro não fosse saber sobre isso.
Estava tão habituado a vestir disfarces que terminou de se preparar em pouco tempo. Colocou suas roupas anteriores cuidadosamente dobradas sobre o banco, pois não queria que elas ficassem amassadas, e encontrou sua chance para escapar do transporte quando Bellamy parou a limusine em uma rua secundária para deixar uma moça grávida atravessar a rua na sua frente.
Foi tudo rápido e discreto como de costume, logo Sanji misturou-se as pessoas nas calçadas mais adiante. Andou com calma, o rosto erguido. Não havia coisa mais chamativa do que andar encurvado e escondendo o rosto quando se desejava ser discreto, por isso ele agia seguro de si e olhava sem medo nos olhos de quem o encarasse. Durante a caminhada passou por uma barraquinha ao ar livre e aproveitou para comprar vários espetinhos de carne e legumes temperados, depois indo direto para um ponto onde pudesse pedir um táxi. O lugar para onde ia era um tanto longe para ir a pé e não estava disposto o suficiente para utilizar um meio de transporte cheio de outras pessoas, então acenou chamando um táxi que passava na rua. Quando se acomodou no assento traseiro, pousou o isopor com os espetinhos no colo, enquanto indicava o lugar para onde o taxista deveria guiar o carro.
No decorrer do trajeto que não demoraria muito mais a acabar, Sanji permitiu-se pensar em seus planos correntes. Sua rede de contatos era maior do que qualquer um poderia supor, o próprio Zeff não desconfiava do quão longe tinha chegado. Desde cedo iniciara planos de assumir o grupo Baratie, mas somente alguns anos atrás, com a debilidade física de Zeff surgindo, foi que Sanji iniciou seus maiores investimentos. Ademais, por trás da farsa de apenas querer seguir teimosamente os passos do homem que lhe criou, Sanji arquitetava maneiras de se vingar de Judge. Talvez a palavra “vingança” não refletisse com exatidão seu objetivo. Não queria que ele sofresse um pouco ou que carregasse uma marca que o lembrasse de Sanji pelo resto da vida. O que queria era destruí-lo completamente, derrubar o grupo Garuda junto com aquele homem abominável e dar um final definitivo.
Era o que podia fazer para compensar o sofrimento que ele e a mãe (além de diversos outros ômegas e betas) enfrentaram pelas mãos do grupo Garuda, e também para evitar que fizessem novas vítimas.
Sanji desceu do táxi depois de entregar uma nota maior do que o valor da viagem e seguiu por algumas ruas apertadas, que apenas permitiam o tráfego de bicicletas e motos, até alcançar um portão estreito com ferrugem cobrindo o gradeado. Quando o empurrou, o portão rangeu delatando sua entrada, mas não havia realmente alguém interessado nele ali. As pessoas que passavam pela ruela, a maioria usando-a como atalho entre as ruas um pouco mais largas, andavam apressadas como se não quisessem permanecer ali por mais tempo do que o necessário.
Após passar, Sanji fechou o portão e desceu as escadas de cimento nu. As escadas levavam a uma porta de tintura verde lascada, que ele abriu com uma chave que estava em seu bolso. Mal passou pela porta quando um cachorro pequeno e felpudo correu para esfregar o focinho na sua perna. Era um maltês branco chamado Merry e era mascote do morador dali. Por ser pequeno e fofo, fazia o papel de falsa-proteção enquanto a verdadeira ameaça para invasores — dois rottweiler chamados Thousand e Sunny — observava de longe em silêncio.
Sanji acariciou entre as orelhas de Merry, seguindo para colocar ração nas respectivas vasilhas de comida. Os dois cães que olhavam de longe se aproximaram esperando afagos do ômega antes de avançar eles mesmos para a ração recém colocada. Sanji também verificou a água e os tapetes higiênicos, pois não sabia a quanto tempo o humano responsável por eles estivera ocupado.
Depois de finalizados os cuidados com os cães, Sanji avaliou aquele estúdio improvisado feita no subsolo de um antiquário ainda em funcionamento. As paredes precisavam de uma nova pintura, mas não estavam em estado tão ruim. As luzes tinham sido trocadas para tornar o ambiente mais adequado ao morador, e as janelas retangulares no topo das paredes faziam a dose quase ideal de luz natural entrar durante o dia. O lugar originalmente era um cômodo único com uma pia e balcão numa extremidade e um banheiro anexo, mas improvisaram uma separação de cômodos a mais com divisórias de madeira decorada. Portanto, agora havia três espaços separados: um quarto, uma cozinha e a sala.
Seguindo o cheiro forte de tinta e de incenso de camomila, Sanji encontrou o morador no espaço que era a sala. Esse cômodo servia de ateliê também, havendo diversas pinturas, acabadas ou não, estendidas por todo lado. No centro estava o cavalete com a tela que Usopp trabalhava naquele exato instante, totalmente imerso na criação. Sanji avaliou-o. Usopp estava com os cabelos volumosos e cacheados presos com um elástico e parecia ser a única parte nele que não estava suja de tinta. Vestia um macacão que já possuía manchas antigas de outras pinturas, e nas mãos, um pincel e um paleta de plástico repleta de mistura de tintas.
Apesar do semblante de quem estava há muito tempo trabalhando sem parar e das roupas sujas, Usopp possuía um aspecto muito melhor do que quando se conheceram. Sanji o encontrou por acaso numa calçada qualquer há mais de um ano. Usopp, um homem trans ômega, tinha fugido da casa da tia que possuía sua guarda, pois sofria diversos maus-tratos. Passou a vender na rua pequenas imitações de quadros famosos para ter o que comer e para tentar custear os inibidores — e mais tarde a hormonioterapia. Entretanto, não vendia muitas telas e os períodos de fome prolongadas cobravam seu preço no corpo de aparência demasiadamente delgada.
Sanji não o ajudou por mera bondade, embora tenha se sentido condoído com a situação daquele ômega em situação de rua. Porém, ele foi mais circunstancial do que isso. Com uma análise rápida deu-se conta que os quadros, apesar de pequenos, possuíam uma qualidade admirável. Acabou oferecendo um emprego para o ômega de pele marrom: o de falsificador de pinturas. Usopp, que tinha 15 anos na época, ficou relutante sobre entrar para o mundo do crime, mas não havendo opção melhor, aceitou.
Sanji assistiu em silenciosa admiração Usopp mover o pincel sobre a tela com leveza, usando azul para realçar a figura que tomava forma. Pela natureza de seu trabalho e também por questões pessoais, Usopp preferiu morar em um lugar que não chamasse a atenção. Entregava excelentes cópias de telas, era pago e protegido por isso. Sanji procurou manter um relacionamento profissional estrito com ele e preferiu não explicar a fundo o que fazia com as imitações, mas sempre aparecia com uma nova tela para Usopp copiar.
A verdade era que, sabendo do interesse superficial e egocêntrico de Judge pela arte, Sanji vinha vendendo obras falsificadas para ele a preços excessivos. Para isso criara todo um esquema de falsos leilões e vinha extraindo grandes somas de dinheiro do grupo Garuda sem que alguém suspeitasse. Com esse dinheiro Sanji comprava informações para interferir indiretamente nos negócios do grupo Garuda e assim impedir que ele crescesse demais. Afinal, se você pretende dizimar alguém, é preferível que não o deixe ficar mais forte que você. Apesar disso, Sanji não tinha como saber tudo e percebia que ainda havia muito sobre as ações de Judge que ficava nas sombras de sua visão. E era por isso, justamente por isso, que não podia se distrair.
Sanji sentou no sofá que havia na sala de Usopp, esfregando o rosto com a mão. Por que dissera aquelas palavras mais cedo? Cuidarei muito bem dele? A frase saiu antes de sua razão perceber a estranheza no conjunto das palavras. Teria se deixado levar por causa da preocupação da irmã ou havia sido influenciado pelo romântico céu do anoitecer? Pff! Sanji largou-se no sofá, deixando a cabeça pender para trás. Naquela tarde deveria ter ido se encontrar com um informante, mas ao ouvir que uma mulher estava batendo em homens tatuados e com cicatrizes enquanto perguntava por um suposto líder, Sanji teve um pressentimento de qual era a identidade dessa mulher. Cancelou o compromisso com o informante e foi encontrá-la, mas não esperava ter que convencê-la a esquecer sobre uma dívida que nem estava na responsabilidade dela.
Não sabia dizer qual dos irmãos Roronoa era mais imprevisível: Zoro, que o chamou para transar depois de uma conclusão errônea, ou Kuina, que achou que espancar mafiosos era uma boa ideia. De olhos fechados, Sanji suspirou. Em uma situação como essa deveria ter dado prioridade para o informante, mas o Roronoa se preocupava genuinamente com a irmã e talvez esse sentimento tenha se estendido um pouco para Sanji pela convivência, ainda que pouca.
Isso, entretanto, não justificava de modo algum a maneira como aquele alfa surgia em seus pensamentos com uma irritante frequência. Ou como se esforçava cada vez mais para criar momentos que pudesse visitá-lo, usando até mesmo a desculpa de que queria fodê-lo — não que fosse 100% mentira. A presença dele o reconfortava por algum motivo, provavelmente porque sabia, àquela altura do caminho, que aquele homem não queria coisa alguma de si. Seu status de mafioso não significava nada além de ser uma pedra no sapato que as vezes aparecia para cobrar a maldita dívida dele. Nem seu status de ômega dominante o interessava — inesperadamente isso afetou um pouco sua confiança pessoal, mas não o suficiente para deixá-lo deprimido. Mas ao invés de reflexionar verdadeiramente sobre isso, fingia não notar. Não queria entender o que significava, não tinha tempo para isso.
— Sanji!
Alguém sacudiu de leve o ombro de Sanji, fazendo-o despertar do cochilo que imergira sem perceber. Abriu os olhos espantado — devia estar mais cansado do que imaginava se estava adormecendo fácil assim — e viu Usopp ligeiramente inclinado sobre si. Quando teve certeza que Sanji estava desperto, o pintor afastou-se e começou a mastigar um dos espetinhos com bastante ruído. Os cachorros também haviam se aproximado e, sentados ao redor de Usopp, encaravam o tutor com concentração.
Sanji deu um bocejo contido.
— Engraçado que até o cabelo preto combina muito contigo. Gostaria de pintá-lo algum dia, Sanji. Mas... Você está bem? — perguntou o pintor com preocupação genuína. A tela em que estava trabalhando estava bem perto de estar completa agora, faltava no máximo alguns retoques e, bem, colocar a falsa assinatura em algum lugar. — Está com cara de quem precisa tirar umas férias... Mafiosos tiram férias?
Sanji deu uma risada curta, movendo a cabeça levemente de um lado para o outro, testando o quão dolorido seu pescoço estava.
— Esse aqui não tira. Como está o andamento das telas que encomendei?
Usopp ergueu o polegar em um gesto positivo e andou até a parede onde havia um quadro de tamanho mediano coberto por um lençol fino. Prendendo o espetinho nos dentes, puxou o lençol com cuidado e revelou a pintura de beleza estupenda. Em uma reprodução praticamente perfeita, via-se na tela uma montanha amarelada em meio ao mar estrelado com peixes esqueléticos nadando para todos os lados. Sanji se aproximou para ver melhor a réplica do famoso quadro do artista Vinnit. Tinha sido trabalhoso adquirir o quadro, pois havia poucas fotografias confiáveis para servir de base. Então, restou a Sanji conseguir o original que estava em posse de um senhor excêntrico que morava isolado em uma mansão de campo.
— Usopp, sua habilidade é inquestionável. — disse com um sorriso satisfeito.
Mas Usopp tinha se afastado sem que percebesse, voltando algum tempo depois com um quadro menor em mãos. Sanji recebeu o quadro sem questionar o conteúdo. Sabia bem o que era, afinal também tinha fornecido a base para ele. O objeto estava envolvido por um tecido macio opaco que o impedia de ver os detalhes da tela, mas não se moveu para desembrulhá-lo. Levaria a tela do jeito em que estava.
— Não vai conferir? Fiz o melhor que pude para representá-la bem, mas...
Sanji gesticulou, interrompendo-o.
— Não preciso, confio na qualidade do seu trabalho. Não teria contratado você se não confiasse. — ao ouvir essas palavras Usopp coçou a nuca sem jeito, mas pareceu feliz de ser reconhecido. Sentindo uma onda de culpa por envolver alguém tão jovem em um esquema criminoso, Sanji lançou outro olhar para o quadro de Vinnit que seria o próximo a ser leiloado. — Amanhã mandarei alguém recolher esse e o “Margaridas” do mês passado. O original também será levado para que seja devolvido.
— Fico feliz em saber que será devolvido. — havia alívio em seu tom. Usopp buscou outro espetinho antes de continuar; os três cães ainda espiando atentos. — O quadro está em excelente estado apesar do tempo em que esteve escondido, então imagino que o dono atual o preza muito.
Sanji ergueu uma sobrancelha ao ver o pintor acabar o restante dos espetinhos em um piscar de olhos, mesmo estando frios a essa altura. Colocou uma mão no quadril, franzindo os lábios. Estava, sim, se esforçando para manter um limite profissional na relação entre ambos, contudo o comportamento do seu falsificador as vezes despertava seu lado mais fraternal. Usopp tinha a péssima mania de ignorar os horários de alimentação e somente procurar algo para preencher o estômago quando as tonturas ou as pontadas de fome o acometiam. Suspeitava que ele tinha adquirido esse hábito por ser proibido de se alimentar corretamente na casa onde morava. A tia regulava as refeições a mão de ferro, deixando as porções grandes para ela, enquanto o sobrinho precisava aguentar uma quantidade mínima de nutrientes ao dia, pois ela o responsabilizava pelos gastos extras de sua criação e pela manutenção da mãe de Usopp em um leito no hospital.
Era nesses momentos que Sanji lembrava que Usopp tinha apenas dezesseis anos e ainda estava no processo de superar o modo de vida que a tia lhe impôs injustamente.
— Posso comprar mais se ainda estiver com fome... — suspirou, por fim. — Está pulando as refeições de novo?
Usopp desviou o olhar e deu um sorriso forçado. Sanji nem sabia porque ele insistia em mentir descaradamente quando até mesmo o próprio Usopp sabia que era péssimo nisso.
— Eu... uh, estou comendo bem, não se preocupe com isso.
A incredulidade no rosto de Sanji deve ter sido bastante enfática, pois logo Usopp murchou os ombros e confessou tudo. Enquanto ele confessava a má alimentação, que consistia em alimentos industrializados em momentos esparsos, e a justificava com ‘estar tendo picos de inspiração ou vontade de adiantar o trabalho’, Sanji manteve a expressão conspícua. Deixou, inclusive, Usopp se alongar nas desculpas e só quando o jovem pintor cansou de dizê-las, Sanji o repreendeu.
Fazia poucos meses desde que Usopp começou a tomar os hormônios e as medicações corretas, pois quando Sanji o acolheu ele estava consideravelmente desnutrido e com a saúde fragilizada. A princípio, Sanji observou de perto até que Usopp ficasse estável, mas à medida que ficou mais ocupado — Zoro tinha um pouco de culpa nisso — acabou diminuindo a vigilância nos cuidados do ômega mais novo. Porém, notava agora que ainda era cedo para deixá-lo por conta própria.
Pelo menos a comida dos cachorros seguia o horário certinho, tinha até um cronograma de alimentação deles na parede acima da pia da cozinha.
— Você não me deixa alternativa, irei enviar alguém para ficar de olho na sua alimentação.
Usopp negou exageradamente.
— Uma babá? Eu não preciso disso! A companhia dos meus bebês é mais do que o suficiente. — disse, apontando para os cães que, vendo que não restara carne de espetinho algum, tinham se recolhido para as respectivas caminhas.
— Sou eu quem decido. Amanhã enviarei alguém junto com a pessoa que vier recolher os quadros. — informou, já indo em direção a saída. Ainda precisava conferir algumas coisas antes de finalizar o dia, então não podia se demorar mais. — E lembre-se de pedir a senha antes de abrir a porta. Não abra pra qualquer um.
— Tudo bem, tudo bem. — respondeu em um tom de lamento resignado, arrastando os pés atrás de Sanji para acompanhá-lo até a porta.
Sanji parou junto ao umbral da saída e virou-se para olhar o ômega cabisbaixo que lhe seguia. Sentia como se tivesse arranjando um irmão mais novo para cuidar. Levou a mão livre, a outra mão segurava o quadro menor embrulhado em tecido, para o ombro de Usopp, dando um tapinha desajeitado na pele suja de tinta.
— Se continuar fazendo esse trabalho excelente me sentirei na obrigação de te dar um presente, Usopp — viu o rosto de Usopp se iluminar de repente, mas logo o outro pigarreou para disfarçar. Sanji sorriu. — Tem em mente algo que queira?
Usopp mordeu o lábio, apreensivo em contar o que queria.
— Olha, não quero parecer ingrato, já ganhei um teto, sou pago para pintar e a minha mãe conseguiu instalações melhores no hospital graças a sua ajuda, mas... — esfregou as palmas suadas na roupa. — Eu adoraria descobrir o paradeiro do meu pai. Sei que é um pedido trabalhoso, e pelo o que minha tia disse, ele sumiu antes de saber que minha mãe estava grávida e... eu queria que eles pudessem se reencontrar, porque minha mãe nunca o esqueceu.
O pedido surpreendeu o mafioso. Sanji imaginava que por Usopp ser um adolescente e também por ter sido privado de certas vivências normais para sua idade, ele pediria algo mais supérfluo como ingressos para algum show, assinatura de algum famoso ou algo mais tecnológico como óculos de realidade virtual. Mas claro, vendo como ele se preocupava pela mãe debilitada em um quarto de hospital (o primeiro termo do acordo entre eles incluía ajudar a mãe de Usopp), deveria ter imaginado que o pedido levaria em consideração o desejo de alguém mais.
O pensamento involuntário de que Usopp era bom demais para estar associado ao Baratie lhe ocorreu de novo. Por fim, assentiu.
— Tudo bem.
Usopp piscou, logo movendo as mãos de modo inquieto enquanto falava.
— Sério? Mas, Sanji, você já não está ocupado demais? Não tenha pressa, posso esperar o quanto quiser.
Isso não era verdade, visto que a mãe não apresentava sinais de melhoras. Apenas estava em uma condição estagnada, mas não se sabia até quando essa condição seria mantida por mais que as instalações no hospital garantissem conforto. A doença dela não possuía cura, então foi o máximo que Sanji pôde oferecer.
— O tempo fica a meu critério, não se preocupe com isso. — ajeitou os óculos de lente amarela no rosto já virando-se para sair, e acenou em despedida de costas para o mais novo. — Mas lembre-se: nem todo reencontro é feliz. As vezes o melhor é permanecer na ignorância, mas avisarei quando encontrá-lo.
Sem virar para verificar o rosto intrigado do jovem ômega, Sanji iniciou a subida das escadas que o levariam para fora. De fato, estava mais ocupado do que poderia admitir e não precisava de outra atividade extra para distraí-lo, mas presente era presente. Quando alcançou a rua, buscou o celular no bolso para enviar uma mensagem a Bellamy. Era melhor iniciar a busca o quanto antes.
O céu exibia pinceladas alaranjadas e lilases do amanhecer já próximo quando Sanji adentrou o apartamento. O cansaço de passar a noite e a madrugada movendo-se nas ruas frias (negociando em segredo com alguns, aplicando castigos em outros) ainda não o afetara totalmente. Estava em suas roupas habituais molhadas devido a uma chuva súbita — mais cedo tirou o disfarce em um lugar seguro antes de tomar a direção de seu “lar”. Com a porta fechando-se à suas costas, retirou o paletó úmido e o deixou em cima da mesinha da sala sem se importar no dano remanescente que a umidez do tecido causaria a madeira.
Caminhou direto para a parede vazia de decorações, assim como a maior parte do apartamento também o era, onde havia um prego previamente fixado. Nas mãos estava o pacote que recebeu de Usopp: uma moldura que continha a primeira e única encomenda de caráter pessoal que fez ao pintor. Com cuidado, retirou a sacola plástica que serviu de proteção extra, depois tirou invólucro de tecido do quadro e o pendurou ali.
Sanji recuou dois passos e mirou a pintura com fascínio. O que Usopp tinha feito com seus pincéis e tintas era praticamente um milagre, visto que a fotografia que utilizou de base era pequena e estava tão desbotada que os detalhes começavam a se tornar indefiníveis. Porém, a mulher na tela era inegavelmente a sua mãe, Sora. O rosto com poucas marcas de sofrimento, o olhar gentil tão azul quanto o seu próprio, o cabelo loiro ligeiramente ondulado nas pontas. A melancolia engolfou o coração de Sanji, embora não tão forte como quando era criança. Nos primeiros anos depois de Zeff tê-lo resgatado, ele chorou tudo o que tinha pra chorar pelo falecimento de sua mãe e pela sua própria angústia. Chorou o suficiente para depois se sentir apenas cansado e oco, mas com o turbilhão de ansiedades um pouco menos sufocante em sua garganta.
De algum modo, a dor foi diminuindo à medida que os anos passavam. Tinha plena certeza que sentir-se acolhido na família criminosa e estranha de Zeff, ainda que tenha tido uma criação não convencional, tinha sido um dos fortes fatores para lhe ajudar a seguir em frente. Aprendeu a se defender em luta corporal e a reconhecer rastros de venenos, assim como a manusear inúmeros tipos de armas. Sua melhor habilidade, entretanto, foi a de controlar magistralmente seus feromônios de ômega dominante, quando devidamente medicado com inibidores, e aprender a subjugar alfas com eles. Todas essas suas habilidades desenvolvidas a muito suor e lágrimas, além da nova realidade como filho de Zeff, o temido perna-vermelha, lhe fazia acreditar ter superado todos os horrores do passado.
Isso até chegar aquela época do ano, quando as memórias sobre Sora voltavam com frequência e as cicatrizes distribuídas por seu corpo doíam como se fossem recentes.
Faltava poucos dias para o aniversário de morte de sua mãe, afinal.
*
A temperatura estava quente e o céu tinha poucas nuvens quando o menino se escondeu debaixo da mesa de uma das tendas da feirinha que acontecia em plena manhã de domingo. O clima abafado deixava qualquer um desconfortável, propensos a irritação. Mesmo aqueles que estivessem debaixo de uma sombra, como o menino estava no momento, não conseguiam esquecer do calor opressivo. E os gritos de vendedores em busca de clientes para suas mesas de vegetais e carnes deixava tudo mais caótico.
Agachado, abraçando os próprios joelhos, o menino de testa franzida tentava segurar as lágrimas que se acumulavam nos olhos. A pessoa de quem se escondia era sua própria mãe, mas não era que não gostasse dela ou algo assim. O problema era que ele andava se irritando muito com a facilidade que a sua irmã mais nova conseguia tudo o que queria. O menino, como irmão mais velho, precisava entender que as vezes ceder era melhor do que discutir, principalmente quando envolvia a irmã. Sua mãe lhe ensinou isso. Porém, como poderia deixar passar quando seu boneco de samurai perdeu um dos braços porque sua irmã insistiu em tomá-lo de suas mãos? Ele jogou o boneco quebrado na cara da irmã e ela começou a chorar, lhe rendendo automaticamente um sermão da mãe.
Sentindo-se injustiçado e concluindo que a mãe gostava mais da filha do que dele, o menino correu no meio da feira movimentada ignorando os chamados da mãe. Escondeu-se embaixo de uma das mesas que tinha um vendedor distraído, esfregando os olhos para tirar aquelas lágrimas irritantes tão logo se abaixou. Por que sua mãe não entendia o seu lado também? Aquele boneco de edição limitada só foi adquirido depois de reunir muito códigos promocionais das embalagens de picolé. Tomou tantos deles que ficou com os dentes azuis por vários dias e com uma diarreia terrível, mas tinha feito isso porque gostava do personagem!
De onde estava o menino conseguia ver quem passava na rua lotada entre as barracas enfileiradas da feira, mas também permitia que quem estivesse na rua, e fosse mais atento, o visse. De todo modo, ele não queria de fato sumir da vista da mãe, queria apenas se sentir importante o suficiente para ser procurado por ela. Um egoísmo tipicamente infantil. Por isso, quando ela surgiu com suor marcando as axilas da camiseta e com um semblante tão preocupado que espantou o menino, ele achou que já era hora de reaparecer. A sua irmã, aquela em quem ele tinha jogado o boneco, vinha agarrada a mão esquerda da mãe com o rostinho sério perscrutando os arredores. Havia uma pequena elevação avermelhada na testa da menina onde o boneco bateu e ao perceber isso o menino se arrependeu um pouco de seu ato. Gostava da irmã, apesar de todas as brigas.
De repente, o olhar da mãe bateu no seu e um sorriso aliviado dominou o rosto suado dela. Tudo pareceu que ficaria bem, eles resolveriam seus problemas, pediria desculpa a irmã e voltariam para casa a tempo de assistir o desenho Aliança de Insetos. Porém, um grito cortou o ar bem no momento que ele iria chamá-la e a mãe só teve tempo de empurrar a filha para longe quando virou e viu um homem apontando-lhe uma arma. Três disparos atingiram-na no abdômen fazendo novos gritos ecoarem da população que era testemunha do assassinato. Logo as pessoas corriam desesperadas, movidas pelo medo instintivo de sobrevivência diante uma arma de fogo.
O menino correu em direção a mãe berrando seu nome e caiu de joelhos sobre o sangue que começava a empoçar ao redor do corpo dela. As lágrimas caiam sem controle, enquanto pedidos de desculpa emergiam em meio aos soluços. Com as próprias mãos tentava impedir que o sangue fluísse, mas o líquido quente continuava a escorrer debaixo de seus dedos por mais que tentasse. O sentimento de impotência fazia seu corpo tremer. Olhou para o rosto dela buscando algum conselho do que fazer para impedir o pior, mas os cabelos e olhos escuros tinham dado lugar para cabelos claros e olhos azuis. O abdômen da mãe deu lugar a um peito liso vestido de um traje social.
Um sorriso débil se formou nos lábios sujos de sangue daquele novo rosto familiar, os olhos azuis tornando-se opacos pouco a pouco.
— Sanji — o menino disse com angústia na voz, mas agora ele não era mais um menino e sim um homem. As mãos que pressionavam o peito ensanguentado agora eram grandes e calejadas, mas ainda assim o sangue fluía vigorosamente.
De repente, um grito muito pior do que os outros invadiu seus ouvidos e ele rapidamente reconheceu como sendo a voz de sua irmã. O grito transmitia tanta dor, um sofrimento tão agudo! Levantou o olhar para ela, que estava de joelhos do outro lado do corpo de Sanji, apertando o próprio rosto com as mãos sujas de sangue. Quando ela abaixou as mãos, ele pôde ver que o sangue das mãos delas não vinham de Sanji e, sim, das lágrimas vermelhas que desciam de seus próprios olhos.
— A culpa é sua! — ela gritou, chorando copiosamente.
Zoro despertou suando frio, mas não moveu nada além dos cílios por longos minutos, como se caso ele se movesse pudesse tornar real o cenário final do sonho. Era um medo injustificado, mas seu cérebro não conseguiu ser racional depois do grito impactante de Kuina. Deixou o coração diminuir as batidas aceleradas e a sensação desagradável do pesadelo lentamente desaparecer do seu corpo.
Fazia anos que não relembrava de modo tão vívido a maneira como sua mãe morreu. Após presenciar a tragédia carregou consigo o peso da culpa de tê-la distraído com sua fuga, pois acreditava que se ela estivesse com a cautela habitual com a qual se portava, teria conseguido evitar que os disparos a atingissem. Sua mãe morreu por causa de sua implicância infantil.
Esse pensamento o deprimiu muito e poderia ter culminado em uma nova tragédia caso sua irmã não tivesse exigido tamanha atenção de sua parte nas semanas posteriores. Talvez por ser muito jovem e por ter presenciado de perto a morte da mãe, Kuina passou duas semanas posteriores intercalando entre momentos febris e sonos irrequietos dominados por pesadelos que a faziam gritar. Sem ajuda de adultos, Zoro fez o que estava a seu alcance. Os vizinhos não o atenderam quando tentou buscar ajuda, eles tinham medo de serem envolvidos em alguma rixa entre máfias, e os Roronoa não tinham dinheiro para levá-la para o hospital depois que o pai gastou tudo em um velório ostensivo para a esposa. Nem Zoro nem Kuina puderam comparecer ao velório visto o estado adoecido da mais nova, mas isso mal pareceu ser percebido pelo pai, que estivera transtornado depois de buscar os filhos na delegacia e de reconhecer a esposa no necrotério.
Essas duas semanas foram as mais longas da infância de Zoro e depois que Kuina se recuperou, descobriu que ela esqueceu tudo sobre o dia em que a mãe morreu. Zoro achou melhor assim, pois dessa forma ele seria o único a carregar o peso da culpa. Conseguiram, de algum modo, seguir em frente e com o passar dos anos ele parou de pensar tanto na mãe. Entretanto, algo devia estar enraizado inconscientemente em sua cabeça, pois anos depois, quando surgiu a oportunidade de ser pago para participar de lutas ilegais de alfas, habituou-se a deixar que seu oponente o golpeasse livremente até que, quando o oponente cansava, Zoro o derrotava com um único soco. Ele próprio não percebeu esse padrão de se deixar golpear à vontade para só depois derrotar o oponente, nem percebia como optava por uma derrota de um único golpe para evitar o excesso de derramamento de sangue alheio.
Porém, Kuina era muito perspicaz e compreendeu logo que aquilo era um tipo de autopunição do irmão mais velho. Ela nem precisou de maiores detalhes sobre a atividade que Zoro exercia nas noites de sábado (respeitava o espaço pessoal dele sempre que podia desde que começaram a morar separados), apenas ajudou-lhe a limpar os ferimentos no rosto e a colocar pomada nos hematomas no abdômen e costas. Ela fez tudo isso em silêncio e no final pediu, com a voz embargada, que ele parasse de se machucar. Zoro não conseguiu contrariá-la.
Entretanto, tudo isso estava no passado. Zoro já não participava mais de lutas ilegais (por mais que o organizador tenha insistido pelo seu retorno por mais de um ano) e não pensava na mãe com a mesma constância de quando tinha 10 anos. Com o passar do tempo compreendeu que os mortos não voltam e era um esforço inútil se lamentar para sempre. Além disso, duvidava que a mãe dele, tendo a personalidade que tinha, teria apoiado aquele comportamento.
De todo modo, o que mais o intrigou foi a presença de Sanji no sonho. Zoro afastou a coberta e se sentou na beirada do sofá-cama, curvado para a frente e com os antebraços apoiados próximo aos joelhos. Vestia apenas uma cueca folgada porque o calor estava forte e seu ventilador decidiu quebrar naquele início de noite quando houve uma queda de energia. O suor frio de antes deixou sua pele desconfortavelmente pegajosa.
Suspirou, levantando-se. Gostaria de não ter se incomodado com a morte do Sanji no sonho, mas a sensação desagradável ainda circulava dentro de si. Aquilo devia ser culpa da comida de qualidade duvidosa que ingeriu antes de se deitar. Existia algum provérbio sobre comida ruim causar pesadelos... Ou talvez fosse culpa de Gin. Ele vinha sendo duplamente irritante e insistente nesses últimos dias. Repetia a oferta para Zoro entrar para o Baratie e continuava mencionando curiosidades sobre Sanji, ainda que Zoro nunca o respondesse.
Na maioria das vezes Zoro continuava não lendo, mas, em alguns momentos, seus olhos demoravam-se o suficiente para entender o geral das mensagens. Foi assim que viu o comentário sobre o aniversário de morte da mãe de Sanji estar perto. Era um aviso de Gin informando que Sanji poderia agir distante pelos próximos dias, pois nesse período o ômega costumava afundar-se em trabalho e falar quase nada com outras pessoas. Gin não queria que Zoro o interpretasse errado caso Sanji desaparecesse por tempo indefinido — ainda alimentava a ideia de eles serem um casal — e por isso deu uma explicação rápida.
De todo modo, Gin estava errado. Zoro não se preocuparia por algo simples como um sumiço, no mínimo acharia que o outro perdeu o interesse nele.
Parou na frente da geladeira, coçando o peito. O pensamento não soava verdadeiro nem pra ele mesmo e isso o irritou. Zoro abriu a porta da geladeira com força, pegando a primeira lata de cerveja barata que viu e abrindo-a num estalido. Para sua terrível constatação, a cerveja que desceu por sua garganta estava em temperatura ambiente, tornando o sabor que já não era bom em algo ainda pior.
Ou seja, a geladeira também queimou na queda de energia.
— Porra — rezingou para o silêncio. Depois deu outro gole da cerveja de sabor terrível, pois não tinha nada melhor para tomar além de água.
Quando o seu azar terminaria?
Estava prestes a dar mais um gole quando o celular tocou. Como recebia pouquíssimas ligações e já passava da meia-noite, imaginou que só poderia ser Kuina ou a chefe do trabalho de segurança. Entretanto, ao olhar com indisposição para a tela do celular jogado no balcão, constatou o nome do ômega que o fez acordar com uma sensação de terror e a respiração descoordenada. Não conseguiu imaginar o motivo de estar sendo chamado de madrugada por ele, mas atendeu sem demora. E antes mesmo de pronunciar algo, uma voz abafada manifestou-se pela linha.
— Por que... por que... você não está aqui?
Zoro franziu as sobrancelhas. A voz de Sanji soava estranha, como se estivesse com dificuldade de verbalizar palavras.
— Está bêbado, sobrancelha enrolada?
Sanji não pareceu ter ouvido sua pergunta, pois não interrompeu um segundo de sua pronúncia de frases trôpegas. A impressão que dava era que a ligação foi feita por acidente e o celular devia estar debaixo de algum tecido ou caído em algum canto do sofá. Zoro não pretendia permanecer ouvindo os murmúrios de um bêbado, mas no momento que iria desligar, parou o dedo a milímetros da tecla. Havia um ruído diferente junto aos murmúrios. Parecia um fungado ou o ronquido de um animal. Aproximou o celular da orelha novamente para ouvir melhor. Dessa forma pôde identificar com maior facilidade o ruído de choro que permeava as palavras desconexas dele.
— Você me deixou para trás... Dói tanto...
Zoro desligou a chamada e encarou a lata de cerveja sobre a pia. O calor e a falta de ventilação adequada exaltavam o cheiro de nicotina que parecia estar entranhado nas paredes e nos poucos móveis, junto com o cheiro rançoso de óleo de motor proveniente da oficina. Estranhamente Zoro já estava habituado a ambos os cheiros, em especial ao cheiro do cigarro do qual um certo ômega era adepto. Por um momento, trechos do pesadelo quiseram voltar a mente como um mau presságio, mas Zoro agitou a cabeça e bebeu o resto da cerveja ruim.
E daí que Sanji estava chorando e possivelmente alcoolizado? Eles não tinham sequer uma relação de amizade para que Zoro precisasse se importar. Era até um alívio que não precisasse se envolver!
Bom, essa convicção durou no máximo 10 segundos antes dele vestir uma roupa qualquer, enfiar um boné na cabeça e amaldiçoar sua própria idiotice enquanto saía porta afora.
*
Em momento algum Zoro considerou a possibilidade de Sanji estar em qualquer lugar daquela cidade que não fosse o apartamento requintado. Movido, sem perceber, pelos instintos, ele pegou um táxi sem nem saber o nome do bairro que pretendia ir. Precisou descrever o que lembrava do entorno das ruas que passou quando Sanji o levou lá da primeira e única vez. Com certa dificuldade o motorista entendeu e o deixou perto da estação de metrô. Depois disso restou a Zoro andar a esmo pelas ruas, procurando reconhecer o prédio onde Sanji morava.
Em um estranho sinal de boa sorte, Zoro encontrou o prédio não muito tempo depois e passou pela entrada sem o menor receio de ser barrado. Como era um edifício de pessoas mais endinheiradas, havia a presença de um recepcionista alfa no hall para garantir a identificação dos visitantes. Assim que o viu, o homem levantou-se para interferir a passagem de Zoro, mas bastou um olhar de soslaio e uma amostra de sua aura para que o alfa recuasse de volta ao banco da recepção com o olhar baixo. Zoro, então, seguiu para o elevador sem se deparar com quaisquer outras pessoas e foi para o andar do apartamento de Sanji – curiosamente, esse detalhe ele tinha prestado atenção.
A porta do apartamento não estava fechada, bastou um leve empurrão para ela abrir sem fazer ruído. Sanji não era do tipo de pessoa capaz desse nível de descuido, Zoro bem sabia o quanto o outro podia ser meticuloso. Por isso atentou-se aos sons, procurando identificar qualquer sinal de invasão ou cheiro suspeito enquanto adentrava em silêncio. Porém, não encontrou algo de errado além do fato de a maioria das luzes estarem apagadas, proporcionando uma semiescuridão. O único cheiro que sentia era o do próprio Sanji; um cheiro que Zoro reconheceria mesmo se estivesse em meio de uma rua superlotada de alfas e ômegas, pois o aroma suave e elegante de maçã e vinho estava bem gravado em seus sentidos. Zoro seguiu o cheiro até o centro da sala onde estava mais intenso e encontrou Sanji caído atrás do sofá, vestido em um terno preto.
Agachando-se ao lado dele, Zoro percebeu que havia algo errado. Sanji estava caído em uma posição desconfortável e mesmo com a pouca luz deu para ver que o rosto avermelhado dele brilhava de suor. Zoro aproximou a mão da testa do ômega, comprovando que a temperatura estava acima do normal. O déjà vu deixou Zoro incomodado. Aquilo parecia muito com a febre emocional que sua irmã teve quando mais nova. Bufou. Não era hora de se incomodar com semelhanças, então ergueu Sanji do chão com cuidado e o levou para o quarto, deitando-o sobre as cobertas azuis da cama.
Zoro não conhecia Sanji com profundidade, embora eles tivessem compartilhado lençóis vez ou outra. Conhecia apenas algumas de suas nuances, contudo, supôs acertadamente que ele não desejaria ser levado ao hospital devido à natureza de seu trabalho. Gente com o seu tipo de vida fazia o possível para evitar os caminhos convencionais para não ter que explicar o que não podia. O lado positivo da situação em que se encontrava atualmente era que Zoro sabia o que fazer para aliviar a febre.
Primeiro ele buscou um pano limpo na cozinha e encheu um recipiente com água fria. Munido do necessário e recuperando o celular do outro que estava no chão também atrás do sofá (Sanji estivera deitado em cima dele), Zoro voltou para o quarto. O próximo passo seria retirar o excesso de roupa que o ômega vestia, mas logo Zoro se viu diante um impasse. O máximo de pele que tinha visto do corpo de Sanji tinha sido as mãos e um pouco do quadril quando estava chupando o pênis dele. De resto, Zoro costumava ou estar vendado, ou estar de costas nos momentos íntimos. Era notável o esforço que Sanji fazia de não expor o corpo, portanto Zoro não se sentiu a vontade de despi-lo naquele estado delicado.
Sanji moveu a cabeça na cama, murmurando algo ininteligível. Lágrimas escorriam do canto dos olhos, claramente sofrendo de alguma agonia dentro dos sonhos febris. Zoro não tinha tempo de hesitar. A temperatura corporal precisava ser abaixada logo caso não quisesse que Sanji tivesse problemas maiores. Tomando uma rápida decisão, ele desligou a luz do quarto e o despiu no escuro mesmo. Houve certa dificuldade, pois, além da falta de colaboração por parte de Sanji, Zoro não era bom em lidar com roupas sociais. Entretanto, conseguiu deixá-lo apenas com a roupa íntima e só depois começou a fazer as compressas frias no tronco, testa e nos pulsos de Sanji. Também abriu totalmente a janela do quarto para que a brisa da noite ventilasse o ambiente (como era noite de lua nova, favoreceu a escuridão no quarto) e tentou fazê-lo beber um pouco de água, mas caiu mais água no travesseiro do que foi ingerido pelo ômega.
Por fim, Zoro o cobriu com um cobertor fino que encontrou em um armário e acendeu a luz. O aspecto de Sanji parecia melhor. O rosto já não estava avermelhado ou coberto de suor, além dos murmúrios terem parado. Percebeu haver olheiras no rosto pálido do ômega, olheiras que não lembrava de ter visto da última vez que se encontraram. Mas quantos dias tinham se passado desde então? De todo modo, quanto a isso não tinha o que fazer além de deixá-lo em repouso. Virou-se para ir embora, satisfeito com o próprio serviço. A inquietação no peito finalmente tinha se acalmado, considerando que ela de fato tivesse existido, e não via mais motivos para permanecer ali. Contudo, sentiu um puxão leve no tecido da sua calça e, de cenho franzido, encarou a mão pálida que o segurava frouxamente.
— Não vá — disse em uma voz fraca que mal pôde ser ouvida.
Sanji não devia estar realmente desperto, pois Zoro sequer conseguia imaginar ele fazendo um pedido desses estando em plena consciência. A conclusão era óbvia: era melhor ir embora e fingir que não tinha ouvido esse pedido inusual.
Porém, Zoro permaneceu ali, encarando as pálpebras ainda fechadas de Sanji. Apertou os punhos, amaldiçoando-se outra vez pela própria idiotice enquanto tirava os sapatos e o boné para deitar-se no espaço livre no colchão.
E novamente teve plena certeza que Sanji ainda não estava em seu estado normal, pois ele logo se aconchegou com o rosto pressionando o ombro de Zoro. Mas o alfa nada fez para afastá-lo. Em vez disso, ficou totalmente imóvel para não gerar desconforto em Sanji ou correr o risco de despertá-lo. Respirou fundo, sentindo o cheiro de Sanji envolvê-lo confortavelmente e pouco tempo depois adormeceu.
*
Sanji despertou com o quarto excessivamente iluminado e piscou várias vezes tentando entender o motivo de tanta luz, mas não demorou a compreender. A janela do quarto estava totalmente aberta, além das cortinas estarem afastadas por completo para os cantos. Fuzilou a janela com o olhar estreito antes de cobrir a cabeça com o cobertor para tentar evitar a luz excessiva. Poderia ter voltado a dormir um pouco mais caso não tivesse achado estranho a textura do cobertor. Voltou a expor a cabeça e mirou com atenção o tecido que o cobria. Por que estava coberto com uma toalha de mesa? O que tinha feito na noite anterior?
Por mais que tentasse lembrar só tinha a vaga impressão de chegar no apartamento sentindo o corpo pesado e de se arrastar com dificuldade em direção do quarto. Espera. Alguém apareceu e lhe ajudou a chegar no quarto. A memória estava nebulosa, mas lembrava-se de mãos firmes o erguendo do chão e depois afastando sua franja para colocar um tecido úmido sobre a testa. Mas quem...? Franziu o cenho, esticando-se para afundar o nariz no travesseiro vizinho ao que estava usando. De imediato seu corpo relaxou ao reconhecer o cheiro do alfa de cabelos verdes. Algo como gengibre e chá verde. Inspirou mais um pouco, deslizando a bochecha ali até se dar conta do que fazia.
Sentou-se, esfregando os olhos. A tranquilidade que se espalhou dentro de si ao reconhecer que foi Zoro quem o ajudou não lhe passou despercebido. Contudo, talvez pela lassidão causada pela noite febril, Sanji não se preocupou muito com esse ponto. Olhou ao redor procurando rastros da presença do alfa, mas apenas restava o silêncio. Avistou, então, uma folha de papel embaixo do abajur na mesa de cabeceira, algo que certamente não deveria estar ali, pois sequer lembrava de ter papel em casa além dos que haviam dentro de seu escritório muito bem trancado. Puxou-o para investigar melhor e percebeu se tratar do verso de uma propaganda de pizzaria que deveria estar em alguma lixeira.
Escrito em uma letra bem rabiscada, quase indefinível, tinha a curta mensagem:
“O quarto é seu, não precisa pagar. Você ronca.”
Sanji piscou surpreso e releu a frase. Roncar? Sanji tinha quase certeza que não roncava, mas a ousadia do alfa de acusá-lo daquilo fez uma risada ribombar em seu peito. E por que Zoro resolveu deixar uma mensagem de despedida ao invés de simplesmente ir embora? Ele achava que Sanji o teria interpretado errado? Bom, vindo de Zoro, não duvidava de coisa alguma. Afastou a toalha de mesa de cima do seu corpo, constatando somente agora que vestia uma camisa e uma calça que não combinava entre si. Isso só podia significar que Zoro tinha trocado sua roupa.
Porém, longe de estar preocupado de alguém ter visto seu corpo depois de tantos anos se esforçando para escondê-lo, Sanji deixou outra risada emergir de seus lábios ao imaginar o Roronoa, com aquelas mãos desajeitadas e rosto compenetrado, tendo o cuidado de trocar suas roupas de trabalho para uma mais leve.
Por fim, levantou-se e saiu do quarto. Mais tarde poderia visitá-lo caso sua agenda não estivesse muito cheia; não lembrava bem o que teria para aquele dia. Precisava conferir, mas se fosse auspicioso, Sanji levaria algumas bebidas alcoólicas para Zoro. Ou talvez fosse melhor simplesmente levá-lo para um lugar onde pudessem ter uma refeição decente, apesar de que qualquer coisa seria melhor do que os instantâneos que o alfa comia.
Seus planos, porém, foram esquecidos quando parou em frente ao quadro de sua mãe. O rosto de Sora ali representado continuava plácido e beatífico, mas em vez de despertar bons sentimentos em Sanji, o efeito foi o total oposto. Ao ver Sora, bastou um momento infinitesimal para Sanji lembrar-se novamente dos objetivos que tanto lutou para alcançar e que agora estava tão perto de concluir. Lembrou-se que naquela estrada que resolveu cruzar voluntariamente não havia espaço para esquecer das responsabilidades ou fingir que suas mãos não estavam sujas; sequer havia tempo para se envolver com alguém. Envolvimentos levavam a dependências emocionais e dependências viravam fraquezas. O discernimento caiu em si como uma facada no estômago: Zoro estivera muito próximo de virar sua fraqueza. Tão próximo que somente a ideia de afastá-lo lhe desagrava.
O entusiasmo de minutos atrás foi substituído por uma racionalidade fria. Sanji andou até a bancada da cozinha e abriu a gaveta onde guardava carteiras de cigarro. Nela alcançou o isqueiro reserva que também era guardado ali e ativando a ignição, aproximou a pequena chama da propaganda de pizzaria que estivera o tempo inteiro em sua mão. A chama subiu rápido pelo papel, mas Sanji somente a largou quando o fogo estava prestes a lamber seus dedos. Só então o papel em chamas foi deixado no cinzeiro para ser consumido até o fim sob o azul atento dos olhos do ômega. O cheiro de queimado mal foi registrado pelo seu olfato de tão concentrado que estava em seus pensamentos.
Sanji não podia negar que o sexo casual e as refeições compartilhadas foram agradáveis. Também se divertiu com o comportamento incomum dos irmãos Roronoa, além de não ter achado ruim a sensação de ser cuidado pelo alfa na noite anterior — o cheiro de Zoro ainda parecia envolvê-lo confortavelmente mesmo tendo se passado mais horas do que imaginava desde a partida dele.
Mas era hora de dar um fim definitivo a tudo mais relacionado a Roronoa Zoro.
*
Apoiando os antebraços no balcão de madeira escura, Sanji encarava o whisky sem gelo dentro do copo em mãos. O novo encontro com o informante foi finalmente marcado depois de semanas sem comunicação e aconteceria em um bar dentro do território dos Mink. Inquieto como estava, chegou mais cedo do que o programado. Não estava disfarçado, embora devesse estar. Era uma negligência incomum, mas Sanji não estava em seu normal desde a noite anterior e não conseguiu se importar com isso.
No dia anterior, quando decidiu encerrar qualquer contato com Zoro, resolveu não visitá-lo mais a noite. Em vez disso, enviou uma mensagem para ele comunicando um encontro no terraço de uma velha fábrica de sapatos, aproveitando para arquitetar o cenário correto. Zoro, inclusive, apareceu no momento ideal: havia um sujeito pendurado na beirada do terraço com as mãos agarrando-se desesperadamente no cano de metal que era o único suporte que evitava sua queda. Era um beta que foi pego no flagra tentando roubar dados da Quatre Sources d’Eau, uma rede de hospedarias onde eram realizadas negociações entre grupos mafiosos e que pertencia ao Baratie. Sanji, como um bom futuro líder, escolheu aquela oportunidade para esclarecer também sua posição para três homens do Baratie que sabia estarem insatisfeitos sobre os boatos de sucessão e que eram influentes entre os membros mais antigos do grupo, e os levou para serem testemunhas no terraço.
Assim que Zoro chegou, ficou óbvio o estranhamento dele quanto a presença dos três subordinados e do infrator pendurado na beirada. Sanji estava apoiado ao lado das mãos do beta, com um cigarro entre os lábios.
— Por favor, me tirem daqui! Eu não sei de nada, eu juro! — o homem pendurado berrava, engasgando-se com as próprias lágrimas e muco. Os dedos começavam a escorregar devido o suor do nervosismo e isso aumentou seu desespero.
Sanji soprou a fumaça sem pressa antes de olhar para o beta. Não havia preocupação de serem ouvidos, já que a fábrica ficava em um amplo terreno isolado. O interrogatório, pois era disso que se tratava, já durava quase 1 hora, mas nada do homem confessar quem tinha lhe contratado para roubar as informações.
— Certamente você deve saber o nome.
— Eu não sei, juro que não sei! Me ligaram de um número privado e fui forçado a fazer isso!
Sanji não precisava que ele dissesse o motivo, pois já sabia que este beta era um aliciador de jovens estrangeiros. Vivia em aeroportos para escolher seus alvos, os roubava enquanto estavam deslumbrados pela cidade e depois os deixava viciados em drogas. Seu azar foi que uma das jovens que morreu por overdose era a filha de um político de Drum que iniciou uma caça ao responsável pela tragédia. A pessoa que o chantageou para roubar as informações provavelmente também sabia disso e embora Sanji tivesse uma leve suspeita sobre quem se tratava, precisava de algum indício que comprovasse.
Antes que Sanji pudesse perguntar algo mais, o beta não suportou mais o próprio peso e despencou em direção ao chão. O som indicou que tinha caído sobre o carro abandonado que estava logo abaixo. Sanji apenas olhou de relance para as mãos que não estavam mais ali, demonstrando pouca preocupação acerca do infrator. Apontou para um dos subordinados.
— Vá verificar se está vivo. A altura não é tanta, então duvido que tenha morrido. Deve ter no máximo quebrado uma perna, mas precisamos entregá-lo para o pai da garota.
O subordinado lançou um olhar desconfiado para o único alfa presente e depois desceu pelas escadas. Zoro continuava no mesmo lugar com algo de confusão no rosto. Sanji desencostou-se da mureta, aproximando-se de Zoro em um passo relaxado. Um sorriso malicioso moldou os lábios e ele tragou o cigarro uma última vez antes de jogar no chão e pisar em cima.
— Isto — Sanji retirou um maço de notas de dinheiro do bolso e enfiou dentro da camiseta de Zoro tal como alguém faria na meia de uma dançarina stripper. — É pela noite de ontem. No entanto, devo informá-lo que seus serviços não são mais necessários, Roronoa. Foi bom enquanto durou, mas agora você... me entedia. — deu um tapinha no ombro de Zoro e rumou em direção a escada, sendo seguido prontamente pelos subordinados restantes. — Mandarei alguém recolher seus próximos pagamentos.
Havia muitas maneiras mais amistosas para finalizar o que foi mantido entre eles e aquela certamente não tinha sido uma delas. Sanji ainda teve tempo de ver a expressão ilegível dele, a aura de irritação ao redor, e desde então sentia-se inquieto. O fato de não estar dormindo bem desde que o cheiro de Zoro findou-se dos tecidos na cama também não ajudava.
Sanji bebeu a dose de whisky e pediu mais uma para o barman.
— Você está bebendo e não está... com outras roupas. — constatou o homem recém chegado, sentando-se na banqueta próxima ao ômega.
O homem, beta, era mais alto que Sanji e vestia uma jaqueta de couro com espinhos de metal sobre uma camisa florida bem fora de moda. Fazia parte do grupo Garuda há muitos anos e circulava um boato de que ele tingia o cabelo de loiro em homenagem ao filho mais velho de Judge. Entretanto, o boato errara a qual filho ele homenageava.
Sanji cumprimentou erguendo o copo.
— Duval.
— E fumando bastante também. — o homem olhou para o cinzeiro sobre o balcão que estava com três metades de cigarros amassados e muitas cinzas. — Aconteceu algo?
Sanji suspirou.
— Nada que valha a pensa mencionar. O que você precisava relatar de tão importante que precisamos nos encontrar pessoalmente?
Duval ainda parecia preocupado — ele era um pouco irritante ao nutrir quase uma devoção a Sanji por ter lhe salvado a vida quando mais novo —, mas não insistiu no assunto. Pediu uma bebida para o barman e quando este se afastou para servir outra cliente, Duval continuou:
— Eles andam sendo muito mais cuidadosos com as informações importantes, mas está um clima estranho. Parece que se preparam para uma guerra... Também não tive mais contato com Kaku depois que ele foi chamado pelo chefe.
Bom, Sanji não ficou surpreso com isso. Esse era um futuro que em algum momento chegaria, sem dúvida. Judge devia estar buscando as ervas daninhas dentro do Garuda com muita atenção para que seus estratagemas não vazassem.
— E tem mais: ele trouxe uma nova mulher para a sede. Dizem que pretende se casar, mas não acredito muito. Seu comportamento não parece o de alguém apaixonado.
Sanji bufou em escárnio, embora o peito tenha se apertado um pouco. Depois da morte de sua esposa oficial (muito depois da morte da mãe de Sanji), Judge não tinha demonstrado interesse em arranjar uma substituta. Escolher um novo sacrifício (afinal eram todas vítimas de suas garras), justo quando pretendia armar um ataque? Alguma coisa não estava se encaixando bem nessa história.
Sanji ergueu a sobrancelha ao ver Duval batendo os dedos ritmicamente na superfície de madeira em um gesto ansioso.
— Diga.
Duval engoliu em seco.
— Essa mulher... Tem uma filhinha ômega.
Sanji conseguiu evitar que sua expressão se alterasse ao ouvir aquilo, mas o sangue pareceu fugir de seu rosto, denunciando o quanto a informação o impactou.
Notes:
Agora falta pouquinho pra acabar :D Espero que estejam gostando
Some random stranger (Guest) on Chapter 1 Tue 28 Jun 2022 09:52AM UTC
Comment Actions
duckingbirb on Chapter 3 Sat 09 Jan 2021 03:14AM UTC
Comment Actions
meizo on Chapter 3 Thu 14 Jan 2021 10:15PM UTC
Comment Actions
Tammi (Guest) on Chapter 6 Tue 31 Dec 2024 06:25PM UTC
Comment Actions