Chapter 1: Miss Mills
Notes:
Essa é mais uma tentativa de desenvolver um trabalho longo num fandom pequeno. Feedbacks são muito bem vindos!
Chapter Text
1898, Nova York.
— Não se preocupe, pequena. Eu prometo que vamos cuidar de você, para que você possa ver o Sr. e Sra. Maurice o mais rápido possível. — ele se abaixou, na altura dos olhos da criança. Passou os dedos por uma mecha de cabelo dos cachinhos caramelo dela.
A menina retribuiu seu doce olhar com um sorriso esperançoso.
— Senhorita Binford, leve a pequena Laura para conhecer as outras crianças. — o doutor apontou e a enfermeira se aproximou, tomando o controle da cadeira de rodas.
Conforme a garota se distanciava, os dois homens a acompanharam com um sorriso suave e aconchegante, até que não a vissem mais.
O doutor chamou o cavalheiro à sua frente para a sua mesa, aconchegando-se na cadeira e rapidamente o ofereceu um conjunto de folhas tiradas de dentro de um arquivo em sua gaveta e uma caneta tinteiro.
— O senhor já pode imaginar o que minha Laura tem, não é? Por Deus, doutor, não me diga que ela está louca. — tomando o papel em suas mãos, Maurice perguntou, de voz apreensiva.
— O sintoma mais básico e primário que eu observo me faz pensar em Esquizofrenia, porém, esse transtorno é muito raro numa criança tão pequena, então, eu devo observá-la melhor para poder chegar a um diagnóstico mais preciso.
— Ela chegou no hospital dizendo bobagens! Disse que estava perseguindo um pardal cor-de-rosa que a mãe mandou para buscá-lá. Como isso pode não ser suficiente para um diagnóstico?
— Eu não vou descartar nada por enquanto, mas é possível que essas alucinações sejam provenientes do estresse de não estar perto da mãe ou de se sentir sozinha.
— Doutor Kreizler, crianças não se jogam de cima de três lances de escada porque se sentem sozinhas.
— O senhor se surpreenderia se soubesse o que a cabeça conturbada de qualquer ser humano pode fazer. — Laszlo disse em tom baixo, quase cochichando. Não pôde evitar ter relances rápidos dos casos de acidentes que já teve acesso.
Sabendo disso, ele desviou a direção de seus pensamentos. Não tinha necessidade de reviver todas aquelas mazelas enquanto conversava com um responsável preocupado, — e nem quando não conversava.
— De qualquer forma, este é o documento que transfere completamente os cuidados da Laura do hospital Royal Gavin, para o Instituto Kreizler. — Laszlo explicou enquanto via o mais velho tomar a caneta de forma quase desesperada.
“Louis F. Maurice”.
Ele riscou no final de três folhas, e não parecia preocupado com letras miúdas ou cláusulas que pudesse querer saber, afinal, ele não estava entregando sua criança nas mãos de um médico qualquer, mas sim para o alienista mais famoso de Nova York.
Dr. Laszlo Kreizler, doutor e diretor do Instituto Kreizler Para Crianças.
Caso ele não fosse o gênio que era, nem o incontestável devoto dos mistérios da mente humana, apenas o peso de seu nome já seria exigiria respeito por si só. E para pessoas como o Sr. Maurice, apenas isso bastaria.
— Então estamos resolvidos. Quero a Laura bem, e o mais rápido possível, e mesmo que eu não possa visitá-la todas as semanas, eu exijo atualizações do estado dela. Envie para meu escritório, não para minha casa.
— Feito. E devo avisar que nós costumamos avisar quando a primeira visita estará disponível antes de estabelecer uma agenda com visitas regulares.
— Ok. Isso é tudo?
— Por hora, sim. — o cavalheiro levantou-se da cadeira, ajeitando seu fraque e alinhando o cabelo. — Não se preocupe, senhor Maurice. Sua filha está em boas mãos.
O semblante preocupado se transformou em um mais exigente ainda.
— Veja bem, doutor Kreizler. Eu estou confiando a minha Laura ao senhor por que me disseram que o senhor tinha tato para cuidar dessas crianças problemáticas, porém eu espero que esse tato se estenda aos responsáveis por elas também.
— Perdão, senhor. Eu não estou entendendo. — Lazlo franziu as sobrancelhas.
— Para todo e qualquer registro, seja ele documentado ou não, Laura não é minha filha. Ela é apenas a órfã que minha antiga empregada deixou para trás, e nada mais que isso. Não deve dizer isso na frente de minha esposa e nem de ninguém!
Laszlo tomou um grande puxão de ar antes de pôr seu sorriso mais social no rosto, pesado por carregar uma nova e precisa conclusão sobre o cavalheiro de barba grisalha.
— Claro, eu entendo perfeitamente. Definitivamente, Laura não é sua filha. — tomou-se de um ar de sarcasmo — E o senhor, definitivamente não teve nada a ver com o desaparecimento da mãe dela. Não é necessário dizer duas vezes.
Se o doutor não fosse tão necessário naquele momento, Louis Maurice teria o socado ali mesmo, sem a menor pompa. Ele fitou tão profundamente os olhos castanhos do doutor, que a ameaça que ele recitava em sua mente quase se tornou legível em sua testa.
Mesmo que o cavalheiro estivesse prestes a galopar para cima de Laszlo, isso não pareceu o suficiente para causar medo ou até mesmo a menor das comoções. Talvez ele não tenha pensado direito sobre quem era o médico. Aquele que já havia visto aquele mesmo olhar diversas vezes, o olhar de um criminoso quando tinha a verdade jogada na cara de modo tão repentino.
— Tome cuidado, doutor. Não vai querer cometer essa gafe outra vez. — disse ele antes de atirar a caneta contra Kreizler.
— Tem razão, não pretendo. Vou acompanhá-lo até a porta, Senhor Maurice. —
— Não é necessário.
Ele saiu bufando porta á fora.
Aquela parecia ser a última vez no dia em que introduziu os termos do instituto para um novo paciente e seu responsável. A noite já havia chegado e a exaustão veio com ela. Laszlo sentou folgado em sua cadeira, que não era a melhor para descansar o corpo depois de um dia de trabalho, mas ainda servia para algo. Tomou nas mãos o contrato que Maurice havia acabado de assinar e começou a revisá-lo superficialmente. Um contrato bem básico mas preciso para as necessidades da pequena Laura. Após ter fraturado a tíbia e lascado vários ossos pelo corpo, a menina precisaria de tratamento ortopédico, além de estudo sobre seu estado mental que explicasse o que levou uma criança tão pequena a um acidente tão perigoso. Este último serviço, o Royal Gavin não oferecia. E essa era uma das satisfações no trabalho: Laszlo queria fazer o que ninguém mais fazia, queria acolher e estudar aqueles que ninguém mais queria.
Para qualquer pai, seria muito mais fácil aplicar castigos caso seu filho não se comportasse em público, enviá-lo para um novo colégio caso ele não aprendesse o suficiente ou chamar um padre exorcista, caso ele tivesse terrores noturnos. Mas os que o confiavam seus filhos a ele eram aqueles que tinham a noção de quão frágil, ainda que poderosa, é a mente humana. Esse seria sem dúvidas o maior legado de Laszlo. Era o que o fazia ser o que ele era. O Alienista.
Apenas… O Alienista.
Divagou por alguns segundos. Ele pensou duas ou três vezes se deveria levantar e se organizar para ir para casa, mas uma moleza inexplicável se apoderou de si.
Quando estava quase sendo vencido pelo peso de suas pálpebras, batidas firmes na porta o fizeram despertar completamente.
— Entre. — ordenou, ainda sem focar totalmente em quem exatamente havia mandado entrar. Quando subiu o olhar um pouco mais, encontrou o rosto familiar e olhos cristalinos de Sara Howard.
Se surpreendeu um pouco ao ver a moça ali, ainda mais num horário como aquele. Ela adentrou o escritório completamente e ele a perguntou qual o motivo da visita repentina.
— Eu passei tempo demais na agência hoje também, mas não quis ir para casa ainda. — disse ela, o fitando seu estado cansado do doutor. — E parece que não fui a única.
— Eu até te ofereceria chá, mas creio que a minha secretária já tenha partido. Whiskey?
— Não se incomode, já estou de saída também. — avisou, sem sair de sua postura modesta, segurando sua bolsa pequena em conjunto com as belas vestes de dama. Ela usava um lindo vestido de saia azul acinzentada, que combinava perfeitamente com todas as peças do traje, seguindo nessa paleta de cores até o chapéu. — Além disso, vim avisá-lo sobre uma mudança no nosso calendário social.
Ele se viu confuso, por um momento, mas seu silêncio e atenção indicaram que ela deveria continuar.
— O coquetel de aniversário do John vai ser no sábado, ao invés da quinta-feira.
— Eu não vou mentir, sempre achei que o sábado parecia um dia mais auspicioso para uma festa, mas ele não quis me ouvir. — Laszlo respondeu em tom levemente brincalhão. — O que aconteceu para mudarem tão em cima da hora?
— A senhora Moore ficou doente e não tem previsão de melhorar até quinta-feira. John até pensou em cancelar, mas ela não quis atrapalhar a festa do neto, e insistiu para que ele mudasse a data para o sábado, ao invés.
— Hum. Parece bom. Então vou ter mais tempo para escolher um fraque digno dos colegas de bebedeira de John Moore.
— E eu vou ter mais tempo para escolher um vestido que os ajude a se acostumarem a me ver no fumódromo.
Uma rápida passada de olho no relógio o fez apressá-los mais para embora. Laszlo ofereceu uma carona casual para Sara, que aceitou facilmente. Ajustou a camisa e trancou as gavetas, e quando estava prestes a vestir seu casaco, imerso em qualquer conversa casual com a Srta. Howard, ambos ouviram outro conjunto de batidas na porta.
Laszlo parou por dois segundos, antes de pedir que a pessoa entrasse. Geralmente ele não se colocaria em alerta quando alguém ameaçava atrapalhar seu encerramento de expediente, mas estando no Instituto, isso poderia significar uma situação de perigo, ou uma criança buscando um último conforto antes de dormir.
A enfermeira Dowell mostrou as caras na entrada assim que obteve permissão.
— Doutor Kreizler, há uma mulher que deseja vê-lo.
— Diga a ela que venha amanhã cedo, o instituto está fechado por hoje.
— Ela me insistiu demais que viesse chamá-lo, não sei se ela sairia daqui sem ver o senhor.
Sara os olhou, a enfermeira parecia acanhada na porta, não queria entrar completamente, como se estivesse com pressa para sair, e Laszlo assumia uma face séria e de incômodo crescente.
— Pois bem, diga a ela ou chame a polícia, caso ela não queira sair. Isso é um Instituto de saúde, não uma repartição pública.
— Laszlo, calma. Pode ser algo importante. — Srta. Howard o pediu.
— Eu duvido. — respondeu. — Essa mulher disse, ao menos, o seu nome? — disse, já apertando o chapéu na cabeça.
— Ela disse que se chama Danielle Faustin, e que veio em nome do Royal-Gavin.
Howard e Kreizler se entreolharam. Não necessariamente pelos mesmos motivos. O hospital Royal-Gavin não costumava e nem gostava de ter contato com o Instituto Kreizler, a menos em prol de um cliente importante. Nem mesmo Laszlo sabia o motivo pelo qual os gerentes do mega-hospital o desconsideravam tanto. Talvez achassem que o alienista tinha menos direitos de ser cheio de si do que eles, talvez não gostassem da humanidade com que a gestão de Laszlo tratava seus pacientes.
Seja qual fosse o motivo, era muito estranho ter uma funcionária do Royal Gavin procurando por ele num horário tão inoportuno.
— Danielle Faustin? Eu conheço esse nome de algum lugar. — Disse Sara, quase absorta na tentativa de ligar o nome a alguém.
Laszlo e Sara se olharam de novo, mas dessa vez para concordarem que ambos estavam curiosos o suficiente para saber quem era aquela que estava atrapalhando sua ida para casa. Além do fato de que até para o doutor, este nome não parecia comum. Soava… pomposo.
— Mande-a entrar, Srta. Dowell. — mandou o homem e a enfermeira assentiu.
O médico tirou o chapéu e a investigadora passou a mão pela saia do vestido, num reflexo de tentar ajustar qualquer indelicadeza com sua aparência, afinal não sabiam com que tipo de pessoa estariam lidando. Poderia ser uma dondoca? Não, mesmo que houvesse apenas ricos e ricos apenas no hospital, não seria fácil ver uma dama da sociedade trabalhando lá. Talvez a secretária de algum diretor ou advogado? Não daria para saber até que ela entrasse.
Assim que a moça passou pelos batentes, quebrou qualquer expectativa anterior. Viram uma mulher alta e de pele fria e pálida, seus cabelos tinham o tom de castanho mais escuro que existiam e estavam amarrados numa coroa de tranças muito práticas. Suas vestes eram simplórias: camisa branca com certo babado nas mangas e saia de linho marrom, sem qualquer badulaque desnecessário ou jóias, mesmo que das mais simples. Sem aliança no dedo, seu status era de Senhorita.
Os olhos igualmente escuros, eram em formato de amêndoa, naturalmente afiados, sua boa pele indicava certa juventude, porém suas expressões eram cansadas e seu rosto parecia dado à exaustão. Ela estava um tanto ofegante apesar de não ter corrido ou se esforçado fisicamente para estar ali.
— Doutor Kreizler, boa noite. Eu peço perdão por atrapalhá-lo. — assim que começou a falar, Laszlo prestou atenção ao quão incomum seu sotaque parecia, sem saber identificar exatamente de onde vinha.
— Agora isso não tem mais importância, Srta. Faustin. — Laszlo afirmou — Gostaria de se sentar? — estendeu a mão indicando o pequeno sofá ao lado da mesa principal.
O convite fez a ficha de Danielle cair, finalmente. Após tantos imprevistos e obstáculos para tal, enfim havia conseguido a atenção do grande alienista. Ela entrou esbaforida, quase desesperada pela audiência que seus olhos quase se esqueceram de notar que havia outra pessoa no escritório. Laszlo se adiantou ao ver a falta de modos e o início de um silêncio incômodo.
— Aliás, esta é minha amiga, Sara…
— Howard. — Danielle completou, dirigindo-se à investigadora com um sorriso mais relaxado — É um grande prazer conhecê-la, Srta. Howard. Ouvi tantas coisas boas sobre a Senhorita.
— O prazer é meu, Srta. Faustin. Por favor, sente-se. — sua indicação suave e aconchegante foi o que fez a mulher sentar. — Laszlo, eu agradeço pela carona, mas eu já devo ir. Cuide bem da Srta. Faustin.
Antes que tivesse tempo para virar-se, Danielle se levantou de novo.
— Não! Por favor, fique! — disse. Ao notar sua exaltação indiscreta, ela baixou o tom da voz. — Acredito que… talvez até a Senhorita possa me ajudar também.
Sara baixou a bolsa e se dignou a sentar lado a lado com Danielle, agora tomada ainda mais pela curiosidade que antes a deixara atônita a alguns minutos atrás.
— Então, o que a trás aqui? — após andar pela sala e buscar um copo de água no pequeno bar móvel, ele ofereceu a ela e se apoiou de costas com as mãos na borda de sua mesa.
— Primeiro, eu quero me desculpar novamente. Eu não dei informações verdadeiras à sua enfermeira. Meu nome, na verdade, é Danielle Mills. — ela segurava o copo com certo nervosismo, quase apertando-o com as duas mãos.
Apesar de odiar admitir, ela sabia que esses nomes abriram portas. E ficou um pouco surpresa com a rapidez com que o doutor resolveu atendê-la ao dar esses dados. Pensou que, dependendo de qual nome o fez repensar em atendê-la, talvez isso pudesse dizer um pouco sobre ele.
— E eu não estou aqui por conta do Royal-Gavin, apesar de trabalhar lá.
— Disse a minha enfermeira que não iria sair antes de falar comigo?
— Disse. E acho que ela entendeu meu apelo. De enfermeira para enfermeira.
— E eu quero ser o próximo a entender.
— Eu estou aqui porque tenho uma criança que precisa de ajuda. Meu irmão mais novo, Dennis. É uma longa história.
— Acho que temos o resto da noite toda. Continue.
— Não sei se vocês puderam reparar, mas eu não sou de Nova York. Eu venho da Inglaterra, apesar de morar aqui há muito tempo. Quando tinha 12 anos, minha mãe me enviou pra cá para ser cuidada pela minha tia, Marilyn Faustin, para que eu pudesse ter uma educação mais fina. Eu deixei minha terra e isso teve resultados, graças ao bom Deus.
De repente, o sotaque misturado, os modos e maneirismos e até o tom de voz passaram a fazer mais sentido.
— Passei a maior parte da minha vida estudando e hoje sou enfermeira-chefe na Ala dos Queimados no Royal-Gavin, por isso nunca tive tempo para visitar minha família, então passei todo esse tempo trocando cartas com minha mãe, principalmente. Mas então, ele chegou. E trouxe uma carta dela.
Danielle sentiu o olhar incerto do médico a cobrir.
Alguma coisa nele gostaria que ela fosse mais concisa, ou apresentasse uma postura mais confiável. Não sabia dizer o que não o permitia ter vontade de esperar que ela se explicasse.
— Por que está tremendo, Senhorita Mills? — o doutor quase a interrompeu, tirando de Sara um olhar de desaprovação. A britânica olhou para as próprias mãos um tanto surpresa. Não havia notado esse sintoma em si até ter sua atenção chamada para aquilo.
Novamente, o silêncio dúbio enevoou o lugar.
— Por que eu não o conheço.
— Como? Não conhece a mim?
— Não conheço ele. Meu irmão.
— Perdão, o que está dizendo, Srta. Mills?
— Como eu disse antes, moro aqui há 17 anos, e me comunico com minha mãe durante todo esse tempo, e mesmo assim, nunca soube que tinha um irmão mais novo. Ele simplesmente chegou na minha porta, perguntando meu nome e dizendo que precisava de um lugar para ficar. E eu o acolhi, claro. Li a carta que ele trouxe e sem dúvidas era de minha mãe, mas ela não nunca me falou nada sobre a existência dele.
— Como você poderia não saber, Srta. Mills? E como pode afirmar que ele é seu irmão se acabou de dizer que não o conhece? — Sara questionou.
— Eu juro por Deus no céu, nunca soube nada sobre um irmão da idade dele. Nunca. Jamais. Nada sobre minha mãe ter engravidado novamente e nem sobre ter adotado o filho de alguém.
— E a carta que ele trouxe? O que dizia?
— Bom, essa foi a primeira vez em que ela o citou, mas também não disse muito sobre ele. Ela apenas diz que ele é o meu irmão mais novo, que ela o enviou para Nova York para que eu o cuidasse e pede que…
— “Que”?
— Que eu não negue a ele a chance que ela não me negou.
— E o que isso significa?
— A permissão e a chance de imigrar e construir uma vida melhor. Ela quer que eu o acolha como minha tia fez comigo. Quer que eu o crie.
— Isso é… muito inusitado. — Laszlo pos a mão no queixo — Eu entendo a sua surpresa, Srta. Mills, mas… por que me procurou? No que precisa da minha ajuda?
— Esse é o ponto. Se ele fosse um garoto normal, eu jamais questionaria um pedido de minha própria mãe, e estaria tranquila sobre tê-lo em minha casa, mas ele não é. Ou não “está” normal. Ele é desequilibrado. Está doente da mente. E eu gostaria que o senhor descobrisse o que ele tem e o tratasse.
Finalmente, o ponto do assunto em que Laszlo costumava se interessar.
— Conte-me mais, Senhorita Mills.
Continua…
Chapter 2: Miss Mills e o menino
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Uma linha azul no horizonte. Limpa e sem outras embarcações no entorno limitado, o que ele imaginou ser difícil acontecer. Após ver tantos navios zarpando das Docas de Londres, imaginou se seria mais calmante saber se haviam outros garotos de sua idade fazendo aquele tipo de viagem, e se sim, quis conhecê-los. Faria qualquer coisa para se confortar melhor e derrotar aquela planta carnívora que parecia engolir seu coração como uma mosca.
Ele olhou para cima, dando uma última olhada na paisagem, e ouvindo o som das gaivotas esfomeadas se misturar com as milhares de vozes ambíguas, com a adição das rodas das carroças trazendo e levando pessoas de todos os lugares da Inglaterra. Ele havia acabado de descer de uma, preso como um cachorro pelas firmes mãos da velha senhora. Ela também parecia distante, engolia a seco a cada minuto, segurava a única mala com força e olhava para o mar com desolação, mas ele estava muito aflito para notar tudo isso.
Ela tirou um pequeno relógio do bolso da saia do vestido.
— Está adiantado. — disse ela, olhando para o objeto. O puxou pelo pulso no caminho direito. O movimento abrupto fez o garoto perceber a grande movimentação em direção ao recém-aportado T. J. Manners.
A cada passo que dava, o menino sentia sua presença falhar e uma grande pressão sob sua cabeça, além de seus pulmões que haviam desaprendido a respirar da maneira correta à alguns dias atrás.
A multidão se juntava mais claustrofobicamente ao redor do portão de embarque, fazendo o espaço entre cada indivíduo mais apertado a cada minuto. Parecia uma muralha se construindo ao redor do jovem, até um momento onde ele já não podia ver mais a paisagem traseira. O que o facilitou a fuga foi notar que a velha também não sabia como reagir ao furor do porto londrino. Tudo para eles parecia desajeitado. Ela não sabia como avançar, não sabia se havia uma fila a ser feita ou se deveria forçar seu caminho entre as pessoas. Ele, impetuosamente, puxou seu pulso do aperto dela e tomou a direção contrária ao de todos, abaixando-se e correndo como um pequeno camundongo. Ele nem a viu mais depois disso, e nem se preocupou em notar se ela havia o visto. Tudo o que ele teria que fazer era se virar e encontrar um jeito de voltar para Nottinghamshire. Estava livre.
Estaria livre, se realmente tivesse fugido.
Se não estivesse assustado de mais como um bebê, teria tido a coragem de contrariar a empáfia da velha de o pôr dentro de um transatlântico e o mandar para Nova York.
Se tivesse feito isso, não estaria comendo purê de batatas na companhia de Danielle Mills.
— Dennis! — ele sentiu ter seus olhos abertos quando ouviu seu nome, apesar de não ter estado com eles fechados na mesa.
A enfermeira o olhava profundamente, como se tentasse enxergar os lados de sua alma. Ela fazia isso com muita frequência, desde o momento em que ele bateu em sua porta e ela atendeu.
— Eu preciso sair agora de manhã, mas não demoro. Eu voltarei antes da hora do almoço, então não deve se preocupar em cozinhar. — ela se levantou em sua postura tensa. Passou os olhos pela mesa rústica até a outra ponta, para vê-lo.
— Você tem ovos? — perguntou com voz fraca, sem fazer contato visual.
— Como? — ela retrucou a pergunta e viu a já abalada postura do menino vacilar mais.
— Ovos… de galinha. Eu… gostaria de fazer um omelete. — chegava a ser deprimente a forma passiva e complacente que Dennis usava suas palavras. Ele tinha suas mãos na colher e no prato até o começo da conversa, mas no momento atual, estava encurvado, de cabeça baixa, apertando as mãos magras uma contra a outra em baixo da mesa.
Ela não pode deixar de soltar um suspiro sôfrego. Em seu coração, aquilo parecia tão simples, ainda difícil de lidar.
— Claro. Acho que há alguns ovos no cesto, em cima do gabinete na cozinha. Mas acho que vou trazer mais. Você pode usá-los, mas tome cuidado para não se queimar no fogão.
A cada minuto que permanecia ali, se tornava mais difícil para ela ter a disposição de ir onde deveria. E essa sensação tentava prendê-la numa coleira com frequência.
E isso era um grande problema, considerando que ela não tinha espaço em sua vida para morrer de piedade por um adolescente penoso em sua casa. Já tinha o hábito de lutar contra esse sentimento odioso enquanto trabalhava no Royal-Gavin, vendo e tratando de doentes e moribundos todos os dias e o dia inteiro. Ir para casa no final do dia, tomar um banho demorado e beber de um licor desnecessariamente caro era a terapia para lidar com a vida que escolheu, mas agora ela passava seu tempo livre vigiando um pequeno camundongo inglês que parecia ter algum momento de paz apenas quando se concentrava em bater alguns ovos e jogá-los numa frigideira quente.
— Tranque a porta, Dennis. Caso precise de algo, pode pedir a sra. Guinevere, do andar de baixo. Eu não me demoro.
Enquanto descia as escadas, se perguntava incessantemente se não deveria voltar e fazer algo bom para seu irmão antes do que aconteceria com ele naquela tarde, já que não teve coragem de explicar para o garoto sobre seu encontro com o doutor Kreizler.
De face para o caos natural de Nova York, ela pôs o pé na rua, mas sem tirar a cabeça do apartamento.
***
Na noite passada, Danielle pôde sentir que teve o suficiente após a conversa com o doutor e a investigadora, apesar de sentir olhares não muito valorosos dos dois. Na mente dela, Kreizler esteve soando um pouco amolado durante a conversa, em contra partida, Sara Howard parecia extremamente compadecida, quase que com pena.
Sensações horríveis de se despertar nas pessoas.
De qualquer forma, ela conseguiu convencer o doutor de que tinha um pobre menino perturbado em sua casa, após se sentir compelida a desenterrar toda a sua história de fuga disfarçada de “migração”.
O ano era 1881, e a pequena Danielle Mills dava seus primeiros sinais de amadurecimento, mas não os relacionados às experiências que a vida nos oferece, mas sim aquele que ocorrem com todos os adolescentes ao final da infância. Já se podia ver que não puxaria sua mãe em algumas das características mais marcantes da mulher. Havia um senso comum sobre mulheres de ascendência asiática serem significativamente mais baixas quando comparadas com mulheres ocidentais, mas isso não acometeu a jovem. A mistura de genes deu à Senhorita Mills uma boa altura, membros cumpridos e traços de corpulência, o que, na visão de alguns, a faziam parecer mais velha.
Sua mãe tentou de tudo para que esses “alguns” tirassem essa ideia da cabeça. Ela mesmo havia sido alvo da luxúria e desejo masculino aos 16 anos, meses antes de dar a luz a sua filha mais velha.
Mesmo que a mãe tenha tentado de tudo para proteger a garota, infantilizando-a, cobrindo-a, a impedindo de aprender as tais “habilidades de esposa” antes do tempo que considerava certo, não funcionou muito, afinal, seu pai também fazia parte desse grupo de “alguns”.
O senhor Mills tinha uma forma distorcida de oferecer sua filha para os fazendeiros ao redor do vilarejo em busca de melhores parcerias ou relações para seu sítio mínimo e sua família. Não tinha a ver com casamentos arranjados, como quando há duas crianças e seus pais a prometem uma para a outra. Era 50 vezes mais aterrorizante.
— Eu vou me casar com você, garotinha. — havia um homem de careca enrugada encontrando a melhor forma de se encurvar em direção á pequena. — Seu pai me deu a benção. — ele apanhou as costas da mão dela e depositou um beijo molhado lá.
Foi naquele momento em que Danielle reconheceu que havia virado uma mulher, por que aprendeu a reconhecer a visão das pessoas sobre sua vida. Sina de toda e qualquer fêmea humana vivente em sociedade.
Ela jamais poderia esquecer o sorriso dele: desajeitado, falso, forçando ternura, além de um dente de ouro implantado ao lado de um dente claramente apodrecido.
Aquilo foi a gota d'água. A senhora Mills criou uma missão para si mesma: não permitir que todo o sentido da vida de sua filha se tornasse satisfazer e perder-se nos braços de qualquer homem medíocre. Então ela se lembrou de outra mulher que ousou desafiar a suposta autoridade dos egoístas, a prima dela e ex-cunhada Marilyn, mulher de atrevida fama, havia feito bem em se casar novamente com Johnson Faustin, herdeiro de posses em Nova York. Ninguém melhor que ela poderia entender sobre não aceitar quando a vida parece lhe oferecer apenas opções terríveis.
Embarcou Danielle no mesmo ano, em direção em Nova York, de forma legal, como uma protegida da Senhora Faustin, e assim ela foi criada. Se tivesse que arranjar um marido, que fosse um homem inteligente, moderno e que valesse a pena, apesar de que essa jamais foi a vontade da jovem de Nottinghamshire. Ela se buscou se dedicar apenas aos estudos, nas áreas onde as mulheres tinham a permissão social de se dedicarem. Se formou enfermeira e tomou lugar de prestígio na família por seguir o próprio caminho, ao mesmo que ouvia opiniões e conselhos de velhas matronas sobre abandonar a vida corrida e se casar.
O diretor do Royal-Gavin não pode evitar surpresa ao ver o currículo acadêmico de uma mulher cujas pálpebras descansavam sob o teto decorado dos Faustin. Ficou tão surpreso que a deu uma chance e não foi desapontado em momento algum. A britânica olhou para frente e para frente apenas, e na altura de seus atuais 30 anos, pôde ter orgulho de seu cargo como enfermeira-chefe da ala de Queimados do hospital Royal-Gavin.
Mesmo que isso significasse não poder ter orgulho de mais nada.
Antes de ir embora do Instituto, Laszlo ofereceu uma carona para as duas, mesmo que indossada por Sara, Danielle relutou insistentemente. Já era muito humilhante aparecer do jeito que ela fez, logo aceitar ser escoltada até sua casa já seria abuso.
De alguma forma, Sara a conseguiu convencer que seria melhor para todos ali que Danielle aceitasse. Mills criou uma observação sobre quão inteligentemente persuasiva poderia ser Srta. Sara Howard. Inclusive, ela admirava isso.
Na carruagem que balançava levemente, estavam os três. Sara e Kreizler de um lado e a Srta. Mills do outro. Ela se preocupava em se manter calada e olhando pela janela, não fitando algo específico mas passando os olhos castanhos sobre qualquer coisa que o caminho mostrasse.
Enquanto isso, Laszlo tinha o cuidado de analisá-la por alguns segundos e pensar sobre todas a informações passadas sobre ela e o garoto. E na visão dele, o que parecia a assombrar mais era a repetição, o ciclo e a responsabilidade. Ela enfatizou diversas vezes o ato de migrar em busca de um ambiente melhor para se criar, sabendo da dificuldade e agora via se repetindo. Haviam grandes chances de que os eventos que a trouxeram a Nova York tivessem relação com o estado de seu irmão, mas ele não apostaria todas as suas fichas nisso ainda.
A primeira parada foi o apartamento dela. Assim que começou a sentir algumas gotas de garoa pintarem o vidro da carruagem, ela agradeceu mentalmente a si mesma por ter cedido e aceitado. Se tivesse ido a pé poderia pegar esse pequeno pé d'água no caminho.
Seu modesto mas confortável apartamento ficava em um caminho contramão das ruas para a bela casa Howard, então teve motivos ainda maiores para mostrar sua gratidão pela carona.
— Não tem de que. — Laszlo a assegurou, com um suave sorriso amigável.
Antes que pudesse pensar em abrir a porta e sair, Danielle tomou ar num alto suspiro. Não sabia como Dennis teria ficado o dia inteiro sem ela, e se estaria seguro e inteiro no momento em que ela entrasse em casa.
— Eu vou pedir que não se preocupe, Srta. Mills. Eu estarei aqui amanhã a tarde, como combinado.
— Eu nem sei se estou fazendo certo, e me sinto mal que o senhor tenha que vir até aqui, mas não sei como ele reagiria se soubesse que quero levá-lo para um Instituto mental. — o sinal de insegurança era recorrente na voz de Danielle e em outros aspectos.
— Está fazendo o melhor, sem dúvidas. — Sara a olhou fundo nos olhos, inclinando certa confiança à britânica.
Danielle deu boa noite os dois, agradeceu mais uma vez pela carona, já fora da carruagem.
A viagem deveria seguir para a mansão Howard dessa vez. De volta aos momentos de observar o mundo de dentro da cabine, Sara notou um clima enigmático sondando os arredores de Laszlo.
— Eu poderia dizer que conheço esse olhar, mas prefiro te perguntar o que está pensando. Está curioso?
— Esse caso me parece estranho.
— Não é um caso nem um criminoso, Laszlo. É um garoto. Como ela disse, um adolescente com problemas de comportamento. Problemas esses que você vai tratar.
— Sei disso, mas estou inclinado a confiar na minha intuição, Sara.
— A intuição de que um garoto com crises de choro, raiva, e provavelmente delírios está passando por um período de anormalidade? Grande intuição!
— Eu conhecerei ele amanhã, foi por isso que me ofereci para tal. Mas não tem nada a ver com ele, mas sim com ela.
— O que quer dizer?
— É estanho e chega a ser um tanto… ridículo o fato de termos conversado todo esse tempo e ela ainda não ter contado toda a verdade.
A dama loira não podia dizer que compartilhava da sensação inusual de seu amigo, mas sabia o que aquilo significava:
— Há uma agonia dentro dela, e isso é claro. Mas ela tem todas as razões para estar aflita, ou você dúvida disso também?
— Muitas vezes, agonias são apenas segredos implorando para ser contados.
Continua…
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