Chapter 1: Prólogo
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Ser delegado de polícia era a coisa mais exaustiva que Gerard poderia fazer na vida. Ou melhor, ser o delegado do bairro mais rico de Nova Jersey era ainda mais desgastante. Naquela região, esperava-se que todos os crimes fossem solucionados — afinal, os moradores pagavam alguns dos impostos mais altos do estado.
Felizmente, tinham ele. Gerard ocupava o cargo há apenas três anos, mas, nesse período, já havia recebido um prêmio por serviços prestados à comunidade. Enquanto o índice de solução de crimes em outras delegacias girava em torno de metade dos casos, a delegacia em que trabalhava saltara de 30% para 65%. Ele estava determinado a fechar o ano com, pelo menos, 80%. Ambicioso? Talvez.
Gerard Way tinha 36 anos e, desde que se tornara delegado, sua vida social praticamente acabou. Como era responsável pela investigação criminal do bairro, cabia a ele solicitar inquéritos policiais, coordenar escrivães e investigadores, determinar quais ações deveriam ser tomadas — desde a ida ao local do crime até a busca por testemunhas. Se alguém fosse preso por um oficial na rua, era sua responsabilidade decidir juridicamente se o ato configurava crime ou não.
E tudo isso acontecia ao mesmo tempo, o tempo todo.
A verdade era que a vida de Gerard estava longe de ser simples. Quando finalmente voltava para casa, os problemas não desapareciam. Ele apenas se permitia ir embora quando sentia que havia adiantado o máximo possível e minimizado o risco de acumular trabalho. O resultado? Jornadas exaustivas e desgastantes.
Mas nada se comparava à parte mais difícil do seu dia: lidar com as investigações em andamento. Ter que encontrar palavras para explicar a uma família que a causa da morte de um filho desaparecido há semanas foi uma das coisas mais cruéis que já presenciou fazia Gerard questionar sua própria existência neste mundo.
As coisas aconteciam tão rápido que, às vezes, Gerard não se sentia um ser humano normal. Podia passar horas focado em um único assunto, virar noites em turnos incessantes e esquecer-se completamente de comer ou beber algo. Na maioria das vezes, os relatórios sobre as descobertas dos investigadores lhe tiravam o apetite. Descrever minuciosamente os detalhes de um crime — como a vítima foi encontrada e tudo o que envolvia o ocorrido — era um processo extremamente desgastante.
O estado era violento. E ele sentia que seu trabalho não passava de um esforço inútil para conter o inevitável. Essa sensação de enxugar gelo o deixava esgotado. Gerard sabia que isso lhe custaria a saúde, a sanidade, sua família e qualquer resquício de vida social.
Quando decidiu batalhar pelo cargo de delegado titular, jogou sua vida pessoal no lixo. Mal tinha tempo de ir para casa e, quando ia, não conseguia dar a atenção que a esposa merecia. Sua mente estava sempre sobrecarregada. Já esteve no lugar de um delegado substituto e sabia que não era a pior coisa do mundo. O salário era relativamente bom, a carga horária bem menor e as responsabilidades, definitivamente, menores. Para quem deseja uma vida tranquila, dedicar-se à família e ainda manter um emprego estável, era uma ótima opção.
Mas não era para ele.
O respeito que conquistara como delegado titular era diferente. Comandar uma delegacia sempre foi seu objetivo. Mas, como o Tio Ben dizia, "com grandes poderes vêm grandes responsabilidades". Gerard riu quando o pensamento passou em sua cabeça.
Gerard era casado há cinco anos com uma das artistas contemporâneas mais respeitadas da atualidade. O trabalho de Lindsey com prata e cobre passou a valer milhares de dólares depois que um comprador anônimo deu início a uma especulação sobre suas obras. Além de talentosa, ela era a mulher perfeita para ele. Lindsey Ballato Way, uma mulher de beleza marcante, com um magnetismo que atrai olhares sem que precise fazer esforço. Seus traços eram bem definidos, quase esculpidos — um rosto de formato levemente oval, com maçãs do rosto proeminentes que lhe dava uma expressão forte, quase desafiadora. A pele, pálida como porcelana, contrastava com os cabelos escuros, lisos e sedosos, que caem em cascata abaixo dos ombros. Às vezes, os prende em um coque desalinhado, deixando fios soltos moldarem seu rosto com um charme despreocupado. Os olhos eram hipnotizantes. Grandes e expressivos quando relaxada. Quando irritada, tornava-se afiados e estreitos. As mãos, antes delicadas e macias, passavam a maior parte do tempo com alguma ferida ou queimadura, devido à natureza do seu trabalho.
Era uma noite de outono — como qualquer outra — quando ele fechou a tampa do notebook e pressionou os dedos contra os olhos, numa tentativa inútil de afastar o cansaço que o acompanhava há tempos. O ambiente ao redor estava escuro, e a luz azulada do computador era quase a única iluminação no cômodo. Uma luz fraca vinda do corredor iluminava parcialmente a sala.
Gerard não percebeu a escuridão até estar nela.
Mais um dia de turno dobrado. Mais um dia que não percebeu as horas passarem rápido. A mesa de trabalho estava desorganizada, coberta por papéis, arquivos e algumas anotações rabiscadas. No canto da mesa, uma xícara de café, completamente cheia e fria. Ao lado, um cinzeiro cheio de cigarros apagados.
Gerard fumava, às vezes. Não se orgulhava disso. Gostava de fumar nos intervalos, especialmente quando Brian o forçava a fazer uma pausa, com uma xícara cheia de café em uma mão e um Carlton mentolado na outra. Sempre que percebia que Gerard dobraria o turno, ele repetia esse gesto. Brian era o tipo durão que jamais lhe daria um abraço, mas demonstrava cuidado nesses detalhes.
Brian, o delegado substituto, tinha quase cinquenta anos. Seus cabelos eram tão brancos quanto neve. Antes de assumir o cargo de delegado substituto, passara dez anos como investigador da polícia. Ele e Gerard trabalharam juntos na solução de diversos crimes e no desmantelamento de centenas de facções. Eram bons nisso. Ótimos.
Gerard olhou o relógio no pulso. Quatro horas haviam se passado desde que Brian a xícara de café na sua mesa. Levantou os olhos e percebeu que não havia mais ninguém da equipe de investigação ao redor. Estava completamente sozinho no departamento. Era hora de ir para casa, finalmente. Desligou os aparelhos e apagou as luzes da sala antes de se dirigir até a entrada da delegacia. Lá, o policial de plantão, Harrison, estava distraído com uma revista nas mãos, os pés apoiados sobre a própria mesa de trabalho.
— Dia puxado hoje, Harrison?
O oficial se assustou.
— Sr. Way! Não sabia que ainda estava aqui.
Gerard não precisou dizer nada — Harrison tirou rapidamente os pés da mesa e tentou esconder a revista antes de se levantar e fazer uma continência. Gerard apenas acenou com a mão, com um sorriso gentil no rosto.
— Alguma coisa para mim antes de ir?
— Não, senhor. Está tudo tranquilo no plantão hoje.
— Está bem. Tenha um bom serviço, Harrison.
— Obrigado, Sr. Way. Tenha um bom descanso.
Por volta das sete da noite, Gerard saiu pela porta da frente da delegacia e entrou no carro. O turno dobrado havia passado absurdamente rápido, e ele mal teve tempo de olhar o celular para responder às centenas de mensagens de Lindsey, perguntando que horas voltaria para casa. Ela gostava de se certificar de que a comida estivesse fresca quando ele chegasse, mas aparentemente ninguém ainda se acostumou que ele podia passar dias sem responder mensagens.
Michael, por exemplo, tentava se comunicar pelo menos uma vez por semana, querendo saber se Gerard ainda estava vivo ou se algum quartel de drogas internacional finalmente dera cabo dele. Mikey, como costumava chamar carinhosamente, era magro e alto, com um porte um pouco desengonçado. Seus cabelos são loiro-acinzentados, geralmente penteados de forma simples, às vezes um pouco desalinhados. Ele usa óculos de armação grossa, o que lhe dá um ar intelectual e reservado. Seus olhos eram claros, e transmitiam uma mistura de compaixão e compreensão, como alguém que conhece a maldade do mundo mais do que gostaria, mas que ainda assim mantém a fé nas pessoas.
Assim que Gerard deu partida no carro, o bluetooth conectou automaticamente. Com um olhar dividido entre o celular e a estrada, abriu a conversa do irmão e reproduziu o áudio mais recente:
"Ei, irmão, como estão as coisas por aí? Faz três meses desde que fui transferido da Califórnia e a gente ainda não conseguiu se ver. Por favor, tire um tempo para me encontrar. Quantas vezes eu preciso implorar? Você sabe onde me encontrar, estou na Paróquia de São Paulo, em Manhattan. A mesma que nossa avó gostava de frequentar. Eu te espero, irmão. Estou preocupado com... você sabe."
Gerard percebeu o leve temor na voz do irmão. Ele sabia exatamente do que irmão estava falando.
"Bem, não falamos mais sobre isso, eu sei... Mas... Eu precisava que você soubesse. A coisa tem aparecido com frequência para mim. Estou preocupado de que algo... ruim... aconteça. Deus te abençoe, irmão."
Ouvir a voz do irmão pelo som do carro o inundou de uma nostalgia estranha. Ele não sabia dizer se era saudade do irmão ou apenas o gosto amargo de tocar em algo que nunca deveria ser revisitado. Gerard se endireitou no carro, incomodado com a sensação.
Quando crianças, os dois compartilhavam algo que os tornava diferentes das demais crianças, algo que não se explicava facilmente. Sentiam coisas que não estavam ali, pressentiam mudanças no ar antes que qualquer outra pessoa notasse. O silêncio de uma casa vazia nunca era realmente silencioso para eles. Sempre havia um sussurro, um arrepio na nuca, uma presença invisível que se fazia notar nos cantos mais escuros do quarto. Falando coisas que eles sempre precisavam ouvir ou saber.
Enquanto outras crianças brincavam com bonecos e carrinhos, eles criavam laços com presenças que ninguém mais via. Amigos imaginários, diziam os adultos, tentando afastar a estranheza e dar um ar de normalidade para a situação. Mas, no fundo, Gerard sabia que não poderia ser fruto da sua imaginação. Não quando esses amigos conheciam segredos que ele jamais ouviram antes, não quando suas vozes chamavam seu nome quando algo de ruim estava prestes a acontecer.
Mikey era diferente. Ele aceitava esse dom — ou maldição — com uma serenidade perturbadora. Para ele, aquilo era apenas parte do mundo, como pessoas e animais, oceanos e rios. Gerard passou a ignorar as vozes que falavam com ele eventualmente. E, com o tempo, sufocou essa parte da sua vida até não ouvir nem ver mais nada. A coisa - como Mikey referia agora - sumiu da vida do Gerard tão subitamente quanto apareceram na vida dos irmãos.
— Não... definitivamente não. — Gerard falou para si, como se precisasse repetir aquilo para se convencer. Ele riu de si, se sentindo estúpido.
Dirigiu por todo o caminho sem perceber, e quando se deu conta, já estava estacionando em casa. A luz da sala de jantar estava acesa e, assim que entrou, o aroma de carne grelhada e legumes inundou seu olfato. Naquele momento, um pensamento atravessou sua mente: "sou um homem de sorte."
— Cheguei, baby. — anunciou, repousando o revólver no móvel do corredor.
Pousou o celular, a carteira e o distintivo — preso a um cordão de aço no pescoço — no móvel do corredor e lançou um olhar rápido para o espelho. As olheiras profundas sob os olhos castanhos-esverdeados o encararam de volta com um brilho estranho, algo entre melancolia e cansaço. O cabelo desgrenhado e ligeiramente longos denunciava quanto tempo estivera longe de casa. O topete, antes fixado com gel, já tinha se desfeito há tempos. Ele percebeu que os fios brancos começavam a tomar conta de suas têmporas. Denunciando mais o peso da vida do que da própria idade.
Gerard deixou seus dedos correrem no rosto angular, percebendo sua barba por fazer e algumas linhas finas na sua testa. A pele, antes mais viçosa, agora trazia sinais sutis de uma vida de excesso de trabalho. Pálida, com um tom ligeiramente doentio sob a meia iluminação do corredor. Seu nariz reto, levemente afiado na ponta, agora tinha algumas sardas visíveis. Os lábios estavam ressecados em uma linha dura. Seus ombros e peitorais, ainda imponente e marcantes, davam um aspecto mais jovial ao homem.
Andou até a cozinha, tirou o casaco de couro e o pousou sobre a ilha central. A comida na panela estava remexida, e uma rolha de vinho enfiada em um abridor jazia sobre a pia. Foi até a sala de jantar e a encontrou vazia. Na mesa, dois pratos sujos e uma garrafa de vinho com apenas dois dedos de conteúdo. Duas taças, uma delas marcada com batom vermelho.
Imaginou que Lindsey recebera alguma amiga em casa, como fazia diversas vezes. Provavelmente, estavam no porão — o pequeno estúdio que haviam transformado em seu espaço de estudo e trabalho com esculturas.
Caminhou até a escadaria de acesso ao porão e desceu até o estúdio. O espaço estava iluminado, indicando que Lindsey trabalhara recentemente. No centro do cômodo, uma grande escultura de gesso ainda secava. Os ventiladores industriais apontados para a peça faziam um barulho incômodo.
Gerard se aproximou e analisou a obra: um homem encurvado, como se segurasse o estômago em agonia. Os ossos da coluna saltavam de forma estranha, e, ao dar a volta na peça, percebeu que uma mão cobria o rosto da figura. Os dedos estavam dobrados em um ângulo bizarro.
Ao redor, os materiais de trabalho estavam espalhados. O caldeirão que Lindsey usava para derreter prata e cobre permanecia inativo. O acabamento com metais nobres só viria depois, quando a escultura estivesse pronta e perfeita.
Gerard saiu do estúdio e apagou as luzes ao deixar o ambiente. Quando se aproximou da escadaria que levava ao segundo andar, percebeu o som de uma música vindo do quarto. Subiu calmamente, mas antes que pudesse chegar ao topo, um novo som o atingiu em cheio: gemidos. O sangue gelou em suas veias.
Os gemidos eram de Lindsey. E ele conhecia bem aquele som.
Segurou o impulso de arrombar a porta e exigir explicações. Engoliu seco, prendendo a respiração. Avançou com passos silenciosos até a fresta da porta entreaberta. O cenário diante de seus olhos fez seu estômago revirar.
Lindsey estava de costas, os cabelos longos e soltos escorrendo por suas costas nuas. Vestia apenas uma meia arrastão que parava na metade das coxas. Montada sobre um homem maior que ela, rebolava de forma lenta e provocante. Um tapa estalou em sua pele, e ela riu, jogando a cabeça para trás quando o amante puxou seus cabelos.
Gerard permaneceu imóvel, o coração disparado no peito, incapaz de acreditar no que via. Seu primeiro instinto foi recuar, sair de casa e nunca mais voltar. O mundo ao redor de Gerard perdeu o som por um momento. Depois veio a raiva, queimando como brasa dentro dele.
Foi o suficiente. Gerard golpeou a porta com um empurrão violento, escancarando-a de uma vez. Lindsey soltou um grito e se afastou do amante, enrolando-se depressa nos lençóis. O homem congelou na cama, o rosto em estado de choque. Instintivamente, Gerard levou a mão ao coldre, apenas para lembrar que sua arma estava no andar inferior. Não que ele realmente fosse usá-la, mas queria ver aquele filho da puta se cagar de medo.
— G-Gerard, querido... — Lindsey soluçava, tremendo, enquanto se enrolava no lençol.
Ela tentou se aproximar, mas Gerard não se moveu. Apenas olhou para o homem nu sentado em sua cama. Então reconheceu aquele rosto. Steve Montano. O dono da galeria onde Lindsey trabalhava. Um sujeito mais velho, de cavanhaque prepotente e cabelos grisalhos. Gerard o conhecera em um jantar que a própria Lindsey organizara em sua casa.
O nojo cresceu dentro dele. Quantas vezes aquele desgraçado já havia estado ali? Aquele jantar fora um pretexto para aquecer a traição? Ou o caso já existia antes?
— Me desculpe, me desculpe — Lindsey sussurrava, tentando alcançá-lo.
Ele a afastou com um movimento brusco, empurrando-a para o lado. Ela tropeçou nos próprios pés e caiu no chão. Steve, enfim, saiu do estado de transe e se ergueu da cama para ajudar a mulher caída.
Gerard conteve o impulso de atravessar o cômodo e socar aquele homem até ele não ter mais rosto. Mas algo dentro dele simplesmente apagou.
— Podem continuar — murmurou, quase para si, quando viu o homem segurar a mão da sua esposa. — Estou de saída.
Virou-se e saiu do quarto. Seu rosto ardia, as mãos tremiam. Não sentia vontade de chorar, embora os olhos estivessem úmidos. Nem mesmo sentia ódio suficiente para matar o homem. O que sentia era pior. Uma dor aguda, como se seu coração tivesse sido dilacerado e pisoteado.
Passou pelo corredor, pegou sua arma e a prendeu de volta ao coldre. Colocou o distintivo no bolso, o celular no outro. Se preparava para sair.
Lindsey apareceu no topo da escada, vestindo uma camisa larga que cobria seu corpo.
— Baby, vamos conversar, por favor — implorou ela. — Aquilo foi um erro. Eu prometo.
Gerard não respondeu. Apenas continuou andando até a porta. Lindsey correu e se colocou na frente dele.
— Eu, eu... — A voz falhava à medida que as palavras escapavam, como se estivessem presas na garganta. — Eu tenho estado tão sozinha...
A voz embargada, os olhos vermelhos e inchados de chorar. Por um instante, Gerard sentiu algo parecido com pena. Apenas por um instante. Ela estendeu a mão, hesitante, e a pousou no peito de Gerard. O toque, embora suave, parecia carregado de uma súplica desesperada. Um gesto sem palavras, acreditando que o marido poderia compreender o que ela não conseguia dizer. Seu corpo tremia levemente, e a proximidade com ele parecia acalmar algo dentro dela.
Gerard a olhou por um momento, com um olhar frio e distante. Ele sabia o que ela esperava, mas não podia dar isso a ela. O vazio dentro dele, o que ele sentia ou não sentia, não se resolvia com palavras vazias.
— Sai da minha frente, por favor. — Ele disse finalmente, sua voz dura como pedra.
— Baby, por favor... — A voz de Lindsey saiu como um sussurro cheio de súplica. — Me perdoa...
Ele não respondeu. Num movimento repentino que assustou o próprio Gerard, um soco pesado contra a porta estremeceu a casa inteira. O impacto foi tão forte que o eco preencheu todos os cantos do ambiente. Lindsey congelou. Seu olhar se fixou no ponto onde o soco havia atingido, o buraco estava perigosamente próximo ao seu rosto, quase como se tivesse sido destinado a ela.
Ele respirou com dificuldade, a junta dos dedos começou a sangrar lentamente.
Lindsey se afastou da porta, os olhos — arregalados de puro terror — fixos no homem à sua frente. Gerard passou sem olhar, e ela não se atreveu a impedir a saída.
Chapter 2: A investigação
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Frank sentia o coração pulsando na garganta. Quando finalmente parou de digitar, encarou o notebook na sua frente, o trabalho que havia consumido meses de sua vida, finalmente concluído. Por um instante, tudo o que conseguiu fazer foi respirar fundo.
O quarto de Frank parecia diferente naquela noite. Mais vazio, espaçoso e frio. O brilho da tela do notebook iluminava o espaço ao seu redor — caixas empilhadas no canto, gavetas entreabertas, cabides vazios balançando levemente no armário com a porta aberta. O aroma de café requentado e cigarro ainda pairava no ar, mas agora misturava-se ao cheiro de papelão e fita adesiva recém-rasgada.
Observou as paredes nuas, onde antes estavam coladas suas anotações e recortes de jornal. O espaço que antes transbordava caos e trabalho agora parecia apenas... abandonado. Como se ele nunca tivesse realmente pertencido ali. Um vento fraco entrou pela janela entreaberta, balançando um post-it esquecido na beira da mesa. Nele, uma anotação rabiscada às pressas: "Se algo der errado, fuja". Frank passou a mão no post-it, amassando-o e deixando escapar por entre os dedos.
Frank terminou de escrever a matéria: 179 páginas repletas de documentos e áudios transcritos, cada detalhe minuciosamente coletado ao longo de sete meses de investigação. Era o ponto alto de sua carreira. Ele sabia disso, mas não conseguia medir a repercussão que viria.
— Isso devia ter acontecido antes — murmurou, para si.
A vida, de alguma forma, já havia mudado naquele instante, e ele não sabia como seguir em frente. Passou quase uma semana, trancado no apartamento, perdido nas palavras e nas informações que reuniu, ignorando o mundo lá fora. Ele sabia que, após esse vazamento de informação, nada seria como antes em sua vida.
O receio surgia de uma forma espontânea. Primeiro, pensou nos pais, que moravam a apenas uma hora de distância em Nova Iorque, longe do turbilhão que estava prestes a começar. Depois em Jamia, Bert, e tantas outras pessoas que sua vida tocava. Frank quase podia ver o impacto da matéria sobre todos.
E então, como uma voz distante, a realidade se fez presente: sua vida jamais seria a mesma depois que aquilo fosse exposto. O peso da verdade era mais do que ele imaginava. Por dentro sabia que ainda não estava pronto. Talvez nunca estivesse.
Jamia, sem saber do turbilhão em que se encontrava, o chamou para o bar. Foi um dia longo de arrumações e encaixotamento. Frank alternava entre guardar roupas e livros e sentar no notebook para escrever. Quando percebeu que tinha praticamente tudo encaixotado, malas prontas em um quarto vazio, um notebook e algumas folhas soltas, Frank sabia que era estava chegando a hora de entregar a matéria e sumir. Pelo menos temporariamente.
O cursor piscava na tela, como se o desafiasse a expor a verdade ao mundo. Não tinha mais tempo para revisar, nem para hesitar. Selecionou todos os arquivos — relatórios, áudios, fotos, registros financeiros. Tudo que havia conseguido. Tudo que poderia derrubar pessoas poderosas.
Com um clique, copiou os dados para o pen drive. A pequena barra de progresso parecia se arrastar. Ele respirou fundo, os dedos tamborilando impacientes sobre o teclado.
Quando a transferência finalmente terminou, ele puxou o dispositivo da entrada USB pela longa fita que a pendia e o segurou por um instante, sentindo o peso simbólico daquilo em suas mãos. Pegou um envelope pardo que em outro momento havia escrito "A/C John Richmmont, diretor-chefe do The New York Times". Pensou em guardá-lo no envelope para preparar a entrega do dia seguinte, mas mudou de ideia.
Deixou o pendrive em cima da mesa. Frank decidiu que penduraria o pendrive no pescoço até que entregasse pessoalmente ao John. Seria arriscado demais perder tudo naquela altura do campeonato.
Era sua última noite naquele apartamento, talvez até naquela cidade. Ele não sabia ao certo o que faria dali. Suas coisas, alguns poucos móveis e uma quantidade não muito significativa de roupas e sapatos, estavam organizados para sair imediatamente. Até ele resolver o que faria de sua vida. Frank queria se aventurar no mundo, um mochilão pela Europa, talvez.
A verdade é que ele passou muito tempo trancado naquele apartamento, com medo que alguma informação vazasse. As denúncias chegavam através do seu informante, um homem justo em uma corporação corrupta, que viu em Frank como uma oportunidade de expor ao mundo a sujeira dentro da organização que trabalhava. Mas o que ninguém poderia prever, era a profundidade do poço que o jornalista estava cavando.
Frank se sentiu mais leve depois do banho, como se a água tivesse levado um pouco do peso das últimas semanas. Ele se olhou no espelho por um momento, deixando os olhos vagarem pelo reflexo de um homem coberto apenas por uma toalha felpuda. Um homem com olhos expressivos e inquietos, que carregavam uma mistura de determinação e vulnerabilidade. Seus cabelos escuros estavam molhados. As tatuagens que cobriam boa parte de sua pele já estavam começando a desbotar pelo tempo em que estavam em sua pele.
Ele revirou a mala em busca da sua calça jeans azul, com um corte ajustado nas pernas e levemente rasgada nas laterais. Pegou sua camisa favorita do Misfits, com o logo icônica de caveira estampado em branco e verde. Por cima, jogou um sobretudo de veludo cotelê preto, um pouco mais largo que seu corpo, com um corte vintage com diversos pins de bandas, guitarras e caveiras na gola. Frank amava seus bolsos internos, onde conseguia guardar seus documentos, celular, chaves, cigarros e isqueiro.
Nos pés, colocou seu par de coturnos pretos, que estavam começando a mostrar sinais de uso. Eles eram confortáveis e perfeitos para uma noite em que ele sabia que poderia andar um pouco mais do que o normal. Em seus dedos, colocou seus anéis nos oito dedos das mãos, que refletiam sob a luz do quarto enquanto ele os ajustava. A corrente de prata, discreta, caiu suavemente sobre seu peito, e o escapulário prateado se encaixou confortavelmente no seu pescoço.
O cabelo, ainda úmido, caía sobre seus ombros em ondas naturais. Penteou os fios com os dedos, balançando a cabeça para dar a forma que ele sabia que ficaria melhor. Ele se certificou de que seus piercings, o da boca e do nariz, estavam alinhados, ajustando-os com um pequeno movimento de dedos.
Por fim, pegou o perfume favorito, um aroma amadeirado e levemente esfumaçado, e borrifou uma quantidade generosa no pescoço e nos punhos. O cheiro se espalhou pelo ambiente, inconfundivelmente próprio de Frank. Quando terminou, deu uma última olhada no espelho, ajustando os detalhes finais e sorrindo de maneira sutil. Ele estava pronto para sair.
Pegou o celular descartável em cima da mesa com um gesto rápido. Ele digitou as palavras com pressa, mas sem perder a atenção.
"Está feito," ele escreveu, com um leve sorriso no rosto. "A matéria está completamente pronta. Todos os detalhes, tudo o que foi descoberto, está organizado e pronto para ser lançado. Amanhã, entregarei ao receptor e a missão de desaparecer começa de verdade."
Ele pausou por um momento, observando a tela com um olhar satisfeito, como se quisesse absorver a importância do que acabara de dizer. A sensação de ter cumprido sua parte do acordo, de ter feito o que precisava fazer, era quase palpável.
"Somos um time e tanto," Frank completou, se permitindo um sorriso de satisfação.
Olhou-se no espelho pela última vez antes de sair. Passou a mão no pendrive e o pendurou no pescoço por dentro da camisa. E então ele saiu do apartamento. O vento gelado batia contra seu rosto, mas ele não parecia se importar. Uma das mãos estava nos bolsos do casaco, e o cigarro entre os dedos da outra estava quase apagado, mas ele não parecia disposto a descartá-lo ainda. A calçada estava movimentada, como sempre, mas ele se sentia distante da pressa ao redor.
Quando passou por uma lixeira, ele parou por um instante. O celular descartável estava ainda quente em sua mão. Ele olhou para o telefone, refletindo por um momento. Deveria esperar por uma resposta do informante? Sentiu-se tolo em considerar que sim, então sem hesitar, ele o jogou no lixo, e se afundou no saco preto com um som abafado. Ao se aproximar do bar, Frank ajustou o casaco e deu uma última olhada para trás e entrou.
O bar estava levemente abafado pelo cheiro de cerveja misturado ao de madeira envelhecida. A música tocava num volume confortável, e as vozes se misturavam em um burburinho constante. Frank percorreu o ambiente com o olhar até encontrar Jamia, sentada em uma mesa perto da parede, os cotovelos apoiados no tampo de madeira escura enquanto mexia distraidamente no rótulo da garrafa de cerveja à sua frente. Jamia tinha uma presença marcante, algo que a impossibilitava de ser ignorada. Seu cabelo escuro caía sobre os ombros, com algumas mechas um pouco mais longas que outras, dando-lhe um toque de desordem arrumada. Os fios eram lisos e brilhavam sob a luz. Seus olhos, de um tom escuro e penetrante, pareciam estar sempre em movimento, como se estivesse absorvendo cada detalhe do que acontecia ao seu redor.
Assim que o viu, seus olhos brilharam e um sorriso largo surgiu em seu rosto. Sem hesitar, levantou-se rapidamente e foi ao encontro dele, os braços se fechando ao redor do corpo de Frank num abraço apertado, quente e cheio de saudade.
— Caralho, Frankie, seu cheiro é maravilhoso. — brincou, aspirando o perfume amadeirado que ele sempre usava.
Frank riu baixo, desconcertado, desviando o olhar enquanto coçava a nuca.
— E você continua cheirando pessoas por aí... — murmurou, tentando esconder o sorriso tímido.
Jamia se afastou ligeiramente para olhar para ele melhor e sua expressão suavizou. Ela notou as olheiras fundas e a tensão na mandíbula. Frank parecia mais sério do que o normal, mais cansado.
— Ei... — sua voz perdeu a leveza da brincadeira. — Você tá bem?
Frank deu de ombros, evitando encará-la diretamente.
— Tô aqui, não tô?
Jamia estreitou os olhos, mas decidiu não pressionar. Pelo menos, não ainda. Com um suspiro, puxou o amigo pelo braço e o guiou até a mesa.
— Vem, senta. Você tá precisando de uma cerveja...
Empurrando a cadeira para se sentar, Jamia olhou para Frank com uma expressão preocupada. Ela cruzou os braços, inclinando-se contra a mesa do bar, observando Frank com olhos atentos. Ele girava o copo na mão, a testa franzida, claramente perdido em pensamentos.
— Você tá com essa cara de velório faz semanas. — Ela comentou, arqueando uma sobrancelha.
Frank bufou, jogando a cabeça para trás. — E com razão.
Ela revirou os olhos, pegando um amendoim do pote entre eles e jogando na boca. — Ah, por favor. Você sempre acha que está ferrado. E, adivinha? Nada acontece.
Frank lançou um olhar cansado para ela, mas um pequeno sorriso ameaçou surgir no canto dos lábios.
— É diferente dessa vez.
— É sempre diferente. — Jamia apoiou o cotovelo na mesa e inclinou-se para ele. — Escuta, eu sei que você tá enfiado até o pescoço nessa matéria, mas você não pode deixar isso consumir você. Você sempre é o cara que sempre pede uma pizza gigante e depois reclama que não aguenta comer tudo. Ou o cara que faz uma tatuagem no pescoço e tenta uma vaga no The New York Times.
Frank soltou um riso curto: — Isso se chama otimismo, Jamia.
— Isso se chama burrice, Frank. — Ela riu também, dando uma batidinha levemente no ombro dele. — Mas é a sua burrice, e eu gosto dela.
Frank suspirou, relaxando um pouco mais na cadeira. Pela primeira vez em dias, o peso do mundo parecia diminuir, nem que fosse só um pouco. Ele retirou o seu casaco e pousou na cadeira vazia ao seu lado.
— Valeu. Eu precisava disso.
— Eu sei que precisava. — Jamia deu de ombros, pegando um amendoim no potinho a sua frente — Agora para de drama e pede logo mais uma cerveja.
Depois de algumas rodadas, o bar estava mais cheio, abafado e com luzes fracas piscando no ritmo de Dream on, de Aerosmith, que saía do velho jukebox no canto do salão. Jamia girou a garrafa de cerveja entre os dedos, cantarolando o início da música baixinho, observando Frank tamborilar os anéis contra a mesa ao som da batida.
— Você tá pensando em quê? — Ela perguntou, puxando sua camisa de brincadeira.
— Em como essa música é um clássico. — Frank sorriu de lado, balançando a cabeça no ritmo. — E em como você nunca acerta a letra.
Jamia bufou e ergueu as mãos. — Você quer me desafiar, é isso?
Antes que ele pudesse responder, ela já estava de pé, pegando uma garrafa vazia e usando como microfone improvisado. Frank riu alto quando ela começou a cantar — errando desajeitadamente algumas palavras, mas compensando com a energia exagerada e um timbre quase trêmulo de tão desafinada.
— Meu Deus, Jamia. Você é horrível!
— Fala sério, eu nasci para isso! — Ela girou no próprio eixo e apontou para ele, puxando-o pelo braço. — Agora vem, para de bancar o mal-humorado e dança comigo.
Frank tentou recusar, mas já era tarde. Jamia o puxou para o pequeno espaço entre as mesas, onde outros clientes já estavam batendo os pés e balançando a cabeça no ritmo da música. No começo, ele se mexeu de forma desajeitada, mas conforme a melodia avançava para seu ápice e a cerveja fazia efeito, acabou se rendendo.
Logo, os dois estavam rindo, girando sem ritmo, tropeçando um no outro e cantando (ou gritando) o refrão como se fossem astros de uma banda de rock. Sentindo a energia vibrante da amiga afastar por um momento todas as preocupações nas últimas semanas. Ele sabia que a realidade o esperava do lado de fora, mas naquela noite, naquela música, naquela bagunça de risadas e vozes desafinadas, ele podia simplesmente esquecer.
Depois de um tempo, a música começou a perder a intensidade, e o bar foi se aquietando lentamente. A cerveja já não estava tão gelada e os risos de Jamia e Frank começaram a se misturar com a conversa dos outros frequentadores. Sentindo o calor crescente da agitação, Frank fez uma pausa, olhando ao redor antes de se levantar.
— Vou lá fora fumar um pouco. — Ele falou, ainda com um sorriso no rosto, mas o cansaço começando a aparecer nos olhos.
Jamia fez um gesto de aprovação com a cabeça, já se preparando para pedir mais uma rodada.
— Não demora, ok? — Ela disse, com um tom leve e despreocupado.
Frank acenou enquanto passava pela porta dos fundos do bar. O ar frio da noite o atingiu de imediato, trazendo um alívio instantâneo para os pulmões cansados. Ele se encostou à parede de tijolos vermelhos, puxou o isqueiro do bolso, protegendo a chama com a mão enquanto acendia o cigarro. A fumaça subiu preguiçosamente para o céu, se dissipando na brisa fresca da noite. Ele olhou para a rua deserta à sua frente, os poucos carros que passavam iluminavam os arredores por um instante, antes de desaparecerem na escuridão. A rua Elbow estava molhada da garoa fina que caía há horas, refletindo as luzes dos postes e os letreiros de neon que piscavam intermitentemente.
O barulho abafado da música e das conversas ainda vibrava atrás dele. Ele tragou fundo, olhando ao redor, observando os becos estreitos e os prédios desgastados que cercavam a rua. A cidade nunca dormia, mas ali, naquele pedaço esquecido de Nova Iorque, tudo parecia mais lento, como se o tempo se arrastasse com os passos de alguns bêbados que saíam do bar.
A brisa noturna soprou contra Frank, carregando consigo um frio que não vinha apenas do vento. Ele apertou os ombros, tragando o cigarro com calma, enquanto observava a rua vazia. Então, ele percebeu.
Do outro lado da rua, uma figura se destacava na penumbra. Alta, imóvel, tinha a forma de um homem, mas Frank sabia que não era. A silhueta era de um homem e, ao mesmo tempo, indefinida, como fumaça prestes a se dissipar. Um borrão de escuridão que fazia a realidade ao redor parecer errada.
Os pelos de sua nuca se arrepiaram, mas o medo nunca veio. Talvez devesse correr, reagir, fazer qualquer coisa — mas apenas ficou ali, parado, com o cigarro preso entre os dedos. A sombra avançou. Seus movimentos eram suaves demais, fluidos demais, como se não caminhasse, mas deslizasse pelo asfalto. Frank piscou, tentando entender se era um truque da luz ou da mente, mas nada mudava.
E então, quando a distância entre eles se encurtou, a coisa falou.
"Entre..."
A voz não veio do lado de fora. Ela reverberou dentro dele, ecoando em sua mente.
Frank piscou, atordoado. Sua mente tentava encaixar aquilo em algo racional. Estaria bêbado o suficiente para alucinar? Por um instante ele piscou — e a coisa se dissolveu diante dos seus olhos. Como se nunca estivesse ali.
No lugar dela, um homem surgiu na calçada, caminhando sem pressa, o violão pendurado nas costas, protegido por um case surrado, cheio de adesivos desbotados. A silhueta familiar quebrou a estranheza do momento, trazendo Frank de volta à realidade. O homem avistou Frank, encostado na parede de tijolos envelhecidos, tragando em silêncio. Ele franziu o cenho. Não via Frank ali há semanas. Algo estava diferente.
— Isso é novo — comentou, soltando fumaça de calor pela boca. — Frank Iero, o homem que nunca perde uma sexta-feira, ressurge, parecendo que viu um fantasma.
Frank demorou um segundo para responder. Ele piscou, como se estivesse voltando de um transe, e soltou a fumaça devagar antes de virar o rosto para Bert. Jogou o peso do corpo contra a parede, esfregando os olhos com os dedos.
— Talvez eu tenha visto — murmurou.
Bert inclinou a cabeça, estudando o rosto cansado do amigo
— Tá tudo bem? — Bert perguntou, e Frank riu baixo, sem humor.
Ele pensou em contar o que tinha visto. A silhueta, a voz dentro da sua cabeça, como a coisa simplesmente desapareceu diante dos seus olhos. Mas, em vez disso, apenas deu de ombros.
— Só cansado, eu acho.
Bert não pareceu convencido.
— Você sumiu tem semanas, parece até que está fugindo de alguém... — Bert brincou, tentando aliviar a tensão do momento.
Frank sacudiu a cabeça.
— Não sei se "fugindo" é a palavra certa... — Ele olhou para a brasa acesa entre seus dedos, como se ali estivesse a resposta que ele não conseguia achar. — Mas tô indo me mudando.
Bert ergueu as sobrancelhas, cruzando os braços.
— Se mudando para onde?
Frank soltou a fumaça devagar, observando-a se perder na noite.
— Ainda não sei. Só sei que não posso mais ficar aqui.
Bert ficou em silêncio por um momento, apenas estudando Frank. O barulho abafado da música e das conversas escapava pela porta entreaberta do bar, um contraste com a quietude da rua.
— É engraçado — disse Bert, batendo levemente no case do violão. — Sempre achei que você era o tipo de cara que brigava até o fim.
Frank riu de leve, mas algo melancólico passou pelo seu olhar.
— Talvez brigar seja exatamente o que eu tô fazendo.
Bert balançou a cabeça e deu um tapinha no ombro do amigo antes de se virar para a porta.
— Sei como é. Mas quer saber? Você pode se mudar o quanto quiser, Frank. Mas nunca vai conseguir mudar essa sua cara de bunda.
Bert soltou uma risada curta com a própria tirada, deu um tapinha no ombro do amigo e seguiu para dentro do bar, deixando-o sozinho no frio da noite, cercado apenas por seus próprios pensamentos. Frank piscou, tentando ancorar-se no presente, mas a sensação persistia - um eco dentro dele, uma presença que não pertencia àquele mundo, mas que, de alguma forma, parecia querer se comunicar com ele. "Entre...", a voz ainda vibrava dentro dele. Frank tragou seu cigarro uma última vez, sentindo a nicotina preencher seus pulmões antes de soltar a fumaça no ar frio. A brasa brilhou fracamente antes de jogá-lo no chão.
Ele passou a mão pelos cabelos bagunçados, ainda úmidos. Se virou, pronto para entrar. A música abafada e o murmúrio das conversas ainda escapavam dali algo. Mas algo no canto da rua chamou sua atenção — um vulto se movendo rápido demais para ser apenas mais um bêbado vagando pela noite, ou denso demais para ser a fumaça que avistara há pouco.
Antes que pudesse reagir, sentiu um impacto seco na lateral da cabeça. Uma dor cortante explodiu em sua têmpora, e seu equilíbrio desapareceu num instante. O chão pareceu subir até ele enquanto suas pernas fraquejaram, a visão se tornando um borrão de luzes trêmulas e sombras distorcidas.
Ouviu o som abafado de passos apressados, o farfalhar de tecido e sapatos batendo no chão apressadamente, e então mãos firmes agarraram seu corpo desfalecido no asfalto. Ele tentou se mover, protestar, mas sua mente já estava se apagando, arrastando-o para uma escuridão sufocante.
A última coisa que sentiu foi o cheiro de couro, metal e gasolina antes do mundo desaparecer por completo.
Chapter 3: O exílio
Chapter Text
O médico terminou de enfaixar os nós dos dedos de Gerard com um curativo preciso. Ele tinha um olhar de empatia, mas também carregada de firmeza profissional.
— Você teve um episódio de burnout. Sabe o que isso significa?
Gerard piscou algumas vezes, tentando processar as palavras. A cabeça parecia pesada, os pensamentos embaralhados. Ele passou a língua pelos lábios ressecados antes de murmurar:
— É... cansaço, não é?
O médico suspirou baixinho, retirando as luvas e descartando-as antes de se encostar na bancada.
— É muito mais do que isso. Burnout é um esgotamento profundo, tanto físico quanto mental. Seu corpo e sua mente estão no limite, sobrecarregados pelo excesso de trabalho e pelo estresse crônico.
Gerard permaneceu em silêncio, sentindo o peso das palavras caírem sobre ele. O que deveria fazer agora? Apenas parar? Como se fosse simples desligar a máquina que ele mesmo havia se tornado?
— Vamos trabalhar em três frentes — continuou o médico, como se lesse seus pensamentos. — Primeiro, descanso absoluto. Você precisa de uma pausa real, sem e-mails, ligações ou qualquer envolvimento com o trabalho. Seu cérebro precisa desacelerar.
Ele estendeu uma prescrição. Um mês afastado. Gerard olhou para o papel como se fosse uma sentença.
— Eu tenho responsabilidades...
O médico não respondeu de imediato. Em vez disso, retirou os óculos, massageou a ponte do nariz e soltou um suspiro cansado, como quem já ouvira aquela justificativa centenas de vezes.
— Há anos atendo policiais neste departamento. Sabe quantas vezes alguém abriu mão da saúde mental pelo trabalho e isso terminou bem? Nenhuma.
A sala mergulhou em um breve silêncio. Gerard apertou as mãos sobre o colo, os nós dos dedos já protegidos pelo curativo.
— Além do descanso, você precisa reorganizar sua rotina. Estabelecer limites. Criar um espaço real para a vida pessoal. Momentos de lazer e relaxamento.
Lazer. Relaxamento. Palavras que pareciam pertencer a uma realidade distante, quase ilusória. Gerard sentiu uma vontade absurda de rir, mas se conteve. Porque, no fundo, sabia que não havia nada de engraçado naquilo.
O médico continuou:
— Por enquanto, não vou receitar medicamentos. Acredito que, com essas mudanças, você já verá uma melhora significativa. Mas, é claro, vamos acompanhar de perto. Quero te ver em um mês, antes do seu retorno ao trabalho. Se em algumas semanas você ainda estiver com dificuldades de concentração, irritação ou o mesmo episódio de apagão, podemos reconsiderar. Combinado?
Quando Gerard saiu do consultório médico, dentro da policlínica da polícia civil de Nova Iorque, encontrou Mikey esperando por ele no corredor. O irmão mantinha aquele olhar de preocupação, o mesmo que sempre surgia quando as coisas fugiam do controle. Era o que ele lançou quando Gerard sofreu uma emboscada e levou um tiro na perna. O olhar silencioso que gritava você precisa largar a polícia e levar uma vida normal o mais rápido possível.
Eles sempre foram como água e vinho. Enquanto Gerard passava os dias colocando criminosos atrás das grades, Mikey rezava por suas almas dentro das prisões. Quando um seguia para a faculdade de direito, o outro entrava para o Seminário. Mikey era padre há pelo menos cinco anos; Gerard, delegado, há três. Agora, ali estavam, frente a frente: um vestindo uma batina, com aqueles óculos de lentes grossas que só acentuavam sua expressão preocupada, e o outro, recém-diagnosticado com burnout e recém chifrado, encarando um afastamento forçado do trabalho.
Mas Gerard não conseguia se concentrar na postura rígida do irmão nem no sermão silencioso que viria. Sua mente fervilhava. Um mês longe da delegacia era tempo demais. Quem assumiria suas responsabilidades? Quem daria conta dos casos pendentes? O pensamento martelava sem trégua, um turbilhão de preocupações se atropelando dentro dele. Mas, por fora, permanecia inexpressivo. Como se nada daquilo realmente o afetasse.
Mas isso não era o ponto importante agora. O ponto era que Gerard estava em um consultório médico em Nova Iorque, porque ele não se lembra do que aconteceu depois que saiu de casa. Ele se lembra do olhar suplicante da Lindsey tentando fazê-lo ficar, que logo se transformou em terror depois do soco na porta que lhe rendeu cortes profundos nas mãos.
Gerard tem uma vaga lembrança de pensar no irmão quando pegou a rodovia principal e passou pela última saída para Nova Iorque. Depois disso, era como se ele simplesmente não tivesse vivido. A única coisa de que se lembra era ouvir uma batida no vidro do carro e perceber que o próprio Mikey tentava chamar a atenção dele através do vidro.
Aparentemente, ele dirigiu até Nova Iorque, estacionou em frente à paróquia de São Paulo, no coração de Manhattan, e ficou dentro do carro por dezesseis horas. Ele não sentiu fome, sede e nenhuma outra necessidade. Apenas continuei lá, com as horas passando como se fossem minutos.
—Você precisa descansar sua cabeça agora. A delegacia de Newark ficará bem nas mãos do Brian. Burnout é muito comum no ambiente policial, mais comum do que você pensa, na verdade.
As palavras vieram frias e definitivas da boca do Comissário de Polícia do estado. Não havia espaço para discussão. O afastamento não foi uma escolha, mas uma sentença. Houve uma comoção, um escândalo não intencional. O delegado mais respeitado da cidade de Newark simplesmente desapareceu, sem explicação. Nenhuma pista, nenhum aviso. Ele só conseguia pensar que esse tipo de coisa só poderia acontecer com ele.
Ninguém sabia dizer o que realmente aconteceu. Ninguém sabia a verdade, nem mesmo Gerard.
Ele tentava se agarrar ao que ele sabia: a traição, o soco que deu na porta, e sua ida para Nova Iorque.
O irmão mais novo não desconfiava, talvez ele tivesse suspeitado no momento em que Lindsey apareceu no hospital em busca de notícias, e Gerard se recusou a vê-la. Nenhuma notícia ou manchete sobre o que aconteceu havia saído, apesar de as notícias correrem como um furacão. Na primeira página, a manchete era: "Magnata da segurança privada doa milhões para a polícia de Nova York. O empresário C. Todd Taylor, fundador da Falcon Security, empresa de segurança privada que fornece equipamentos para as forças policiais, anunciou uma doação milionária para a melhoria da infraestrutura da polícia de Nova Iorque."
As especulações sobre o motivo do Gerard ter sumido provavelmente eram o alvo de todas as conversas na delegacia. O que realmente aconteceu? Era a pergunta que pairava no ar entre os policiais, ecoando entre cigarros apagados e cafés frios. O caos da sua vida ainda estava trancado na caixinha de segredos que Lindsey ostentava.
Horas se passaram entre interrogatórios, assinaturas e olhares cautelosos. Quando finalmente saíram da delegacia, percorreram todo o caminho em silêncio, até chegarem à igreja de São Paulo, em Manhattan.
O quarto era adequado para um homem adulto passar a noite, porém, ele não queria — e nem poderia, ficar ali por muito tempo. Gerard sabia que poderia dormir por mais uma ou duas noites até conseguir comprar algumas roupas e achar um lugar melhor e confortável para ficar.
— Você sabe que pode ficar aqui o tempo que quiser, né?
Mikey falou, em pé, ao lado da porta, como se lesse a mente de Gerard.
— Eu sei, irmão. Obrigado. Mas você sabe... Essa estética católica não combina muito comigo.
Falou, olhando os quadros e imagens de santos que decoravam o quarto e arrancando um sorriso do Mikey.
— Eu vou deixar você descansar...
Mikey fez um movimento como se fosse sair pela porta, mas antes que ele pudesse alcançar, Gerard falou:
— Eu... Eu só preciso descansar um pouco.
— É, eu sei... Sua cara está péssima. Eu tenho que celebrar uma missa de manhã cedo, podemos tomar um café se você acordar antes.
— Combinado.
Mikey deu um sorriso satisfeito e, antes de sumir atrás do batente da porta, ele perguntou:
— Você não se lembra de nada? Nadinha?
Tentar lembrar o que aconteceu no meio tempo em que saiu de casa até a hora em que Mikey o encontrou era como tentar lembrar de um sonho que fugiu da cabeça. Era como um apagão.
— Nada.
Mikey deu uma fungada inconformada, deu os ombros e fechou a porta atrás de si. Gerard estava sozinho num quarto paroquial, um monte de santos o encaravam e uma noite que não se lembra.
O quarto de visitas da paróquia era simples. As paredes de gesso branco estavam levemente amareladas pelo tempo, com algumas rachaduras discretas nos cantos. Uma pequena janela de vidro ondulado deixava entrar a luz fraca dos postes da rua, criando sombras alongadas no chão de madeira.
No centro do cômodo, uma cama de casal simples, com um colchão fino. Os lençóis estavam limpos, mas ásperos e gasto ao toque, de um branco encardido pelo tempo e pelas inúmeras lavagens. Sobre o travesseiro repousava um pequeno terço de contas de madeira, esquecido por algum hóspede anterior.
Ao lado da cama, uma mesa simples de carvalho abrigava uma vela meio derretida, um copo d'água e uma Bíblia surrada com páginas marcadas por anotações. Uma cruz de ferro forjado pendia na parede acima, lançando sua sombra sobre a cabeceira da cama sempre que o vento balançava a cortina fina. O ambiente tinha um cheiro suave de incenso e madeira antiga. O silêncio era absoluto, quebrado apenas pelo vento que soprava através das frestas da janela.
Os pertences estavam em um saco lacrado. Rasgou-o com facilidade, retirou o distintivo, a arma, a carteira. Antes de colocar na cabeceira, verificou que o cartucho de balas ainda estava cheio. O alívio passou em seu rosto. Não usou a arma no momento do apagão.
Apoiou os objetos na cabeceira e olhou por um tempo o celular, ainda tentando acreditar em tudo que aconteceu. Gerard preferia mil vezes estar na casa religiosa do meu irmão do que voltar para aquela casa. A vida perfeita do delegado de polícia, com sua esposa perfeita, numa casa num bairro perfeito.
— Foda-se toda essa merda.
Havia milhares de ligações e mensagens no celular, mas ele decidiu ignorar tudo, foi direto no contato do seu advogado e digitou:
"Vou me divorciar da Lindsey, por favor, agilize a papelada"
Ele bloqueou a tela e pousou o celular ao lado da cama. E então, deixou seu corpo repousar sobre a cama, e quase imediatamente que fechou os olhos, dormiu.
Gerard sentia-se leve, etéreo, como se seu corpo não passasse de um véu de fumaça. O ambiente ao seu redor era distorcido, um jogo de sombras e formas imprecisas que se dissolviam antes que ele pudesse compreendê-las. Ele não sabia como tinha parado lá. A rua estava deserta, envolta por uma penumbra. Ele sentia o chão sob seus pés, mas não de verdade—era como se estivesse flutuando, desconectado do mundo ao seu redor.
Tudo parecia irreal, exceto pelo homem à sua frente. Ele estava em pé sob a luz trêmula de um poste enferrujado. O cigarro aceso brilhava em suas mãos, iluminando seus dedos. Ele deu uma longa tragada, o peito magro subindo e descendo lentamente, antes de soltar a fumaça em um suspiro carregado de cansaço. A fumaça se misturou ao ar frio, flutuando ao redor de seu rosto antes de desaparecer. Gerard ficou imóvel, o tempo parado enquanto ele observava cada detalhe como se estivesse vendo algo precioso. O homem era jovem, seus traços delicados contrastando com os piercings carregava. A mandíbula angular se movia suavemente enquanto ele apertava os lábios, os olhos perdidos em algum ponto distante, alheio ao fato de estar sendo observado.
Os cabelos eram escuros, caindo em desordem sobre a testa. Ele tinha um ar quase etéreo sob aquela luz fraca, como se não pertencesse completamente ao mundo que Gerard conhecia. A camisa de banda que usava estava surrada, ajustada aos ombros estreitos, e a calça justa delineava suas pernas esguias. Havia algo de melancólico em sua postura, um peso que parecia curvar seus ombros levemente para frente. Gerard se sentiu inexplicavelmente tocado. Uma onda de emoções confusas o envolveu, um misto de nostalgia e saudade, como se tivesse encontrado algo que não sabia estar perdido. Seu peito apertou. Havia uma pureza dolorosa na forma como o homem simplesmente existia ali, sozinho. Algo dentro dele sabia que aquele homem estava em perigo.
Gerard tentou falar, tentou chamar sua atenção, mas sua boca se abriu em um silêncio. Nenhuma palavra ecoou no espaço entre eles, como se o próprio ar tivesse sido arrancado dali.
O homem deu outra tragada no cigarro, e seus olhos finalmente se moveram, vagando pela rua antes de pousarem diretamente em Gerard.
Por um momento, o tempo parou. Os olhos do homem se arregalaram, o brilho castanho iluminado pela luz do poste, um reflexo de puro pavor. Seu corpo ficou tenso, as costas pressionando a parede como se quisesse atravessá-la.
Gerard sentiu um choque frio atravessar seu corpo, o homem podia vê-lo. Ele realmente podia vê-lo.
E estava apavorado. Uma única palavra se formou em sua mente, vibrando dentro dele como um comando silencioso: "Entre..."
E, no instante em que pensou nisso, o mundo ao redor tremeu.
Agora, o cheiro de ferrugem e mofo preenchia suas narinas, úmido e sufocante. O chão sob seus pés era áspero, de concreto frio, e o único som que rompia o silêncio era o gotejar constante de água em algum canto. Aos poucos, seus olhos se ajustaram à escuridão. O ambiente parecia um galpão abandonado, com paredes manchadas pelo tempo e pilhas de entulho empurradas para os cantos. Então, um movimento na penumbra.
Havia alguém ali.
Gerard prendeu a respiração ao enxergar uma figura sob um fraco feixe de luz que descia de uma claraboia trincada. O mesmo homem, agora amarrado pelo corpo a uma viga metálica, a cabeça tombada para o lado. Sua camisa escura estava grudada ao corpo, e uma linha de sangue fresco escorria por sua têmpora, pingando silenciosamente no chão. Ele parecia consciente, mas fraco, o peito subindo e descendo em um ritmo fraco.
— Ei... — Gerard tentou chamar, mas sua voz saiu baixa, quase um sussurro.
O homem mexeu os dedos, um movimento fraco, antes de erguer a cabeça com dificuldade. Seus olhos se abriram apenas o suficiente para encarar Gerard. Era um olhar carregado de algo indefinível—medo, súplica, desespero. Seus lábios se entreabriram e um som baixo escapou deles, incompreensível à distância.
Gerard tentou se mover, instintivamente querendo ajudá-lo, mas algo o impedia. Seus pés pareciam presos ao chão, como se uma força invisível o mantivesse congelado no lugar. Seu peito apertou com a frustração crescente.
— O que aconteceu com você?
Ele tentou perguntar, mas o homem apenas respirou fundo, os olhos piscando pesadamente.
— Me... ajuda...
A claraboia acima deles tremeu com uma rajada de vento, e a luz que o iluminava piscou. As sombras ao redor do rapaz pareceram se mover por conta própria, como se algo estivesse o puxando de lá.
Então, tudo se dissolveu.
Gerard acordou sobressaltado, o peito subindo e descendo rapidamente enquanto tentava recuperar o fôlego. O suor frio grudava na nuca e nas têmporas, e a respiração parecia ecoar no quarto silencioso. A escuridão ainda dominava o ambiente, quebrada apenas por um feixe de luz esbranquiçada que atravessava a janela. Mas o que realmente o incomodava era o cheiro.
Um odor metálico e ferruginoso impregnava suas narinas, como se ainda estivesse naquele lugar úmido e sufocante do sonho. Gerard esfregou as mãos no rosto, tentando afastar a sensação. Mas tudo que conseguia ver, ao fechar os olhos, era o olhar do homem desconhecido — desesperado, fixo nele, como se implorasse por algo que ele não soube compreender.
Sentiu um arrepio percorrer sua espinha.
Com esforço, ergueu-se na cama e olhou ao redor, precisando se situar. As sombras pareciam se mover sutilmente nas paredes, moldando as expressões severas das figuras religiosas nos quadros antigos. Santos, anjos e mártires, todos encarando-o em silêncio, como juízes. Gerard desviou o olhar. Não sabia nomeá-los, e, sinceramente, não queria.
Ele passou a mão na nuca, sentindo os músculos tensos, e inspirou fundo. A dor que pulsava em sua cabeça começava a se dissipar, mas não parecia sua. Era como se pertencesse a outra pessoa. Como se o sonho tivesse deixado um resquício real em seu corpo.
O quarto parecia pequeno demais, sufocante demais. A cada segundo que passava ali, a pressão no peito aumentava. Precisava sair. Gerard suspirou e balançou a cabeça, jogando os lençóis de lado.
— Me desculpe, irmão, mas não vai rolar...
Gerard pegou o casaco de couro e deixou o quarto sem olhar para trás.
Gerard empurrou a porta do quarto, o ranger das dobradiças ecoando suavemente pelo corredor silencioso da casa paroquial. Tudo parecia calmo e distante do caos que fervia em sua mente. Precisava percorrer pouco menos de oitocentos metros para chegar até o local onde estacionou o carro na noite anterior. Seu instinto investigativo não poderia deixá-lo de levar até o lá. A luz amarela iluminava a calçada e toda a extensão da rua. Em alguns pontos, as luzes piscavam por trás da rua com neblina. O carro permaneceu ali, da mesma forma que se lembrava quando saíra da delegacia.
Não havia nenhuma mancha, arranhão, lama ou qualquer outro indício de que não tivesse saído da rota até a igreja. Quando contornou o carro, ouviu uma música à distância e tentou identificar qual direção ela vinha.
Gerard caminhou mais um pouco e chegou a uma esquina com um pequeno beco. Uma porta dava para um subsolo na rua Elbow, acessível apenas por uma escadaria de ferro corroída pelo tempo. O letreiro de neon piscava num ritmo quase hipnótico, refletindo um brilho vermelho e azul na calçada úmida. Era um daqueles lugares que você só encontrava se soubesse exatamente onde procurar. Ou o quê.
O bar Elbow era um lugar que cheirava a uísque velho, fumaça de cigarro e mal resolvidos.
Gerard sentiu tudo isso no instante em que cruzou a porta de madeira pesada e foi engolido pelo ambiente abafado e mal iluminado. O som de copos se chocando, risadas abafadas e o farfalhar de talheres se misturavam à música ao fundo — um blues arranhado que parecia combinar com seu estado de espírito. O ambiente era iluminado por lâmpadas presas a fios retorcidos no teto de concreto descascado. As paredes de tijolos aparentes carregavam marcas de grafites antigos e fotos em preto e branco de músicos esquecidos. O cheiro de uísque barato e fumaça pairava no ar.
O balcão de madeira escura exibia garrafas de destilados empoeiradas, algumas sem rótulo. O barman, um homem de rosto cansado e tatuagens desbotadas, limpava um copo com um pano molhado, sem pressa. No palco improvisado no canto do bar, um cantor solitário dedilhava um violão gasto, sua voz rouca se misturando ao murmúrio das conversas abafadas. O dono da voz melodiosa e grave que conseguia ouvir tão avidamente da calçada.
Um homem de cabelos longos, embaraçados e toscamente pintados de preto. Dava para ver as manchas na raiz louro escuro. Ele tinha uma barba rente, usava moletom incrivelmente grande para seu corpo e cantava uma música triste.
Gerard se perguntou quem eram as pessoas ao meu redor — jornalistas em busca de histórias? Criminosos fugitivos, estelionatários em busca de novas vítimas, ou delegados frustrados — como ele. Ninguém perguntava nomes ali. A única regra aparente era beber, esquecer os problemas e, se possível, sair antes que algo desse errado. Ele seguiu direto para o balcão, ignorando os olhares curiosos de bêbados habituais que percebiam um estranho no território deles. Jogou-se em um dos bancos altos e soltou um suspiro pesado, apoiando os cotovelos no balcão pegajoso.
— O que vai ser? — perguntou o bartender sem ao menos me olhar.
— Qualquer coisa forte.
O homem apenas assentiu e lhe serviu um copo de Bourbon sem frescura. Gerard girou o líquido âmbar no copo antes de levar aos lábios, sentindo o calor queimando sua garganta e descendo até o estômago.
Então, ele sentiu.
Aquela sensação estranha, um peso invisível ao seu lado. Como se alguém estivesse ali, mesmo que ninguém estivesse. Gerard não precisou olhar para saber. Ele conhecia aquela presença.
— Faz tempo que você não aparece. — murmurou, virando o resto da bebida de uma vez.
O silêncio ao seu redor pareceu mudar, ficar mais denso. Ele fechou os olhos por um instante e lá estava ele — o amigo imaginário de Gerard, ou pelo menos, era assim que o chamavam na sua infância.
— Eu achei que você tinha me esquecido. — veio uma voz suave, que só ele podia ouvir.
Ele abriu os olhos lentamente, fitando o reflexo distorcido no espelho atrás do balcão. Ali, entre as garrafas de bebida, uma silhueta quase imperceptível pairava ao seu lado. Não era exatamente uma figura sólida, mas uma sombra, um vestígio de algo que não deveria estar ali.
— Eu tentei. — Gerard sussurrou de volta, com um sorriso nervoso.
A voz riu, um som leve e quase infantil.
— E como isso tá funcionando para você?
Gerard girou o copo vazio entre os dedos, a madeira do balcão pegajosa sob sua pele. A presença ao seu lado ainda estava ali, silenciosa, observando. Ele tentou ignorar, fingindo normalidade.
— Uma merda.
Ele não sabia por que essa presença voltava agora, depois de tantos anos de silêncio. Gerard empurrou o copo vazio para o homem do balcão, pedindo mais uma dose.
— Você deveria falar com ele. — a voz sussurrou.
Gerard soltou um suspiro, levando a segunda dose aos lábios antes de responder, baixo, como se falasse consigo mesmo:
— Falar com quem?
A sombra ao seu lado riu novamente.
— O músico. O com violão.
Gerard desviou os olhos para o palco improvisado no fundo do bar. O cara loiro, de cabelos toscamente tingidos, barba rala e expressão exausta, dedilhava acordes no violão enquanto cantarolava uma melodia arrastada.
— E por que eu faria isso? — murmurou, virando para olhá-lo.
Gerard franziu a testa. A presença havia desaparecido.
Ele sabia que, quando acontecia isso, uma coisa grande estava por vir. Costumava pensar que aquilo era como se a sua própria intuição se materializasse para falar com ele. Mas sabia que a voz estava certa. Sempre estava.
Resignado, levantou-se do banco e caminhou até o palco, esperando o músico terminar a música antes de se aproximar. O cantor, ainda sentado, ergueu os olhos para ele e logo abaixou.
— Se for um pedido, espero que não seja nada do Bon Jovi — murmurou, sem muito ânimo.
— Não estou aqui para fazer um pedido.
— Não? Então, o que você quer? Um boquete?
Gerard arqueou uma sobrancelha, surpreso com a ousadia do comentário. Deu um riso baixo, sem saber se ria da piada ou do fato de que o cantor claramente não levava nada a sério.
— É... eu passo essa — respondeu, balançando a cabeça, tentando não demonstrar que foi pego de surpresa.
O cantor deu um sorriso torto, mas logo se desfez.
Gerard coçou a nuca, hesitante. — Você... quer tomar uma cerveja?
O cantor o avaliou por um momento antes de dar os ombros.
— Ainda tenho que tocar por mais uma hora. Mas se quiser esperar...
O tempo parecia correr devagar enquanto Gerard esperava. Ele se sentou de volta no balcão, pediu mais um uísque e observou o ambiente ao seu redor. O Elbow era um daqueles bares que pareciam existir apenas em filmes antigos — o tipo de lugar onde bêbados veteranos e músicos fracassados se misturavam sem cerimônia.
Ele não sabia bem o que estava esperando. Algo no cantor o intrigava, e não era só o jeito provocador. Talvez fosse a intuição policial, talvez fosse aquele sussurro na sua mente insistindo que algo naquela noite merecia sua atenção.
O barulho ao redor era constante — risadas altas, conversas desencontradas, copos sendo colocados com força nas mesas. No pequeno palco improvisado, o homem continuava seu set, dedilhando o violão com precisão, sua voz um tanto rouca enchendo o ambiente com uma melodia meio melancólica, meio debochada.
Gerard girou o gelo dentro do copo e observou os outros frequentadores. No canto, um grupo de motoqueiros discutia algo acaloradamente, enquanto uma garçonete se esgueirava entre as mesas, equilibrando três canecas de cerveja. Dois caras jogavam sinuca no fundo do bar e um casal embriagado trocava beijos desajeitados perto da máquina de jukebox.
Quando percebeu, o cantor já estava agradecendo ao público e recolhendo seu violão. Gerard observou enquanto ele descia do palco e se aproximava, com um meio sorriso.
— Você realmente esperou — ele comentou, jogando o violão no banco ao lado e acenando para o barmen.
Gerard deu de ombros.
— Não tinha nada melhor para fazer.
— Oh... — Ele soltou um riso baixo.
Gerard apenas riu de canto. Ele tinha a sensação de que essa conversa estava prestes a ficar interessante.
— Meu nome é Robert. Mas as pessoas costumam me chamar de Bert
Eles estenderam a mão para um aperto rápido.
— Eu sou o Gerard.
— Posso saber o que um cara como você faz por aqui?
— O que quer dizer com "cara como eu"?
— Quer dizer... olhe em volta.
Gerard observou o público, era uma mistura de figuras típicas da cidade—motoqueiros de jaquetas de couro bebendo em silêncio num canto, um grupo de universitários barulhentos jogando dardos perto dos banheiros e alguns trabalhadores exaustos afundados em seus copos, tentando esquecer o dia. No meio daquela atmosfera carregada, Bert se virou para Gerard, os olhos semicerrados em um misto de curiosidade e suspeita.
— Só queria beber um pouco... — Gerard respondeu.
— Aposto que não é só um cara aleatório bebendo sozinho.
Gerard ergueu uma sobrancelha.
— Como assim?
Bert girou a garrafa entre os dedos, inclinando a cabeça.
— Sei lá... você tem um jeito diferente. Tipo... cara fechada, olhar de quem já viu merda demais. — Ele apontou para Gerard com a garrafa. — Você parece um policial.
Gerard hesitou.
— Mas um policial tipo Vincent Hanna, de Fogo Contra Fogo, do tipo obcecado pelo trabalho... Não do tipo corrupto. — Bert achou importante pontuar essa informação.
— Obrigada por esclarecer. — Revelar quem era nem sempre jogava a seu favor, ainda mais em um bar underground como aquele. Mas, ao mesmo tempo, mentir não parecia uma boa ideia. Ele escolheu um meio-termo. — Já trabalhei com isso.
Bert fez um nó na testa. — Isso significa que é um policial de verdade?
Gerard deu de ombros, desviando o olhar.
— Significa que estou afastado.
Bert ficou em silêncio por um instante, como se estivesse considerando suas próximas palavras. Então, inclinou-se para frente, falando mais baixo:
— Então talvez você possa me ajudar.
Gerard manteve o rosto neutro, mas sentiu os músculos enrijecerem.
— Com o quê?
Bert olhou ao redor antes de voltar a encará-lo, a expressão carregada de preocupação.
— Um amigo meu sumiu há três dias. E eu estou começando a achar que aconteceu alguma coisa muito ruim com ele.
Bert notou a mudança sutil em sua expressão e insistiu:
— Cara, se você realmente já trabalhou com isso... por favor. Eu não sei mais para quem pedir.
Gerard ficou em silêncio por alguns segundos, girando o gelo no copo com um movimento distraído. Ele não queria se envolver. Não mais. Mas algo naquela história o puxava para dentro, como um ímã invisível.
Ele suspirou, apoiando os cotovelos no balcão e esfregando o rosto com as mãos: — Merda... — murmurou, mais para si do que para Bert.
Bert permaneceu atento, os olhos fixos nele, esperando uma resposta. O jeito do músico, que antes tinha uma melancolia, agora transbordava urgência e talvez um pouco de esperança.
— Três dias desaparecido? — Gerard quebrou finalmente o silêncio, sua voz mais firme agora.
Bert assentiu depressa.
— Sim. Ele não some assim, entende? Ele é jornalista, vive se metendo onde não deve, mas sempre dá um jeito de avisar alguém. Sempre.
Gerard encarou o fundo do copo vazio, a mandíbula travada. Algo dentro dele já sabia a resposta antes mesmo de ele dizê-la em voz alta.
— Me conta tudo o que sabe.
Bert soltou o ar que parecia estar prendendo e acenou para o bartender.
— Acho que vamos precisar de mais que uma rodada.
Chapter 4: O Eco
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Bert passou a mão superficialmente pelos cabelos desgrenhados, com um movimento quase automático. Seu peito subiu e desceu lentamente antes que ele soltasse um suspiro pesado, carregado de algo que Gerard não conseguiu definir de imediato.
Ele hesitou. Por um instante, parecia reunir forças, como se reviver aquela noite exigisse mais dele do que gostaria de admitir. Seus olhos vagaram pelo ambiente antes de finalmente se fixarem em Gerard.
— A última vez que vi o Frank foi há três dias, do lado de fora desse bar. — Sua voz saiu mais baixa, quase abafada pelo ruído ambiente. — Ele estava diferente... distante. Parecia assustado.
Gerard permaneceu atento, observando enquanto Bert girava a garrafa entre os dedos.
— Assustado?
Bert assentiu lentamente, os olhos se estreitando por um instante, como se tentasse reviver a cena com mais clareza.
— É... parecia que tinha visto um fantasma ou algo assim. — Ele deu um pequeno riso seco, sem humor. — Frank sempre bate ponto aqui às sextas, sabe? Nunca perdia uma noite sequer. Mas, nas últimas semanas, estava... mais ocupado.
Ele parou por um instante, apertando a garrafa com mais força antes de continuar.
— Ele apareceu depois de muito tempo... e simplesmente sumiu na mesma noite.
Bert soltou uma arfada. Seu olhar estava perdido, fixo em algum ponto no passado que Gerard não conseguia ver.
— Eu tentei brincar com ele, mas... ele estava sério. Tenso. — Bert balançou a cabeça lentamente, como se ainda tentasse entender o que tinha visto. — Ele disse que talvez tivesse visto um fantasma mesmo. Perguntei se estava fugindo de alguém, e ele riu.
Bert fez uma pausa, os olhos semicerrados ao lembrar.
— Mas foi uma risada estranha, sabe? Não era o tipo de risada que ele costumava dar. Tinha um peso ali... um medo.
Gerard apertou os dedos ao redor do copo, o vidro frio contra a pele quente.
— Ele estava fugindo?
Bert negou, com um movimento lento da cabeça, o olhar distante.
— Ele disse exatamente isso: "Não sei se 'fugindo' era a palavra certa..." — Bert reproduziu as palavras com precisão, o tom de voz imitando o do amigo ausente. — Mas ele estava indo embora. Foi o que disse.
— Indo embora? Para onde?
— Eu perguntei isso. — Bert sorriu, um sorriso amargo e vazio. — Mas nem ele sabia. Só sabia que não dava mais para ficar aqui.
Gerard franziu a testa, tentando encaixar as peças.
— Se ele estava indo embora, quem garante que ele não foi?
Bert ficou em silêncio por um momento, o maxilar tenso. Ele largou a garrafa na mesa e cruzou os braços, inclinando-se para frente.
— Então, aí é que tá. — Ele olhou diretamente para Gerard, a expressão grave. — Frank não estava sozinho no bar. Ele estava com a Jamia. Ela estava esperando por ele aqui dentro.
Gerard piscou, surpreso.
— Jamia?
— É. Uma amiga. Ele deixou o casaco e as coisas dele na mesa. Disse que ia lá fora para fumar e nunca mais voltou. — Bert fez uma pausa, esfregando as mãos no rosto. — Depois de um tempo que comecei a tocar, Jamia veio falar comigo, preocupada. Perguntou se eu tinha visto o Frank lá fora.
Gerard sentiu um calafrio subir pela espinha.
— E você contou para ela?
— Contei. Falei que ele parecia estranho, que estava falando de fantasmas e de se mudar, essas coisas que falei. — Bert fechou as mãos em punho sobre a mesa. — Ela ficou inquieta o resto da noite, olhando para a porta a cada minuto, esperando ele voltar. Mas ele não voltou.
Bert respirou fundo, a voz ficando mais baixa.
— Quando o bar já estava para fechar, Jamia veio até mim de novo. Estava com aquela cara de quem sabia que tinha algo errado. Ela me pediu ajuda.
O silêncio pairou sobre eles, pesado e sufocante. Gerard encarou o líquido âmbar em seu copo, as palavras de Bert ecoando em sua mente. Algo dentro dele dizia que aquela história estava longe de acabar.
— Ele mencionou alguma ameaça? Alguma coisa que estava acontecendo?
Bert desviou o olhar por um momento, como se estivesse tentando se lembrar de cada detalhe.
— Não diretamente. Mas... a maneira como ele falou... Eu disse que ele sempre me pareceu o tipo de cara que lutava até o fim. E ele respondeu que talvez lutar fosse exatamente o que ele estava fazendo.
Gerard sentiu a garganta secar.
— E depois?
Bert soltou um suspiro pesado.
— Depois eu entrei, e nunca mais o vi.
O silêncio que se seguiu pesou entre os dois.
Gerard comprimiu os lábios, refletindo. Se Frank realmente sabia que estava sendo caçado, por que não pediu ajuda? Ou será que pediu e ninguém o escutou? Bert olhou para Gerard com uma expressão determinada.
— Então é isso. Desde aquela noite, nada. Frank sumiu. E eu não posso ficar aqui esperando ele aparecer. Ele é meu amigo, e eu... não vou deixar isso para lá.
A situação parecia mais grave do que à primeira vista. O desaparecimento de Frank não era apenas um caso isolado. Havia algo muito maior em jogo.
— Não podemos esperar mais. — Gerard finalmente falou. — Precisamos agir rápido. Vocês já fizeram o boletim de ocorrência?
Bert balançou a cabeça, frustrado.
— Não, não. Não depois de tudo o que Frank descobriu.
— O que ele descobriu?
— Ele é jornalista... Estava investigando algo grande. Eu não vou saber explicar direito, mas a Jamia pode.
Gerard assentiu, sentindo que uma peça crucial da história tinha sido revelada.
— Certo. Se ela tem alguma pista, precisamos dela agora. Vamos ligar para ela.
Bert, sem perder tempo, discou o número de Jamia. O toque soou alto no silêncio pesado ao redor deles, cada segundo de espera aumentando a tensão no ar. Quando a chamada finalmente foi atendida, a voz dela veio abafada e carregada de ansiedade.
— Bert? Descobriu alguma coisa?
A voz saiu metálica e fraca pelo viva voz. Bert foi direto ao ponto, sem rodeios.
— Não. Mas eu encontrei uma pessoa que pode ajudar. Nós vamos até o apartamento dele agora. Você pode vir se encontrar com a gente? É urgente.
A voz de Jamia vacilou por um momento, mas logo se firmou.
— Eu já estou aqui... Podem vir.
Bert desligou o telefone e olhou para Gerard, um tanto aliviado, mas também preocupado.
— Ela está no apartamento do Frank. Vamos.
Gerard assentiu, já se levantando. Os dois saíram do bar, o peso da decisão e a urgência no ar como uma nuvem densa.
— Antes de irmos... Me mostre o lugar onde ele esteve pela última vez.
Bert deu alguns passos para fora da escadaria e apontou com a mão.
— Ele estava encostado nessa parede.
O chão grudento do beco lateral fazia barulho sob as botas de Gerard enquanto ele caminhava devagar, os olhos varrendo cada detalhe. A última vez que Frank fora visto havia sido ali.
Tinha que ter alguma coisa, alguma pista.
A luz fraca do poste piscava, lançando sombras inquietas sobre as paredes cobertas de pôsteres rasgados e pichações indistintas. Gerard usou a lanterna do seu celular para iluminar o lugar. Se abaixou ao lado de uma poça rasa de água e algo brilhou com a luminosidade.
Curvando-se mais, ele pegou o objeto e o girou entre os dedos. Uma correntinha quebrada, com um pingente minúsculo. Gerard conseguiu identificar a imagem de Nossa Senhora das Dores.
"Algo ruim aconteceu aqui." O pensamento se arrastou pela mente de Gerard como um sussurro inquietante enquanto ele vasculhava o beco mal iluminado. O ar carregava um cheiro metálico e frio, uma sensação opressora de abandono que parecia grudar em sua pele. O chão estava manchado por sujeira antiga, e as sombras dançavam nas paredes cobertas de grafites desbotados.
Seus olhos se fixaram em Bert, tentando decifrar sua expressão enquanto ele estendia o pingente na direção do outro.
— Você sabe se isso era do Frank?
Bert franziu o cenho, pegando o objeto com delicadeza, como se fosse feito de vidro. A luz amarelada do poste oscilava, refletindo no pingente com um brilho sutil. Ele o girou entre os dedos, os lábios se comprimindo numa linha fina e incerta.
— Não tenho certeza... — murmurou, devolvendo a corrente, seus olhos ainda grudados no pequeno objeto enquanto Gerard o guardava no bolso da calça.
Gerard lançou um último olhar ao pingente antes de voltar sua atenção ao beco. Suas botas ecoavam levemente contra o asfalto irregular enquanto ele girava lentamente, inspecionando cada canto, cada sombra inquieta. Seu olhar subiu pelas paredes até encontrar câmeras de segurança, posicionadas estrategicamente para cobrir toda a área.
— As câmeras... — Ele apontou, a esperança surgindo em sua voz.
— Já tentamos... Não funcionam. — A resposta de Bert foi seca, carregada de frustração.
Gerard soltou um suspiro tenso, o maxilar travado enquanto encarava as câmeras inúteis.
— Merda... — murmurou.
A sensação de que algo terrivelmente errado havia acontecido ali só ficou mais forte.
O caminho até o apartamento de Frank foi silencioso. Quando chegaram, o prédio parecia imponente à noite, suas janelas opacas refletindo a luz das ruas vazias. O som dos passos ecoava nas escadas de madeira, e o corredor estreito estava deserto, com o cheiro de mofo e um leve perfume de incenso impregnando o ar. Gerard foi o primeiro a chegar na porta do apartamento de Frank. Ele olhou para Bert, que estava logo atrás, e fez um aceno com a cabeça.
Ele ergueu a mão e bateu na porta. A batida foi firme, mas curta, e depois de alguns segundos, a porta se abriu lentamente, revelando Jamia, que estava visivelmente tensa. Ela procurou com os olhos por um rosto conhecido, e se afastou para eles entrarem quando viu Bert.
Gerard foi o primeiro a atravessar. O apartamento estava silencioso, exceto pelo som de uma reportagem que estava passando na TV. O lugar tinha uma sensação de abandono, as paredes tinham marcas de desgaste e móveis simples.
A luz fraca do apartamento iluminava o rosto de Jamia. Seus olhos estavam inchados e vermelhos. Olhos de quem não dormia e chorava a maior parte do tempo.
— Jamia, eu sou Gerard. — A voz mais grave do que o normal, como se estivesse tentando medir a situação. Ele fez uma leve pausa, como se ponderasse suas palavras antes de continuar. — Eu sou delegado de polícia, ou... era. Acho que é importante você saber isso.
Jamia olhou para Gerard com uma expressão de surpresa, e logo lançou um olhar furioso para Bert. Ele, por sua vez, encolheu os ombros ao ouvir o grito abafado dela:
— Robert!
O tom de sua voz estava carregado de indignação, e Gerard notou como ela se posicionou, quase como se estivesse se preparando para reagir com mais força. Bert levantou as mãos, tentando acalmar a situação.
— Eu sei, Jamia, mas... — Bert começou, mas ela o cortou com um movimento rápido.
— Não, Bert! Ele é policial, e você sabia? Eu pedi para você manter a polícia longe disso, e você sabe muito bem o porquê.
Gerard sentiu a tensão no ar e respirou fundo, tentando não agravar a situação. Ele não queria ser o alvo dessa raiva toda, mas sabia que precisaria passar por isso se quisesse realmente ajudar.
— Eu entendo seu medo — começou Gerard, sua voz calma, quase suave, para não escalar mais a discussão. — Eu realmente entendo, mas eu não estou aqui para causar mais problemas. Eu estou aqui porque Frank precisa de ajuda. E se ele estava se metendo em algo grande, eu sou a pessoa que pode fazer algo sobre isso.
Jamia olhou para ele, a raiva em seus olhos se misturando com uma dor palpável, como se ela estivesse sendo forçada a aceitar a realidade que tanto temia. Ela olhou para Bert, que parecia culpado, mas ainda esperançoso.
— Você não entende, Gerard — ela disse, a voz falhando um pouco, mas com firmeza. — O Frank é jornalista, e ele conseguia irritar as pessoas. E eu tenho certeza que ele irritou muita gente da polícia.
Gerard sentiu um aperto no peito ao ouvir suas palavras. Ele sabia que não seria fácil conquistar a confiança de Jamia, especialmente após tudo o que ela já havia enfrentado.
— Eu não sou como eles, Jamia — ele respondeu, sua voz carregada de sinceridade. — Eu estou aqui para fazer o que for certo, e acredite, eu entendo o que está em jogo.
A sala parecia ficar mais quieta. Jamia olhou para ele por um momento, ponderando, talvez com um pouco de desconfiança, mas logo se acalmou ao ver a sinceridade nos olhos dele. Ela não respondeu imediatamente, o que fez Gerard se perguntar se tinha sido a melhor ideia revelar sua profissão ali, naquele momento.
— Então, você está aqui como... policial? — Jamia perguntou, a dúvida em sua voz ainda muito clara.
Gerard negou devagar, seus olhos fixos nos dela, buscando algum tipo de aceitação ou compreensão.
— Não precisamos envolver a polícia se não quiser.
Jamia olhou para Gerard por um momento, absorvendo as palavras, antes de dar um passo à frente.
— Você era delegado, mas não trabalha mais na polícia? — perguntou, uma leve tensão em sua voz. Ela parecia tentar juntar as peças que ele acabara de entregar.
Gerard deu um meio sorriso, mas havia uma sombra de cansaço em seus olhos.
— Estou afastado temporariamente — admitiu, a verdade saindo mais simples do que ele gostaria. — Mas eu sei como podemos começar. E posso ajudar a encontrar Frank. Isso é o que importa.
— O que você quer em troca? — Jamia perguntou com desconfiança.
— Não tenho nenhum interesse além de descobrir o que aconteceu com Frank. — Gerard respondeu, um pouco ofendido pela pergunta.
Jamia cruzou os braços, os olhos escuros, avaliando cada detalhe de sua expressão.
— Não me leve a mal, mas é difícil acreditar que alguém queira se meter nisso sem um motivo pessoal.
Gerard suspirou, passando a mão pelo rosto.
— Quando encontrei Bert no bar... e ele me pediu ajuda... senti que deveria ajudar. Só isso.
Ela inclinou a cabeça, ainda hesitante.
— Você nem conhecia o Frank.
— Não. Mas isso não significa que eu possa ignorar.
O silêncio pairou entre os dois. Jamia baixou o olhar para olhá-lo de cima a baixo.
— Se estiver mentindo para mim, eu juro que faço da sua vida um inferno.
Gerard soltou um riso curto, sem humor.
— Já vivi meu inferno particular. Isso aqui é só mais um dia.
Jamia o observou por mais um instante antes de assentir lentamente. A reação de Jamia foi imediata. Seus olhos brilharam com uma mistura de alívio e aceitação. Gerard deu um passo mais perto dela, tentando se comunicar com empatia, sabendo que suas palavras significavam mais do que ele imaginava.
— Você reconhece isso?
Gerard puxou de seu bolso a corrente quebrada. Então, quando estendeu para a mulher, sua reação confirmou o seu medo. A respiração de Jamia ficou presa na garganta, os dedos tremendo ao tocar o pingente frio. Seus olhos brilharam com uma mistura de surpresa e desespero, e por um momento parecia que o mundo ao redor deles havia parado.
Gerard observou atentamente enquanto ela apertava a corrente contra o peito, como se a segurar pudesse trazer Frank de volta. Ele não precisava perguntar para saber o que aquilo significava.
— É do Frank. Onde você encontrou isso? — Jamia perguntou com a voz embargada, levantando o olhar para ele.
Gerard suspirou, passando a mão pelo cabelo.
— No beco atrás do bar onde ele foi visto pela última vez.
Ela balançou a cabeça, engolindo em seco.
— Ele nunca tirava essa corrente. Nunca.
O silêncio que se seguiu foi pesado. Gerard sentiu um arrepio percorrer sua nuca. Ele já sabia que algo ruim tinha acontecido ali, mas agora não restavam mais dúvidas. Cada detalhe indicava o que ele já temia: Frank não desapareceu. Ele foi levado.
— Você pode começar me falando o que aconteceu no dia do bar. - Gerard quebrou o silêncio.
— Ele nunca sumiu assim... — Jamia murmurou. Sua voz tremia levemente, mas ela se forçava a manter a calma. — Eu achei que ele fosse voltar para cá naquela noite. Mas ele não voltou. Ele foi fumar um cigarro... e sumiu.
Gerard andou pela casa à procura de algo que ele não sabia o que era.
— Ele nunca sumiu assim... — Jamia murmurou novamente, sua voz mais baixa dessa vez. A ansiedade estava se tornando visível, e Gerard podia perceber a tensão em seus gestos.
Bert permaneceu imóvel, observando em silêncio, como se ainda processasse tudo o que estava acontecendo. Seu olhar vagava entre Jamia e Gerard, mas ele não dizia nada.
— Bert me disse que ele deixou os pertences para trás. O que exatamente? — Gerard perguntou, cruzando os braços.
Jamia caminhou até o sofá e puxou um sobretudo escuro, dobrado de maneira quase cuidadosa, como se estivesse esperando que Frank voltasse para pegá-lo a qualquer momento.
— Os documentos dele, as chaves, o celular... Ficou tudo nesse casaco. — Ela disse, segurando a peça por um instante antes de entregá-la a Gerard.
Ele pegou o sobretudo, sentindo o peso dos objetos nos bolsos. O tecido ainda carregava um leve perfume misturado ao cheiro de cigarro e algo que ele não soube identificar. Com um movimento firme, começou a esvaziar os bolsos, colocando cada item sobre a mesa.
A carteira de couro gasta pelo uso. O celular desligado com a tela rachada em um dos cantos. Alguns papéis de bala amassados e um maço de cigarro.
Gerard tentou ligar o celular, mas estava desligado. Falta de bateria. Jamais foi atrás de um carregador prontamente.
Gerard pegou a carteira de couro gasta e a abriu com cuidado, sentindo o material áspero sob os dedos. O documento de identificação de Frank estava ali, guardado no compartimento de plástico transparente, levemente amarelado pelo tempo.
Ele segurou o cartão e o analisou sob a luz fraca, observando cada detalhe. "Frank Anthony Thomas Iero Jr., nascido em 31 de outubro de 1981... Filho de Linda Pricolo, pai desconhecido..." Seu olhar cravou-se na foto e, por um instante, o mundo ao seu redor pareceu se desfazer em um borrão indistinto. O rosto na imagem. O mesmo olhar intenso, com um sorriso no canto da boca que parecia irônico. Cabelo levemente bagunçado e o contorno do maxilar bem marcado.
O coração de Gerard deu um salto. Era ele.
O garoto do sonho. O mesmo que o fitava com desespero, os olhos suplicando ajuda enquanto sombras o puxavam para longe. O mesmo que estendia a mão, tentando se agarrar a ele. Não era possível. Não podia ser só coincidência.
Frank era real. Ele não era só um nome em uma investigação ou um personagem do seu sonho. Ele tinha uma vida, amigos, um endereço, uma rotina — e agora, tudo isso havia sido interrompido. Era alguém que, de alguma forma, já havia tentado se comunicar com ele.
Gerard passou o polegar sobre o rosto impresso no cartão, sentindo um estranho nó no estômago.
— Você está bem? - Jamia perguntou, percebendo o homem mais branco do que era possível.
— Parece que viu um fantasma... — Bert continuou, intrigado ao perceber a reação que ele teve ao ver a identidade de Frank.
Gerard piscou, tentando afastar o peso daquela revelação, mas a sensação continuava ali, queimando no fundo de sua mente.
— Me contem tudo que vocês sabem sobre o que o Frank estava escrevendo. Me dê nomes, endereços ou qualquer informação que vocês achem relevante.
O silêncio que pairou entre eles era espesso, carregado de incertezas. Jamia abraçou o próprio corpo, os dedos roçando levemente o tecido da camisa, enquanto seus olhos circulavam o ambiente como tentasse lembrar de algo que estivesse escapando.
— Eu não sei muito... — ela admitiu — Frank era muito reservado quando estava trabalhando. Mas eu sei que ele estava... receoso. Nos últimos meses, ele andava paranoico, evitava atender ligações de números desconhecidos, sempre olhando por cima do ombro...
Gerard franziu o cenho. O medo dela era palpável, como se só de falar sobre isso estivesse revivendo a tensão que cercava Frank antes de desaparecer.
— Merda... — Bert suspirou. — A única coisa que eu sei é que ele parou de frequentar o bar. Do nada. Um dia, ele estava lá, como sempre. No outro, parou de dar as caras... E quando voltou, sumiu de novo.
Gerard manteve o olhar firme neles, analisando cada expressão, cada pausa.
— Vocês viram alguma coisa? No bar? Teve alguma confusão, alguém estranho observando vocês?
Jamia franziu a testa, tentando puxar qualquer lembrança relevante.
— Não que me lembre...
— Ele já comentou se estava sendo seguido? Se tinha certeza disso?
Ela hesitou por um instante, mordendo o canto da unha.
— Não... Ele nunca disse nada diretamente.
Gerard soltou um suspiro frustrado, sentindo a paciência se esgotar. Nada concreto. Apenas fragmentos de medo e paranoia espalhados no ar.
— Eu pedi para ele me contar sobre o que era... — Jamia suspirou e passou a mão pelo rosto. — Ele só dizia que não queria me envolver. Ele comentou algo sobre corrupção e polícia. Mas... algumas semanas atrás, ele me falou sobre uma pessoa que estava passando as informações para ele montar a matéria. Ele costumava chamar de informante.
Gerard se inclinou levemente para frente, atento.
— Qual nome?
— Ele não falou. - Jamia balançou a cabeça. — Só que ele estava tentando juntar provas de alguma coisa grande. Ele tinha documentos, áudios...
Ele coçou a cabeça, tentando organizar as informações.
— Esses documentos... você sabe onde ele os guardava?
Jamia indicou o quarto de Frank com um movimento de cabeça: — Se ele deixou algo, deve estar lá.
Gerard se dirigiu ao quarto. O lugar exalava a presença de Frank, parecia congelado no tempo, como se ele estivesse prestes a voltar a qualquer momento para terminar o que começou. No canto do cômodo, uma mala aberta repousava no chão, com roupas jogadas de maneira descuidada, algumas ainda dobradas, outras emboladas como se tivessem revirado o conteúdo às pressas. Uma jaqueta de couro estava largada por cima, parcialmente pendendo para fora, e um par de coturnos permanecia ao lado, como se ele tivesse hesitado entre colocá-las na mala ou calçá-las.
A cama, encostada na parede, estava desarrumada. O cobertor amontoado revelava lençóis levemente embolados, como se ele tivesse acabado de se levantar sem se preocupar em arrumá-los. O travesseiro ainda tinha o formato de uma cabeça apoiada recentemente, e um livro com as páginas dobradas no meio jazia ao lado, esquecido no meio da pressa.
Na escrivaninha, a cena era diferente—ali, tudo indicava que Frank estivera trabalhando pouco antes de partir. Uma caneca com restos de café frio deixava uma mancha escura na madeira.
Ele se aproximou da escrivaninha, seus olhos analisando cada detalhe. Gerard pegou um pequeno papel amassado jogado no chão e leu em voz baixa:
— Se algo der errado, fuja.
Entre os papéis espalhados pela mesa, havia anotações apressadas, alguns com rabiscos, outros com frases riscadas de maneira enérgica, outras quase ilegíveis, enquanto fotos de políticos e figuras influentes se misturavam a recortes de jornais amarelados pelo tempo. Algumas frases estavam riscadas com força, como se o jornalista tivesse mudado de ideia no último segundo, enquanto outras eram circuladas repetidamente, reforçadas. Gerard juntou tudo e se virou:
— Bert, você vai tentar descobrir alguma coisa disso...
Bert segurou os papéis nas mãos. No centro da bagunça, O notebook ainda estava ali, desligado, mas com o carregador conectado, como se ele pretendesse usá-lo de novo.
— Frank usava esse notebook para trabalhar. — A voz de Jamia quebrou o silêncio, baixa, quase hesitante.
Gerard pegou o computador, sentindo o peso frio do aparelho nos braços. Seus dedos continuaram a deslizar pelos papéis que estavam embaixo do notebook, vasculhando algo mais concreto, algo físico que pudesse responder suas perguntas rapidamente.
Foi então que encontrou um papel amassado, rabiscado à mão com uma letra corrida e urgente: "... uma investigação sobre o envolvimento de policiais de alto escalão com empresários do setor de segurança privada foi misteriosamente encerrada. O caso, que envolvia propinas e desaparecimento de provas, teve todas as acusações retiradas depois que testemunhas mudaram seus depoimentos. Ativistas suspeitam que propina e chantagens tiveram um papel crucial para encerrar a investigação."
Gerard leu as palavras mais de uma vez, como se tivesse finalmente encontrado um fio solto em um nó muito bem amarrado.
— Isso pode ser um começo— Gerard murmurou. — Jamia, você fica com isso.
Jamia se aproximou com passos rápidos, a tensão visível no rosto. Seus dedos trêmulos agarraram o papel, os olhos correndo pelas palavras escritas ali. Em segundos, começou a digitar furiosamente no celular, como se estivesse tentando encaixar as peças de um quebra-cabeça incompleto.
Enquanto isso, Gerard voltou para a sala, sentindo o peso da exaustão se acumular em seus ombros. Ele se jogou no pequeno sofá encostado no canto, um móvel esquecido e gasto pelo tempo, e puxou o notebook para o colo. Ao ligá-lo, a tela piscou, exigindo uma senha de seis dígitos.
— Por acaso, você sabe a senha? — Ele perguntou, os olhos fixos na tela.
— Puts... não... — Jamia respondeu, mordendo o lábio, frustrada por não conseguir responder todas as respostas que ele precisava. — Mas... tenta 31, 10, 81.
Gerard digitou os números, mas o sistema rejeitou a tentativa.
— Hum... tenta ao contrário. 18, 01, 13?
Negado. Ele soltou um suspiro pesado, passando a mão pelo rosto. A noite estava apenas começando.
Chapter 5: O Sonho
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O céu do lado de fora tinha tons azuis e dourados, e anunciava a chegada do amanhecer. A luz suave da manhã filtrava-se pelas frestas das cortinas, espalhando sombras alongadas pela sala desarrumada. Pilhas de papéis estavam espalhadas sobre a mesa, copos vazios acumulavam-se nos cantos, vestígios de uma busca intensa e frustrante.
Jamia, vencida pelo cansaço, tinha se recolhido há algumas horas e agora dormia encolhida na cama de Frank, abraçando um travesseiro como se pudesse abraçar o próprio amigo desaparecido. Bert estava largado no sofá, o corpo curvado em uma posição aparentemente desconfortável, a respiração pesada e irregular, denunciando um sono profundo.
Gerard ainda estava acordado, os olhos fixos na tela do computador de Frank. Os dedos tamborilavam contra o teclado enquanto ele tentava mais uma combinação de números, um código qualquer que pudesse lhe dar acesso aos arquivos e, talvez, a alguma pista escondida ali dentro. Mas a tela continuava bloqueada, indiferente à sua insistência.
O peso da exaustão começou finalmente a arrastá-lo para baixo. Seus ombros caíram, os olhos ardiam, e sua mente, antes inundada de teorias e possibilidades, agora se rendia ao torpor do sono que tomava conta do seu corpo. Vencido pelo cansaço, se levantou.
Viu que no chão havia os recortes e papéis na mesa do Frank, agora, havia outros. Anotações feitas por Jamia e Bert. Eram poucas, mas já era alguma coisa. Gerard pegou um papel e uma caneta e deixou um bilhete: "Mais tarde eu volto, qualquer coisa me liguem."
O dia já estava claro quando Gerard desceu do táxi em frente à paróquia. O frio da manhã de Nova York cortava sua pele. Ele puxou o casaco para mais perto do corpo, tentando afastar o cansaço que pesava sobre seus ombros. Ele havia passado a noite inteira lendo e relendo os papéis físicos de Frank, absorvendo cada detalhe, cada nome.
A rua ainda estava silenciosa, o movimento da cidade somente começando. Gerard cruzou o pequeno jardim da igreja, os sapatos ecoando contra as pedras do caminho. Ao empurrar a porta lateral da casa paroquial, foi recebido pelo cheiro fraco de café. Tudo parecia exatamente como havia deixado — tranquilo demais em comparação ao turbilhão de informações que girava em sua cabeça.
Mikey estava sentado à mesa da cozinha, uma xícara de café entre as mãos, os olhos semicerrados pelo sono. Ele ergueu o olhar quando viu Gerard entrar.
— Você não dormiu. — Mikey constatou, sem nem precisar perguntar.
Gerard soltou um suspiro pesado e jogou-se na cadeira à frente do irmão.
— Não deu tempo.
Ele passou as mãos pelo rosto, sentindo a barba por fazer raspando contra os dedos. Sua mente ainda martelava as informações da noite anterior.
Mikey inclinou-se um pouco para frente, preocupado.
— Onde esteve?
— Saí para caminhar.
Mikey franziu o cenho e cruzou os braços enquanto analisava o irmão.
— A noite inteira?
Gerard suspirou cansado, desviando o olhar para a pequena janela da cozinha.
— Eu precisava pensar.
Mikey não parecia convencido, mas não insistiu. Em vez disso, puxou uma cadeira e sentou-se à mesa.
— Tem algo que você não está me contando.
Gerard hesitou por um momento, o peso das palavras prestes a sair da sua boca fez seu estômago se contorcer. Ele estava exausto, física e mentalmente. Esfregou as mãos no rosto, tentando afastar o cansaço que parecia ter se infiltrado em cada parte do seu corpo. Seus ombros estavam tensos, e seus pensamentos se embaraçavam cada vez mais. Era como se a noite anterior tivesse sido um pesadelo dentro de outro pesadelo, e agora ele precisava contar tudo. Precisava contar a Mikey o que o trouxe até ali, tudo o que aconteceu nas últimas 24 horas que o haviam empurrado para o limiar de algo que ele ainda não compreendia totalmente.
Gerard inclinou-se ligeiramente para frente. Mikey permaneceu em silêncio, mas seu olhar atento deixava claro que ele estava esperando, preparado para ouvir o que seu irmão tinha a dizer. Gerard olhou para ele, ainda hesitante, como se procurasse as palavras certas para começar. Por fim, soltou um longo suspiro e então tudo começou a sair, como se uma parede que ele havia construído finalmente desabasse.
— Lindsey me traiu — disse ele, com a voz baixa e o olhar perdido. Mikey o olhou, mas não disse nada. Gerard sentiu o peso daquelas palavras, como se tirasse algo enorme das suas costas. — Eu vi. E... eu quase fiz uma besteira.
A última parte soou como uma confissão, e ele olhou para Mikey, esperando algum tipo de reação. Mikey, no entanto, não parecia surpreso. Era claro que ele sabia que algo muito maior estava acontecendo, mas ainda assim, Gerard sentia que precisava contar.
— Depois disso, tudo ficou turvo. Eu não sabia mais quem o que eu estava fazendo. O que aconteceu. Vim parar aqui por algum motivo. A polícia me afastou e você me trouxe para cá. — Gerard respirou fundo, tentando reorganizar os pensamentos, puxando as lembranças de tudo o que havia acontecido depois. Ele fechou os olhos por um momento, sentindo a tensão em sua testa. — Foi quando... quando tive aquele sonho.
Mikey levantou a sobrancelha, interessado. Gerard continuou.
— Um homem. Ele me pediu ajuda. Acordei com a sensação de que algo estava errado, mas não sabia o quê. Eu precisava sair daqui. Foi quando encontrei um bar. E... — Gerard pausou, incerto se deveria continuar.
Mikey não pareceu perceber a hesitação no tom de Gerard. Ele apenas acenou com a cabeça, como se entendesse, mas o olhar preocupado nunca saiu de seu rosto.
— Você deveria descansar, Gerard. O que aconteceu nos últimos dias não foi fácil para você. Mas é bom ter saído um pouco.
Gerard sentiu um peso nas palavras do irmão, mas, por dentro, ele sabia que não podia contar toda a verdade. Não sobre o que aconteceu no bar. Não sobre o que ele realmente sentiu ao estar lá, com aquele sentimento estranho e a conexão com o homem do sonho, que ainda o assombrava. Não sabia como explicar isso, como dizer a Mikey que algo que parecia sobrenatural havia tocado sua alma de uma maneira que ele não podia compreender completamente.
Ele fechou os olhos por um momento, sentindo a exaustão e a confusão se misturando em sua mente. Tentou tirar o foco dos pensamentos que o atormentavam e concentrou-se nas palavras de Mikey.
— Estou bem, Mikey. Eu só... só preciso de um tempo. Vou descansar e depois a gente vê o que fazer.
Mikey ainda estava sentado, observando o irmão com um olhar que transbordava preocupação, mas finalmente relaxou, percebendo que Gerard não estava pronto para falar sobre o que realmente aconteceu.
— Tenho alguns compromissos hoje, mas estou livre na parte da tarde.
Gerard assentiu, tentando sorrir de maneira convincente, mas a sombra do que realmente sentia ainda pairava sobre ele. Ele precisava lidar com isso sozinho por enquanto. Se afastou, mas antes de chegar na porta, parou.
— Você ainda vê?
Mikey soube exatamente o que Gerard falava. O assunto que eles veladamente não tocavam há anos. A sombra, que se comunicava com Gerard, também se comunicava com Mikey.
Mikey ficou parado por um momento, o coração acelerando um pouco. Ele não esperava que Gerard fosse tocar nesse assunto. Não depois de tudo o que haviam passado, os anos de silêncio, os medos não ditos.
A sala ficou em um silêncio carregado enquanto Mikey refletia sobre a pergunta. Ele respirou fundo e olhou para o irmão. Não sabia se era o momento certo para reabrir aquelas velhas feridas, mas a preocupação nos olhos de Gerard era inegável.
— Às vezes — Mikey respondeu, a voz mais baixa do que pretendia. Ele deu um passo em direção a Gerard, como se tentasse diminuir a distância entre os dois, apesar de não ter certeza se era possível. — Às vezes eu vejo.
Gerard permaneceu em silêncio, os olhos fixos no irmão.
— Eu vi também, Mikey — Gerard finalmente disse, a voz mais suave do que ele imaginava. — Essa noite.
Mikey assentiu, entendendo mais do que Gerard imaginava. Eles passaram por experiências semelhantes, mas nunca haviam discutido os detalhes, as visões, as sensações que os assombravam. A sombra, a presença que parecia seguir ambos. Às vezes se manifestava em momentos específicos, outras vezes, parecia apenas o observar.
Uma sensação estranha de alívio misturada com o medo do que estava por vir. Mikey não sabia exatamente o que estava acontecendo com ele, nem o que era aquela sensação de estar sendo chamado. Mas agora, ele sabia que o irmão estava ali, compartilhando da mesma carga silenciosa. E isso, de alguma forma, o fazia sentir-se menos sozinho.
Gerard caminhou até o quarto com passos pesados, como se o peso do mundo estivesse sobre seus ombros. A casa paroquial estava quieta, a luz suave da manhã mal iluminava os cantos da sala. A paz do lugar, que normalmente lhe trazia um certo consolo, agora parecia estranha, como se estivesse tentando afastar algo que ele ainda não compreendia totalmente.
Ele entrou no quarto, fechando a porta atrás de si com um suspiro. A luz do amanhecer se filtrava pelas cortinas, criando uma atmosfera calma, mas também abafada. Gerard sentiu seus músculos se tensionarem e, por um momento, se permitiu ficar ali, olhando para a cama, que parecia convidá-lo a finalmente descansar. Seus olhos estavam cansados, o peso dos dias anteriores, das revelações e das conversas, havia deixado sua mente sobrecarregada.
Ele se aproximou da cama e se sentou na beirada, as mãos caindo pesadas sobre seus joelhos. Por um momento, ele não fez mais nada além de observar o vazio à sua frente. O barulho distante da igreja e o leve farfalhar das folhas do lado de fora pareciam ecoar pela casa, criando uma sensação que ele não sabia nomear. A sombra de seus pensamentos o acompanhava, como uma presença persistente que ele não conseguia afastar.
Ele ergueu a mão enfaixada, observando o curativo já desgastado nos cantos, manchado por um tom amarelado. Inspirou fundo antes de começar a desenrolá-lo, sentindo a textura áspera do tecido contra a ponta dos dedos.
Cada volta removida revelava mais de sua pele, ainda marcada por um leve inchaço e o tom arroxeado ao redor da ferida dos nós dos dedos que começou a cicatrizar. O movimento das mãos fez a ferida arder momentaneamente, e ele contraiu a mandíbula, engolindo a irritação. Quando finalmente o último pedaço de gaze se desprendeu, ele virou a palma para si.
A lembrança daquela noite estava cravada na pele, tão difícil de ignorar quanto qualquer outra cicatriz que ele carregava.
Gerard se deitou na cama, puxando as cobertas para si, mas não conseguiu fechar os olhos de imediato. Sua mente estava agitada demais. Ele repassava as palavras de Mikey na cabeça, com a sensação de ter um peso se acumulando sobre ele, e, acima de tudo, da visão do Frank no sonho, pedindo socorro. O eco dessa imagem estava imenso em sua mente, como se ele estivesse preso em um labirinto sem saída.
Ele fechou os olhos por um momento, tentando afastar o turbilhão de pensamentos. Talvez o descanso fosse tudo o que ele precisasse agora. Com um suspiro, ele afundou a cabeça no travesseiro. Quando finalmente conseguiu fechar os olhos, o cansaço se apoderou de seu corpo, e ele se entregou ao sono.
O sono de Gerard foi pesado e inquieto, como se ele estivesse sendo puxado para um lugar onde a realidade e os pesadelos se misturavam. No início, era uma quietude densa, mas logo se dissolvia em uma névoa embaçada, como se o espaço ao seu redor estivesse sendo distorcido. A escuridão tomava forma, com sombras que se moviam de maneira quase imperceptível. Ele sentiu que estava em um corredor estreito, cujas paredes eram feitas de um material áspero, como cimento.
Ele avançava, seus passos ecoando na quietude, e as sombras ao seu redor pareciam observá-lo. Gerard não conseguia ver claramente, mas sabia que não estava sozinho. Cada sombra parecia ser uma presença, uma intenção que ele não conseguia decifrar. Ele sentiu o peso do ar, algo denso que dificultava sua respiração.
De repente, uma figura se materializou à sua frente, emergindo da escuridão. Não era uma pessoa, mas uma silhueta que mudava de forma, como se fosse feita de sombras líquidas. Gerard sentiu o frio daquilo, uma sensação de medo e curiosidade misturados. Ele tentou falar, mas sua voz não saía. Era como se o ar estivesse emudecido ao seu redor. A figura se aproximava, e Gerard sentia que algo a puxava em sua direção, como se estivesse sendo atraído para a escuridão daquela presença.
Quando ela chegou perto o suficiente, uma voz suave, quase familiar, se fez ouvir, mas não claramente. Era como um sussurro que desaparecia nas sombras. Ele não conseguia entender as palavras, mas a sensação era inconfundível — ele estava sendo chamado. Então, a figura se afastou rapidamente. Algo o impelia a seguir, a atravessar aquele corredor estreito e sombrio, mesmo sem saber aonde aquilo o levaria.
Subitamente, uma luz fraca apareceu à sua frente. Era uma luz pálida e distante, mas Gerard sentiu uma necessidade urgente de alcançá-la, como se fosse a única saída, o único ponto de fuga daquele pesadelo. Mas, quanto mais ele se aproximava da luz, mais ela parecia se afastar, como se estivesse sendo puxada por uma força invisível. Ele sentiu uma pressão crescente no peito, como se algo estivesse tentando impedi-lo de alcançá-la.
Foi então que ele ouviu uma última vez o sussurro. Desta vez, a voz estava mais clara, mais desesperada:
"Socorro!"
Antes que pudesse reagir, uma explosão de luz o envolveu, cegando-o momentaneamente. Ele tentou se mover, mas foi interrompido por uma sensação de queda. A luz e a escuridão se misturaram, e o mundo ao redor de Gerard era um emaranhado de sombras, como se estivesse preso entre o sono e a vigília. Ele piscou algumas vezes, tentando ajustar a visão à penumbra que o cercava, até perceber onde estava.
O mesmo galpão.
O cheiro de ferrugem e umidade ainda impregnava o ar, mas algo parecia diferente. Mais denso. Mais frio. Gerard sentiu um arrepio subir por sua espinha enquanto seus olhos procuravam por Frank.
E então ele o viu.
Frank estava ali, ainda amarrado à viga, mas algo nele havia mudado. O sangue em sua têmpora já não parecia fresco—em vez disso, havia secado em manchas escuras sobre sua pele pálida. Seus olhos, antes semicerrados pela dor, agora estavam bem abertos, fixos em Gerard com uma intensidade quase sobrenatural.
— Frank... — Gerard sussurrou, a garganta apertada.
Dessa vez, o rapaz reagiu. Seus lábios se moveram, mas o som que saiu foi um sussurro fraco, engolido pelo vazio ao redor. Gerard tentou dar um passo à frente, e, ao contrário do primeiro sonho, dessa vez conseguiu se mover. A distância entre eles parecia diminuir e, conforme se aproximava, conseguiu ouvir melhor a voz de Frank.
— Me ajude...
As palavras eram arrastadas, como se lhe custassem esforço. Gerard sentiu o coração acelerar.
— Onde você está? — Ele perguntou, a voz saindo mais firme do que esperava.
Frank piscou devagar, os olhos marejados de um desespero silencioso. Sua respiração era irregular, e suas mãos, mesmo amarradas, tremiam levemente.
— Eu não sei... — Frank engoliu em seco, os músculos do maxilar se contraindo. — Eles me trouxeram para cá.
Gerard deu um passo hesitante em sua direção, o coração batendo forte. O ambiente ao redor deles era nebuloso, oscilando entre sombras e lampejos de luz, como se o sonho estivesse prestes a se desfazer. Mas Frank estava ali, real o suficiente para que Gerard quase sentisse seu calor.
— Vou te encontrar — ele prometeu, a voz saindo mais suave, quase um sussurro.
Frank soltou uma risada fraca, mas seus olhos brilhavam com algo que ia além do medo. Era uma tristeza. Ele apenas sorriu, um sorriso pequeno e cheio de significados que Gerard não conseguiu entender. Ele inclinou ligeiramente a cabeça, como se quisesse se aproximar, mas as amarras o mantinham no lugar.
— Você precisa acordar — Frank murmurou, e pela primeira vez, sua voz tremeu com um tom de urgência. — Você não tem muito tempo.
O ar pareceu vibrar entre eles, e Gerard teve um impulso irracional de segurá-lo, de arrancá-lo daquela escuridão. Seu peito doía com a necessidade de trazê-lo para perto.
— Frank...
Frank fechou os olhos por um instante, como se quisesse guardar aquele momento. Quando os abriu de novo, uma única lágrima deslizou por sua bochecha.
— Eu queria que tivéssemos nos conhecido de outra forma.
O mundo ao redor deles começou a se partir, e, num último ato de desespero, ele avançou para tocá-lo — mas antes que pudesse sentir a pele de Frank sob seus dedos, tudo desapareceu. Antes que pudesse perguntar qualquer coisa, um som estridente rasgou o ar — um ruído metálico, como se algo estivesse se partindo ao meio. A luz da claraboia piscou violentamente, e, em um piscar de olhos, Frank não estava mais ali.
O galpão se dissolveu ao seu redor, Gerard acordou com um sobressalto, o nome de Frank escapando de seus lábios. Seu quarto ainda estava claro, e ele sentia sua pele arrepiada, como se o frio do sonho tivesse se infiltrado no quarto paroquial.
Frank falou com ele de novo.
O ar ainda estava pesado com a sensação do sonho. Gerard acordou de súbito, o coração martelando no peito, a respiração irregular. Ele levou a mão ao rosto, tentando dissipar a névoa de sonolência que o envolvia, mas o frio na espinha continuava ali. Ele sabia que aquilo não era só um sonho qualquer.
Passando a mão pelos cabelos desgrenhados, Gerard pegou o celular do criado-mudo. A luz da tela o forçou a semicerrar os olhos. As notificações brilhavam em fila: O advogado mandou várias mensagens curtas sobre o divórcio. Documentos pendentes, prazos, mais burocracia do que ele conseguia processar naquele momento. Lindsey havia algumas tentativas de contato. Algumas mensagens espaçadas, como se esperasse uma resposta que nunca vinha.
E então, subitamente, uma conversa subiu a todas as outras. Era Bert:
"Onde você foi? Tem ideia de como parecia um tarado com aquele computador ontem?"
Gerard suspirou, passando os dedos pelo rosto. Ele ignorou as mensagens do advogado e de Lindsey—não era agora que ia lidar com isso. Em vez disso, abriu a conversa com Bert e digitou rapidamente:
"Vamos almoçar. Preciso te contar o que descobri."
A resposta veio quase instantaneamente:
"Porra, finalmente. Onde?"
O final da tarde tingia as ruas de tons dourados e avermelhados quando Gerard entrou na pequena galeria comercial. O lugar tinha um charme discreto, com vitrines envidraçadas que refletiam o brilho do sol que estava se pondo e uma aconchegante ao fundo, onde algumas mesas estavam ocupadas por pessoas absortas em conversas ou mergulhadas em livros.
Ele encontrou Bert facilmente. O homem estava esparramado em um banco no corredor da galeria, uma garrafa de cerveja já aberta na sua mão. Assim que avistou Gerard, arqueou uma sobrancelha e soltou um riso baixo.
— Sério? — Bert gesticulou com o queixo para a camisa amarrotada de Gerard. — Você dormiu com essa roupa ou nem dormiu?
Gerard afundou no banco ao seu lado com um suspiro, esfregando o rosto com as mãos.
— Nem dormi direito.
— É, dá pra ver — Bert analisou o amigo por um instante, os olhos percorrendo as olheiras profundas e o cansaço evidente em seu rosto. Então, inclinou-se um pouco para frente, apoiando os antebraços na mesa. — Isso é por causa do Frank ou...?
Gerard franziu o cenho.
— Como assim?
Bert girou a garrafa entre os dedos, lançando-lhe um olhar casual, mas atento.
— Sei lá. Você tá afastado da polícia, sem dormir, obcecado por esse cara desaparecido... — Ele deu um gole na cerveja antes de continuar. — E, pelo visto, ignorando a própria vida.
Gerard desviou o olhar por um momento, mexendo distraidamente na borda do guardanapo sobre a mesa.
— Minha vida tá uma bagunça — Gerard admitiu, sem emoção na voz.
— Quer me contar o que aconteceu?
Gerard soltou um suspiro baixo, ainda sem encarar Bert. Seus dedos continuavam a dobrar e desdobrar o guardanapo, como se o papel pudesse absorver a inquietação que ele não conseguia expressar em palavras.
— Não tem muito o que contar — disse, a voz arrastada. — Eu só estraguei tudo.
Bert permaneceu em silêncio por um momento, estudando-o com aquele olhar analítico que raramente demonstrava. Então, recostou-se na cadeira, cruzando os braços.
— Estragou tudo como?
Gerard apertou os lábios e soltou uma risada sem humor.
— Estraguei a minha vida. A minha carreira. O meu casamento. Com a minha própria cabeça, aparentemente.
Bert inclinou-se ligeiramente para frente.
— O afastamento... Qual foi o motivo?
Gerard hesitou. Uma sombra passou por seu olhar antes que ele desse de ombros.
— Eles acham que estou sobrecarregado... — Ele exalou devagar. — acham que perdi o controle.
— Você parece sobrecarregado.
— Só mais um dia na minha pele.
Bert não pressionou, mas sua expressão dizia que queria mais respostas.
— E agora?
Gerard finalmente ergueu os olhos para encará-lo.
— Agora? Eu finjo que minha vida pessoal não existe e tento descobrir o que aconteceu com Frank.
Bert balançou a cabeça, pegando a cerveja e girando a garrafa entre os dedos.
— Bom plano, delegado. Aposto que seu terapeuta aprovaria.
Gerard riu pelo nariz.
— Se eu tivesse um, com certeza não aprovaria.
— Ainda dá tempo de arrumar um.
— E perder meu talento natural pra autodestruição? Nem pensar.
Bert balançou a cabeça, ainda segurando a garrafa de cerveja.
— Okay, então você tá fugindo da sua vida pessoal e se jogando de cabeça nesse caso. Até aí, nada de novo. Mas onde você tá se enfiando enquanto faz isso?
Gerard franziu o cenho.
— Como?
— Ué, você foi afastado da polícia, problemas no casamento... você tá morando onde? — Bert estreitou os olhos e apontou para a camisa amassada. — Porque, pelo estado das suas roupas, não parece que você tem um lugar confortável pra voltar.
Gerard passou a mão pelos cabelos, hesitante.
— Na paróquia do meu irmão.
Bert piscou, processando a informação.
— O quê?
— Meu irmão é padre. — Gerard repetiu, suspirando. — Ele tá me deixando ficar lá um tempo.
Bert ficou um segundo em silêncio antes de explodir em uma risada baixa e incrédula.
— Você... morando numa igreja?
— Eu não moro lá, é temporário — Gerard retrucou, pegando o cardápio só para ter algo com que ocupar as mãos.
— Aham. E enquanto isso, você tá usando a mesma roupa dois dias seguidos e, está morando com Jesus Cristo.
Gerard revirou os olhos.
— Qual é o ponto disso, Bert?
Bert ergueu as mãos em rendição.
— Só tô dizendo... Talvez fosse uma boa ideia você se cuidar um pouco. Comprar umas roupas novas, achar um lugar para morar de verdade. Sei lá, qualquer coisa que te faça parecer um cara funcional.
Gerard riu pelo nariz.
— Funcional?
— Sim, agora, você parece um cachorro abandonado. E, sinceramente, ninguém leva a sério um investigador particular que parece um andarilho.
Gerard soltou um suspiro longo, mas não podia negar que Bert tinha um ponto.
— Tá bom. Depois do almoço, me ajuda a comprar umas roupas novas.
Bert abriu um sorriso satisfeito.
— Agora, sim, um plano sensato. — Bert riu baixo e tomou um gole de cerveja antes de mudar de assunto. — Certo. Agora me conta o que você descobriu.
Gerard inspirou fundo, juntando os pensamentos.
Chapter 6: Um Suspeito
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Gerard balançou a cabeça com um suspiro, mexendo distraidamente na sua própria calça. Bert deu mais um gole na cerveja, mas continuou observando-o, os olhos estreitados em uma curiosidade silenciosa.
Bert girou a garrafa de cerveja entre os dedos, observando Gerard com expectativa.
— Mas e aí? Você disse que descobriu uma coisa.
Gerard desviou o olhar por um instante, como se pesasse cada palavra antes de soltá-la. O silêncio entre os dois se estendeu por alguns segundos até que ele finalmente suspirou.
— Sim… — Sua voz saiu baixa, hesitante. Ele inclinou-se ligeiramente para frente.
Bert franziu o cenho, sentindo a tensão que pairava no ar. Ele cruzou os braços e inclinou-se também, tentando puxar a verdade dos olhos cansados de Gerard.
— Então?
— Quer saber? — Gerard passou as mãos pelo rosto, mudando de ideia. — Vamos comer primeiro, eu estou faminto.
Gerard e Bert caminharam pela praça de alimentação da galeria comercial, cercados pelo burburinho das pessoas indo e vindo com suas bandejas cheias de comida. O cheiro de fritura, temperos e queijo Cheddar pairava no ar, misturando-se à música ambiente e ao som de talheres tilintando contra pratos de porcelana.
— Certo, delegado, o que vai ser? — Bert perguntou, esfregando as mãos como se estivesse prestes a tomar a decisão mais importante do dia.
Gerard olhou ao redor, um pouco perdido com a variedade de opções.
— Não sei… Não comi nada desde ontem, então qualquer coisa serve.
Bert arqueou uma sobrancelha.
— Desde ontem? Cara, você se odeia, né?
— Dramático — Gerard resmungou, enfiando as mãos nos bolsos. — Só não tive tempo.
— Bem, hoje você vai comer. E nada de café puro fingindo ser uma refeição, entendeu?
Gerard revirou os olhos, mas não contestou. Bert parou em frente a um restaurante de comida mexicana e apontou para o cardápio iluminado.
— Que tal um burrito? Ou você é do tipo que prefere algo sem graça, tipo uma salada?
Gerard lançou um olhar entediado.
— Sou policial, não um monge.
— Então burrito! — Bert decretou com um sorriso vitorioso.
Eles fizeram o pedido e, enquanto esperavam, Bert cutucou Gerard com o cotovelo.
— Quer apostar quanto que você vai se sujar todo com esse molho?
— Sou um adulto funcional, Bert. Sei comer um burrito sem me sujar.
Bert riu.
— Adulto funcional — Bert repetiu imitando a voz de Gerard — continue repetindo isso até acreditar, meu amigo.
Gerard abriu a boca para retrucar, mas a atendente chamou o número do pedido antes que ele pudesse responder.
— Isso ainda não acabou — ele resmungou, pegando a bandeja.
— Não, claro que não — Bert respondeu, pegando a dele. — Duvido você ganhar essa batalha contra a gravidade e o molho picante.
Os dois se sentaram em uma mesa ao ar livre, e Gerard lançou um olhar de desafio para Bert antes de dar a primeira mordida. Bert apenas sorriu, satisfeito, enquanto esperava a inevitável mancha de molho aparecer na camisa.
Gerard mastigou devagar, os olhos fixos em Bert como se quisesse provar um ponto. A cada segundo que passava sem uma gota de molho cair, seu ego inflava um pouco mais.
Bert, por outro lado, assistia à cena com a paciência de quem sabia que era só uma questão de tempo.
— E então? Tá bom? — perguntou, fingindo desinteresse enquanto mordia o próprio burrito.
Gerard assentiu, ainda mastigando, e fez um gesto de aprovação com a mão livre.
— Melhor do que eu esperava. — Ele engoliu e limpou a boca com o guardanapo. — E, só para constar, estou completamente limpo até agora.
Bert sorriu, inclinando-se sobre a mesa.
— Isso porque você tá comendo igual a um robô, todo cuidadoso. Tá até segurando o burrito num ângulo estratégico.
Gerard riu pelo nariz e voltou a dar outra mordida, mantendo sua postura calculadamente impecável. Mas no instante em que baixou a guarda e relaxou os ombros, uma generosa quantidade de molho escorreu pelo lado do burrito, manchando a camisa na altura da sua barriga e um pouco da sua calça.
Bert congelou por um segundo antes de explodir em gargalhadas.
— EU SABIA!
Gerard olhou para a mancha e soltou um suspiro pesado, enquanto Bert quase se engasgava de tanto rir.
— Você não pode ganhar de um burrito, cara. Ele sempre vence.
Gerard pegou um guardanapo e tentou limpar a sujeira, sem sucesso.
— Ótimo. Mais uma razão pra comprar roupas novas.
Bert apontou para ele com um sorriso satisfeito.
— Exatamente! Era esse o plano desde o início.
Gerard estreitou os olhos.
— Você armou tudo isso?
— Quem? Eu? — Bert abriu um sorriso inocente. — Eu jamais faria algo tão manipulador.
Gerard revirou os olhos, mas não conseguiu evitar um sorriso de canto.
— Você é insuportável.
— E você tá com uma mancha de molho na camisa. Agora, bora comprar roupas antes que te confundam com um morador de rua.
Depois do almoço e de Bert ter feito questão de zombar da mancha de molho pelo caminho, eles seguiram para uma das lojas de roupas masculinas da galeria. O cheiro de tecido novo e perfume amadeirado dominava o ambiente, enquanto as araras exibiam peças organizadas por cores e estilos, todas impecavelmente dobradas ou penduradas.
Gerard parou logo na entrada, cruzando os braços.
— Tá. Onde começamos?
Bert, por outro lado, já estava um passo à frente, deslizando os dedos por algumas jaquetas em uma arara próxima.
— Cara, você precisa de tudo. Camisas, calças, talvez um terno… — Ele olhou para Gerard de cima a baixo e fez uma careta brincalhona. — Ouvi falar que até roupas íntimas novas fazem bem à autoestima.
Gerard bufou.
— Eu tô sobrevivendo, Bert. Só preciso de algumas roupas decentes, não de um guarda-roupa inteiro.
— E é exatamente isso que um cara que precisa de um guarda-roupa inteiro diria.
Bert pegou uma camisa preta de botão e jogou para Gerard, que a segurou no ar, erguendo uma sobrancelha.
— Tá, mas você vai ajudar ou só vai ficar jogando roupas em mim?
Bert abriu os braços com um sorriso travesso.
— Eu sou um ótimo consultor de moda.
— Ah, claro. Eu lembro do seu moletom rasgado de ontem.
— Aquilo era um Balenciaga, seu ingrato.
Gerard riu, pegando mais algumas peças enquanto caminhavam pela loja. Aos poucos, ele foi escolhendo camisas, algumas calças e até um casaco mais pesado. Quando viu, já tinha um bom monte de roupas no braço.
— Tá começando a parecer um ser humano funcional — Bert comentou, observando as escolhas do amigo.
— Não sabia que um consultor de moda pode ofender a sua clientela assim.
— Essa é só uma das minhas muitas qualidades, obrigado.
Gerard revirou os olhos e foi até o provador, enquanto Bert esperava do lado de fora, ansioso para dar seus comentários sinceros sobre cada look.
Gerard entrou no pequeno espaço carregado de roupas, soltando um suspiro enquanto pendurava as peças nos ganchos. Ele se olhou rapidamente no espelho — olheiras fundas, barba por fazer, cabelo bagunçado e roupas sujas. Definitivamente concordava com Bert, ele precisava de uma renovação.
Do lado de fora, Bert batucava impacientemente na parede do provador.
— E aí? Já escolheu qual vai provar primeiro ou preciso entrar aí e escolher por você?
— Relaxa, eu sei me vestir sozinho — Gerard respondeu, tirando a camisa velha e vestindo a nova que Bert escolheu. Ajustou os botões, puxou a barra, se virou de um lado para o outro. A roupa caía bem, mas ele ainda não sabia se gostava da ideia de trocar seu guarda-roupa depois de tanto tempo usando as mesmas coisas.
— Anda logo, porra, eu tô ficando velho aqui! — Bert reclamou do lado de fora.
Gerard revirou os olhos, abriu a cortina e saiu, mostrando a camisa preta de botão e uma calça jeans nova.
Bert analisou por um instante, depois fez um aceno aprovador.
— Olha só… Você tá apresentável!
— Engraçadinho.
— Não, sério. Dá até pra acreditar que você tem um emprego.
Gerard suspirou e voltou para o provador, pegando outra camisa e uma calça social preta. Quando saiu, Bert apertou os lábios como se estivesse analisando uma obra de arte.
— Hmm. Essa te deixa com cara de quem paga boletos em dia.
— E isso é bom ou ruim?
— Depende… Você quer parecer responsável ou ainda sustentar o visual de quem sobrevive de café e caos?
Gerard olhou o próprio reflexo e deu de ombros.
— Acho que posso me esforçar um pouco.
Bert sorriu, satisfeito.
— Ótimo. Agora só falta a gente pegar algumas camisetas básicas, umas cuecas novas e talvez um casaco.
Gerard pegou algumas peças adicionais, mais por insistência de Bert do que por real desejo de comprar tudo aquilo. Após provar mais algumas combinações, ele finalmente saiu do provador com uma pilha de roupas no braço.
— Pronto. Acho que isso já é suficiente pra não parecer um mendigo.
Bert colocou as mãos nos bolsos e balançou a cabeça, sorrindo.
— É, agora só falta um corte de cabelo e talvez um banho decente.
— Não abusa da sorte.
Eles seguiram para o caixa e, enquanto a atendente, dobrava as roupas e passava as compras. Gerard encostou o cartão na maquininha, sem olhar o valor.
Quando estavam a caminho da saída, Bert olhou para Gerard com um meio sorriso e fez um desvio rápido, puxando Gerard pelo braço até uma prateleira cheia de roupas íntimas masculinas.
— Tá bom, agora a parte mais importante: cuecas.
Gerard soltou um suspiro exausto.
— Bert, eu já peguei umas básicas ali. Tá bom.
Bert ignorou completamente o protesto e começou a vasculhar a prateleira, passando por modelos neutros até encontrar algo que o fez arregalar os olhos de empolgação.
— Isso aqui… isso aqui é perfeito.
Ele puxou uma cueca boxer vermelha estampada com pequenas chamas e, bem no centro, em letras garrafais, estava escrito HOT STUFF.
Gerard cruzou os braços, impassível.
— Não.
Bert segurou a cueca no alto, balançando-a dramaticamente: — Sim.
— Sem chances.
— Ah, qual é! Você precisa de um pouco de diversão na sua vida!
— Eu não vou usar isso.
Bert arqueou uma sobrancelha, divertido.
— Vai que você arranja um encontro. Tem que impressionar, cara.
Gerard pegou outra cueca aleatória da pilha e jogou na cara de Bert, que gargalhou enquanto a tirava de cima do rosto.
— Você é um idiota.
— E você é um estraga-prazeres. — Bert jogou a cueca de volta na prateleira. — Mas tudo bem, a gente ainda tem tempo pra trabalhar esse seu senso de humor.
Gerard pegou suas sacolas e começou a andar em direção à saída da loja.
— Se por “tempo” você quer dizer o tempo que eu levar pra te largar aqui e ir embora sozinho, então sim.
Bert deu um salto para alcançá-lo.
— Nossa, que grosso. Tá bom, já parei! Mas admita: você quase comprou.
Gerard olhou de soslaio e resmungou:
— Nem em um milhão de anos.
Bert apenas sorriu, sabendo que, no fundo, Gerard já tinha se acostumado com suas palhaçadas. Após saírem da loja, Gerard e Bert seguiram pelo corredor da galeria, agora um pouco menos apressados. O sol do fim de tarde atravessava os vidros amplos do teto, tingindo tudo com um tom dourado suave.
A porta automática da farmácia se abriu com um chiado suave, revelando o interior iluminado e esterilizado do local. Gerard entrou primeiro, seguido de perto por Bert, que observava as prateleiras abarrotadas com curiosidade exagerada.
— Então… o que exatamente você precisa? — Bert perguntou, tentando segurar um sorriso. — Porque, honestamente, você tá com uma cara de quem precisa de tudo.
Gerard suspirou, passando a mão pelo rosto áspero, sentindo a barba rala que começava a incomodar.
— Barbeador, sabonete, desodorante… essas coisas.
— Ah, higiene básica. Interessante. — Bert riu, recebendo um olhar irônico de Gerard. — Tá bom, tá bom. Vamos lá.
Eles caminharam juntos pelos corredores, desviando de um casal de idosos que analisava as vitaminas com concentração. Bert liderava o caminho, andando com passos largos e seguros, como se fosse o dono do lugar. Gerard o seguia em silêncio, observando a leveza com que ele parecia encarar tudo, até as tarefas mais mundanas.
Bert arqueou uma sobrancelha, pegando o barbeador mais caro da prateleira e jogando no cesto que segurava.
— Você só quer gastar o meu dinheiro.
Bert deu de ombros, seguindo para o corredor seguinte. Eles pararam em frente à seção de sabonetes, onde dezenas de opções coloridas e perfumadas competiam por atenção. Bert pegou um frasco de embalagem chamativa e entregou para Gerard.
— Que tal esse? Tem cheiro de frutas tropicais.
Gerard fez uma careta, colocando o frasco de volta na prateleira.
— Acho que não faz o meu estilo.
— Que pena, eu ia adorar sentir você cheirando a coco e manga. — Bert riu antes de pegar um sabonete simples, de aroma fresco. — Esse serve?
Gerard assentiu e eles continuaram o percurso, coletando o restante dos itens na lista.
Quando chegaram à seção de desodorantes, Bert pegou um aerossol brilhante e ergueu na altura do rosto de Gerard.
— Olha só, proteção de 48 horas. Você precisa de umas 72, mas acho que serve.
Gerard soltou uma risada nasal, balançando a cabeça.
— Você é um idiota.
— E você fede. Vai, pega isso logo.
Eles foram para o caixa, onde Bert passou o tempo todo provocando Gerard sobre o tempo que fazia desde que ele comprara algo para si.
— Você sabia que as pessoas costumam fazer isso toda semana? Comprar sabonete, essas coisas…
— Vai se foder, Bert.
— Ah, que fofo. Você não nega.
Eles saíram da farmácia e andaram poucos metros até Bert encontrar uma loja de perfumes importados.
— Beleza, agora só falta o perfume — Bert anunciou, parando diante da prateleira cheia de frascos coloridos.
Gerard suspirou, já começando a se perguntar como deixou Bert arrastá-lo para aquela missão de compras.
— Não sei se preciso de um perfume…
— Precisa, sim. — Bert cruzou os braços, olhando para ele com um sorriso zombeteiro. — Você quer continuar cheirando a cecê e cansaço?
Gerard fez uma careta.
— Não tô tão mal assim.
— É, tá pior. — Bert deu uma risada antes de pegar um frasco de vidro âmbar. — Esse aqui parece bom. Vamos ver.
Ele borrifou o perfume no papel de teste e cheirou, fazendo uma careta quase imediatamente.
— Não… Esse é horrível. Parece perfume de velho.
Gerard balançou a cabeça, rindo de leve.
— Então não.
— É, definitivamente não. — Bert devolveu o frasco à prateleira e pegou outro, dessa vez um de vidro azul-escuro. — E esse?
Dessa vez, ele passou o papel para Gerard, que hesitou antes de cheirar. O aroma cítrico e fresco era agradável, sem ser exagerado.
— Gostei desse.
— É, combina com você. — Bert analisou o frasco, como se estudasse a embalagem com a concentração de um especialista. — Simples, mas presente.
Gerard arqueou uma sobrancelha.
— Desde quando você é um especialista em perfume?
— Desde nunca. Só tô fingindo. — Bert deu de ombros, lançando um sorriso travesso. — Mas posso fingir muito bem.
Gerard riu, balançando a cabeça.
— Esse serve, então.
— Finalmente! Achei que a gente ia ficar aqui até a loja fechar. — Bert brincou, levando o frasco até o caixa. — Você devia me agradecer.
— Agradecer? Por quê?
— Porque depois de hoje, você vai voltar a cheirar como um ser humano normal.
Gerard apenas revirou os olhos enquanto Bert pagava pelo perfume, tentando não admitir que, de fato, ele estava começando a se sentir… melhor.
Talvez um pouco mais como ele mesmo.
Eles saíram da loja carregando sacolas, caminhando lado a lado pela calçada. Pela primeira vez em muito tempo, Gerard se sentia… normal. Como se estivesse voltando a ser ele mesmo.
E ele sabia que, de certa forma, tinha Bert a agradecer por isso.
— Então… — Bert começou, lançando um olhar de soslaio para Gerard. — Agora que você está oficialmente menos desalinhado, qual é o próximo passo?
Gerard soltou um suspiro, ajustando as sacolas na mão.
— Continuar a investigação, descobrir o que aconteceu com o Frank… — Gerard suspirou, trazido para realidade novamente — E talvez arranjar um lugar só meu.
Bert sorriu de canto.
— Boa. Porque, com todo o respeito, dormir no quartinho dos fundos da igreja do seu irmão é... deprimente.
Gerard riu pelo nariz.
— Você dormiu num sofá menor que você.
— Ei! O sofá do Frank pode ser pequeno, meu amigo, mas aquilo foi o melhor cochilo da semana.
Gerard apenas balançou a cabeça, o sorriso ainda preso nos lábios. Eles caminharam em silêncio por alguns segundos, até que Bert de repente parou diante de uma vitrine iluminada por luzes amareladas.
— Vem cá.
Ele puxou o braço de Gerard sem esperar resposta, guiando-o até uma loja de acessórios e bugigangas alternativas. Havia anéis, colares, óculos e até alguns chaveiros espalhados por uma bancada.
— E isso aqui? — Bert pegou um anel prateado com um detalhe discreto de caveira. — Acho que combina com você.
Gerard olhou para o anel e depois para Bert, levantando uma sobrancelha.
— Agora você tá escolhendo minhas joias também?
Bert deu de ombros, ainda segurando o anel entre os dedos.
— Estou aqui para recuperar a sua autoestima, Gerard Way.
Ele abriu a boca para retrucar, mas parou quando percebeu o jeito com que Bert o observava—não com zombaria, mas com algo mais suave nos olhos, um brilho difícil de ignorar.
— Sério, experimenta — Bert insistiu, pegando a mão de Gerard sem cerimônia.
Bert notou os nós dos dedos de Gerard quando tentou pegar na sua mão. Os cortes estavam cicatrizando, mas a pele ao redor ainda estava vermelha e sensível.
— O que foi isso? — Bert perguntou, estreitando os olhos enquanto segurava o pulso de Gerard antes que ele pudesse puxar a mão de volta.
Gerard hesitou por um momento, mas depois deu de ombros.
— Nada.
— “Nada” não deixa sua mão assim — Bert insistiu, girando o pulso do amigo para examinar os machucados com mais atenção. — Se foi “nada”, então me diz, por que parece que você tentou socar uma pedra?
Gerard riu, mas o som saiu seco, sem humor. Ele puxou a mão de volta, flexionando os dedos devagar, como se só agora estivesse notando o quanto doía.
— Acho que foi quase isso.
Bert cruzou os braços, sem disfarçar o ceticismo.
— Não brinca comigo, cara. O que aconteceu de verdade?
Gerard desviou o olhar, focando em um ponto qualquer da loja.
— Só… raiva. Perdi o controle.
— Você é muito enigmatico.
Gerard abriu um meio sorriso, mas não disse nada. Não precisava. Bert deslizou o anel em seu dedo indicador.
O toque foi breve, mas suficiente para que Gerard percebesse a pouca distância entre os dois agora.
Bert percebeu o olhar e sorriu, um pouco mais devagar dessa vez.
— Combina. — Bert suspirou, passando uma mão livre pelos cabelos desgrenhados.
Gerard engoliu seco. O anel era um detalhe insignificante, mas o momento… O momento parecia maior do que deveria ser.
Ele não afastou a mão. Nem Bert.
Por um segundo, só ficaram ali, presos no que quer que fosse aquilo que pairava entre eles.
— Eu menti para vocês, Bert.
Bert arregalou os olhos em surpresa. Gerard abaixou o olhar.
— O quê?
— Quando a Jamia me perguntou por que eu estava querendo ajudar o Frank... Eu menti.
Bert soltou a mão de Gerard com a incredulidade no rosto crescendo.
— Por que diabos você faria isso? Você falou exatamente o que aconteceu... Eu pedi ajuda e você aceitou.
Gerard ergueu finalmente o olhar.
— Sim. Mas antes de você me pedir ajuda... eu fui até você. — Gerard hesitou — Bert, o que estou querendo dizer é que eu o vi...
— Você viu...?
— Frank.
Bert estreitou os olhos para Gerard.
— Como assim, você viu o Frank?
Gerard engoliu seco, passando a língua pelos lábios antes de responder.
— Nos meus sonhos.
Bert piscou lentamente, processando a resposta. Seu rosto oscilou entre descrença e algo próximo de inquietação.
— Sonhos? Você está me dizendo que resolveu ajudar porque... teve um sonho com Frank?
Nessa altura, Bert gargalhou. Era uma risada gostosa, que Gerard provavelmente acompanharia se ele estivesse inventando tudo aquilo.
— Não só um. — Gerard desviou o olhar por um instante, como se buscasse uma maneira melhor de explicar. — Eu o vi antes mesmo de saber quem ele era. Antes de ver a identidade dele.
A risada de Bert foi diminuindo gradualmente.
— Tá de sacanagem.
Gerard devolveu o anel para o mostruário e saiu da loja.
— Eu queria estar. — A expressão de Gerard permaneceu séria. Ele esfregou a nuca. — No começo, achei que fosse só mais um sonho ruim. Mas depois... Ele começou a aparecer de novo. E de novo. Sempre pedindo ajuda. Sempre preso em algum lugar escuro.
Bert encarou o por um longo momento, como se tentasse decidir se Gerard estava brincando ou simplesmente enlouquecendo.
A pergunta de Bert pairou no ar por um momento.
— E agora, você acredita que está... falando com ele?
Gerard sustentou o olhar, a mandíbula tensa.
— Eu sei que estou.
Bert desviou o olhar, passando a língua pelos lábios em um gesto inquieto. Seu pé batia levemente no chão, como se a conversa o estivesse deixando mais nervoso do que gostaria de admitir.
— Quer saber? — Bert soltou um riso curto e sem humor, balançando a cabeça. — Você é louco. Louco.
O som repentino de sirenes cortou o ar pesado entre eles. Os olhos se encontrando por um instante antes de ambos virarem a cabeça na direção do barulho.
Luzes vermelhas e azuis piscavam do lado de fora da galeria, refletindo-se nas vitrines de vidro e pintando o interior com flashes pulsantes. O eco das portas sendo abertas, seguido pelo peso de botas firmes contra o piso, denunciou a chegada dos policiais antes mesmo que eles fossem vistos.
Os oficiais entraram com postura rígida, mãos próximas aos coldres, olhares atentos varrendo o ambiente. Eles se moveram em sincronia, precisos, treinados.
Um dos policiais, de expressão impassível e postura rígida, ergueu o olhar diretamente para Bert.
— Robert Edward McCracken?
O nome saiu firme, mas sem hostilidade, somente o peso formal da autoridade.
Bert piscou lentamente antes de responder.
— Sim?
O policial trocou um olhar breve com seu parceiro antes de continuar.
— Precisamos que você nos acompanhe até a delegacia para prestar um depoimento.
Gerard observou Bert com atenção. Não havia algemas, nem tom de acusação. Mas mesmo assim, algo na maneira como Bert engoliu seco, nos músculos tensos de seu maxilar, fez com que Gerard percebesse: tinha algo errado.
— Depoimento? — Bert repetiu, como se estivesse processando as palavras.
— Apenas algumas perguntas — o policial garantiu, seu tom impessoal e firme. — Mas seria melhor resolver isso agora.
Gerard franziu a testa, desconfiado. Ele deu um passo à frente, os olhos fixos no policial.
— Cadê a intimação? — perguntou, com a voz grave.
O policial lhe lançou um olhar rápido e desdenhoso, antes de virar ligeiramente o corpo, impedindo que Gerard ficasse muito próximo de Bert.
— Não se mete, mendigo. — O policial disparou, as palavras saindo com uma dureza cruel, como se a simples presença de Gerard fosse um incômodo.
Gerard sentiu a raiva subir no seu rosto. O tom de desprezo no “mendigo” estava claro, mas não era apenas o insulto que o atingia. Era a maneira como o policial se referia a ele, como se sua vida e sua condição o tornassem invisível, insignificante.
Gerard passou os olhos pelos distintivos dos policiais à sua frente, gravando mentalmente os nomes. O primeiro, um homem de feições duras e olhar implacável, trazia no peito a plaqueta Sgt. Wexler. O segundo, mais jovem, ostentava o nome Ofc. Ramirez parecia tenso, os dedos inquietos ao redor do coldre, como se estivesse pronto para reagir a qualquer resistência. Ofc. Holloway, por outro lado, exalava uma calma perigosa, estudando Gerard com interesse demais para alguém que deveria apenas cumprir um mandado.
Gerard, no entanto, não estava disposto a deixar isso passar. Ele olhou fixamente para o Sgt. Wexler e, se aproximando, disse, com sua voz agora cortante:
— Só porque eu não estou em um terno e gravata não significa que você tenha o direito de me tratar assim, sargento.
O policial olhou-o com um sorriso cínico, mas não disse nada. Em vez disso, fez um gesto para que Bert seguisse.
— Vamos, McCracken. Não temos tempo para isso.
O policial segurou Bert pelos braços e começou a andar.
Gerard tirou o distintivo do bolso e aumentou o tom: — Eu não vou perguntar de novo.
O policial parou no meio do movimento, os olhos pousando no distintivo que Gerard segurava entre os dedos. O sorriso cínico desapareceu, substituído por uma expressão mais cautelosa.
— Você é surdo ou o quê? — Gerard repetiu, sua voz firme, sem espaço para argumentação.
Bert olhou para ele, surpreso. Talvez não esperasse que Gerard ainda andasse com aquele distintivo, muito menos que tivesse coragem de usá-lo naquele momento.
Os outros policiais trocaram olhares rápidos entre si. O líder do grupo, claramente incomodado, pigarreou antes de falar.
— Você pode ser delegado, mas não tem jurisdição aqui.
Gerard não se intimidou.
— Mas ainda sei como as coisas devem ser feitas. E levar alguém sem um advogado ou uma intimação não é um procedimento correto. Então, eu sugiro que vocês tragam os papéis certos ou soltem-no agora.
O policial cerrou os dentes, como se estivesse ponderando suas opções. Ele olhou para um dos colegas ao lado, que apenas deu de ombros. Nessa altura, algumas pessoas já estavam com os celulares à mão e um burburinho indefinido começou a ecoar na galeria.
Por fim, soltou um suspiro irritado e recuou um passo.
— Certo. Vamos fazer isso do jeito certo. Mas não se preocupe, McCracken — ele lançou um olhar afiado para Bert. — A gente se vê em breve.
Sem mais discussões, ele fez sinal para que os outros recuassem. Em poucos instantes, os policiais estavam indo embora, as luzes vermelhas e azuis das viaturas piscando do lado de fora antes de sumirem na rua.
“Sargento Wexler. Oficial Ramirez. Oficial Holloway” Gerard repassou os nomes mentalmente, como se os gravasse a ferro na memória.
Bert soltou um suspiro pesado, passando a mão pelo rosto.
— Porra... fiquei de pau duro agora.
Gerard guardou o distintivo no bolso, olhando a comoção gerada ao redor e olhou para Bert, a seriedade ainda marcada no rosto se desmanchando lentamente.
— Você precisa de um advogado.
Bert riu de leve, sem humor.
— E dinheiro pra pagar um também.
Gerard apertou os lábios, pensando. Ele não gostava da sensação que aquela cena deixou para trás. Algo estava muito errado.
— Vou descobrir o que eles têm contra você antes que tentem de novo. — ele disse, determinado. — Agora vamos, vou te levar embora.
Bert passou a mão pelo cabelo, ainda um pouco tenso, mas forçou um sorriso.
— Uau, que cavalheiro. Vai até me levar pra casa?
Gerard revirou os olhos, dando um leve empurrão no ombro dele.
— Cala a boca e anda logo.
Chapter 7: O rato
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Os dois saíram da galeria em silêncio, os passos ecoando no piso brilhante, enquanto ignoravam os olhares curiosos e cochichos ao redor. Do lado de fora, a noite já começava a cair, tingindo o céu de tons azulados e alaranjados. O vento estava mais frio e Gerard enfiou as mãos nos bolsos da calça enquanto caminhavam até o carro.
Bert chutou uma pedrinha na calçada e soltou um suspiro.
— E aí, xerife... — ele brincou, mas o olhar ainda era sério. — Você acha que eles realmente têm algo contra mim?
Gerard não respondeu de imediato. Ele destravou o carro e entrou, esperando Bert fazer o mesmo antes de finalmente falar.
— Não sei. Mas eles queriam que parecesse que tinham.
Bert assentiu lentamente, olhando pela janela, enquanto Gerard ligava o carro.
— Isso não é nada bom... — Bert comentou, distraído.
— Não, não é.
Gerard concordou, os olhos fixos na rua à frente. Algo lhe dizia que aquela seria apenas a primeira de muitas visitas indesejadas.
O silêncio no carro era denso, quebrado apenas pelo som do motor e pelo farfalhar dos pneus sobre o asfalto esburacado. Bert tamborilava os dedos no próprio joelho, como se tentasse ocupar a mente com qualquer coisa que não fosse o próprio medo.
— O que acha que vai acontecer agora? — ele perguntou depois de alguns minutos, sem tirar os olhos da rua que passava depressa pela janela.
Gerard não disse nada. Por mais que se esforçasse para manter a neutralidade, o instinto policial — e o outro, aquele que vinha dos sonhos, dos calafrios e das vozes abafadas — gritava para ele tomar cuidado.
— Não sei o que vai acontecer agora, mas preciso que você fique no apartamento com Jamia e garanta que as portas estejam bem trancadas. Espero ter mais respostas quando voltar.
Quando dobraram a esquina da rua do prédio onde Frank morava, Gerard diminuiu a velocidade. O local parecia calmo demais — sem viaturas, sem movimentação, apenas a fachada escura e silenciosa iluminada por uma lâmpada fraca na entrada.
Gerard estacionou a alguns metros da entrada e desligou o motor. O som da chave girando foi engolido pelo silêncio da rua, quebrado apenas pelo tique-taque do pisca-alerta. Ele ficou ali por um segundo, as mãos ainda no volante, observando a fachada do prédio como se ela estivesse prestes a se mover.
Bert abriu a porta com cautela, mas hesitou antes de sair.
— Você vai voltar mesmo, né?
Gerard assentiu lentamente, virando o rosto para encará-lo.
— Vou. Mas se alguma coisa acontecer... qualquer coisa fora do normal, você me liga na hora. E não deixa a Jamia sozinha.
— Pode deixar. Ela ainda tá meio abalada — Bert respondeu, saindo do carro. — Eu também tô.
Gerard desceu em seguida e os dois caminharam lado a lado até a porta do edifício. O corredor estava escuro, exceto por uma luz fraca tremeluzindo no teto, lançando sombras esquisitas nas paredes. Subiram em silêncio. A cada degrau, Gerard sentia o peso da presença invisível de Frank — ou da ausência dele — se intensificar, como se algo tivesse ficado preso ali, entre as paredes, nos objetos esquecidos, nas janelas empoeiradas.
No apartamento, Jamia abriu a porta com uma expressão cansada, mas aliviada ao ver os dois.
— Finalmente... — murmurou, dando espaço para entrarem.
Gerard lançou um olhar breve ao redor. Tudo parecia exatamente igual à última vez que estivera ali — mas ele sabia que nada estava igual. Ele sabia, também, que cada vez que colocava os pés naquele lugar, se aproximava mais de uma verdade que talvez não estivesse pronto para enfrentar.
Ele se virou para Bert, a voz baixa e firme:
— Tranca tudo depois que eu sair. E fica alerta. Não importa o que digam, ninguém entra e sai.
Bert abriu um sorriso torto, e Jamia cruzou os braços, o olhar aflito.
— Olha só, você se preocupa comigo.
Gerard revirou os olhos, mas não conteve um pequeno sorriso.
Ele se despediu com um aceno breve, e antes de cruzar a porta, lançou um último olhar para o apartamento — e por um instante achou ver, no reflexo da janela, uma silhueta parada no corredor escuro, observando.
Mas quando virou o rosto de vez, não havia nada.
Só o silêncio.
O caminho até a delegacia permaneceu silencioso, a cidade de Nova Iorque estava encerrando lentamente o seu expediente ao seu redor.
Ao chegar à delegacia, a familiaridade do local o fez sentir uma mistura de nostalgia e incômodo. O som dos telefones tocando, das conversas rápidas e da movimentação intensa dos policiais preenchia o ambiente. Mas Gerard sabia o que tinha que fazer. Ele foi até a recepção e colocou seus documentos no balcão. A policial de plantão, ao vê-lo, fez uma rápida saudação.
— O que posso fazer por você, delegado Way?
Gerard hesitou por um momento, antes de responder com firmeza:
— Estou aqui para falar com o delegado Toro.
A policial o estudou por um instante, mas acenou com a cabeça e pegou o telefone.
— Um momento, por gentileza.
Enquanto esperava, Gerard observou a movimentação ao redor, sentindo o olhar dos colegas de profissão. Ele sabia que havia algo errado com a polícia de Nova Iorque, mas ainda não conseguia entender a extensão do problema.
Finalmente, a policial gesticulou para que Gerard seguisse por um corredor estreito até uma porta ao fundo. Ele bateu levemente antes de entrar.
Ray Toro estava sentado à sua mesa, a testa levemente franzida enquanto analisava uma pilha de documentos espalhados diante dele. A luz amarelada do abajur de mesa criava sombras suaves sobre seu rosto, destacando os traços firmes e a expressão de cansaço que se acumulava após horas de trabalho. Seus cachos volumosos, normalmente indomáveis, estavam presos em um coque baixo, alguns fios escapando ao redor das têmporas, emoldurando seu rosto. Quando viu Gerard, um sorriso largo surgiu no seu rosto. Um homem que Gerard conhecia bem, se aproximou para um abraço.
Ele vestia uma calça de terno bem cortada, o tecido escuro contrastando com os suspensórios que cruzavam sobre sua camisa branca levemente amarrotada. As alças de couro preto realçavam seus ombros largos, e o leve ajuste da camisa sobre seu torso indicava a tensão muscular adquirida ao longo dos anos no serviço policial. O nó da gravata já havia sido desfeito há tempos, sinal de que a formalidade inicial do dia havia cedido ao desgaste da rotina.
Seu distintivo, dourado e reluzente, pendia de um cordão no pescoço, repousando contra o tecido branco da camisa. Sobre a mesa, ao lado dos papéis, uma xícara de café meio vazia exalava um aroma amargo.
Arquivos empilhados em um canto, um quadro de investigações com fotos e anotações rabiscadas a caneta vermelha, e um cinzeiro com uma bituca de cigarro esquecida, denunciando que alguém havia estado ali antes. Até onde Gerard sabia, ele não fumava. A sala, embora pequena, carregava uma imponência natural — marcante de Ray Toro.
— Gerard! Por Deus, as notícias correm... Por onde raios você esteve? — Gerard não respondeu de imediato. Deixou o abraço se desfazer e se afastou, olhando Ray nos olhos com um leve sorriso. — E... por que você está sujo?
Ray o analisou dos pés à cabeça, como se tentasse decifrar o estado deplorável em que ele se encontrava. Gerard se esqueceu por um minuto de como estava péssimo, e soltou um riso curto, cansado, passando a mão pelos cabelos desgrenhados e oleosos.
— Longa história.
Ray cruzou os braços, arqueando uma sobrancelha.
— Eu tenho tempo.
Gerard desviou o olhar por um instante, como se procurasse as palavras certas. Ele não podia contar tudo. Não ainda. Ray o encaminhou até um sofá no canto da sala e ele sentou-se.
— Onde estão os meus modos? — Ray revirou os olhos — Gerard, você quer alguma coisa? Uma água, café...?
— Não Ray, estou bem, obrigado.
Ray puxou uma cadeira e sentou-se de frente para Gerard. Ele esperou o amigo começar a falar.
— Digamos que eu tô com um caso particular.
— Isso significa que está trabalhando enquanto deveria estar afastado?
Gerard deu de ombros. Ray suspirou, massageando as têmporas, mas um pequeno sorriso se formou em seus lábios.
— Você não muda nunca, Way.
— E você ainda se preocupa muito comigo — Gerard rebateu, divertido.
Ray bufou, mas não negou.
— Só me diz que não está se metendo com algo que vá te colocar em uma cova mais cedo do que deveria.
Ele sorriu, mas seus olhos não acompanhavam o gesto.
— Espero que não.
— E então me diz, em que posso ajudá-lo?
Gerard sustentou o olhar do amigo, e por um instante, a sombra da verdade passou por seus pensamentos. Os sonhos, as investigações, o nome de Frank ecoando como um sussurro em sua mente.
— Ray. — Gerard se inclinou para frente, apoiando os cotovelos nos próprios joelhos. Dessa vez, não havia traço de descontração em seu rosto. Seu tom era firme, quase ríspido. — Acabei de presenciar uma abordagem da sua equipe contra uma pessoa. Que porra está acontecendo aqui?
Ray franziu a testa, cruzando os braços.
— Abordagem?
— Sim. Eles queriam levá-lo para depor sem um mandado. Não deram nenhuma explicação e já estavam arrastando o cara pelo braço.
Ray ficou sério. Endireitou-se na cadeira antes de se levantar de um salto e se dirigir ao computador.
— Nome?
Gerard puxou da memória o que ouvira no shopping, sentindo a raiva ainda fervilhar sob sua pele.
— Robert... Edward McCracken.
Ray começou a digitar, os dedos ágeis sobre o teclado. A tela brilhou com as informações sendo carregadas. Ele apertou os lábios, pensativo, e passou um dedo sobre eles, como se tentasse juntar as peças antes de falar.
— Você tem certeza?
Gerard estreitou os olhos.
— Do quê?
Ray girou a tela levemente na direção dele, embora ainda não revelasse nada.
— Que esse é o nome completo dele?
Gerard manteve o olhar fixo em Ray, sem hesitar.
— Tenho.
Ray ergueu uma sobrancelha, claramente curioso. Ele passou a mão em alguns papéis pousados na mesa e se sentou na cadeira novamente.
— Merda...
— O quê? — Gerard perguntou, observando Ray com atenção.
— Não tem nenhum pedido de depoimento para Robert McCracken.
Gerard franziu a testa.
— Mas... — tentando processar a informação. — Você não solicitou nenhuma ordem para trazê-lo para cá?
Ray balançou a cabeça.
— Não.
O estômago de Gerard se revirou. Algo estava muito errado. As peças do quebra-cabeça se embaralhavam na sua mente, formando um quadro que ele ainda não conseguia enxergar completamente.
— Então, como três oficiais de Nova Iorque tentaram levá-lo? Para onde o levariam?
Ray esfregou a mão na testa, como se tentasse afastar uma dor de cabeça prestes a começar.
— Porra...
Gerard encarou Ray, o incômodo crescendo no peito.
— O que diabos tá acontecendo aqui, Ray?
— Quem são os oficiais? Você lembra?
— Sargento Wexler, oficiais Ramirez e Holloway.
Ray ficou em silêncio por um momento enquanto puxava uma caneta e anotava os nomes em um papel solto, antes de dar um baque seco sobre a mesa e se levantar.
— Vem comigo.
O tom firme fez Gerard arquear uma sobrancelha, mas ele não questionou. Ray pegou o paletó pendurado na cadeira e vestiu-o rapidamente, lançando um olhar discreto para os outros policiais no caminho para a porta.
Gerard acompanhou o amigo pelos corredores da delegacia. Os passos de Ray eram rápidos e decididos, mas ele não disse uma palavra até chegarem ao destino. Ray saiu da delegacia ao lado de Gerard, enquanto passavam pelos corredores iluminados por lâmpadas fluorescentes. O ar ali era carregado, pesado, saturado pelo cheiro de papel velho, café requentado e o suor de policiais exaustos. Ray puxou a porta de saída com um gesto brusco, deixando que a brisa noturna invadisse seus pulmões, dissipando momentaneamente a tensão que o acompanhava desde cedo.
Lá fora, as luzes da cidade piscavam sob o céu encoberto, refletindo-se nos vidros dos veículos estacionados ao longo da calçada. O ar tinha um cheiro misto de gasolina, fumaça de cigarro e garoa recente. O vento balançava alguns fios soltos do coque baixo de Ray. Ele ajeitou os suspensórios sobre os ombros largos, jogando um olhar rápido para Gerard antes de seguir em frente, mãos enfiadas nos bolsos da calça de terno.
Caminharam em silêncio pelas ruas movimentadas, desviando de pedestres apressados e das sirenes ocasionais que cortavam a noite. Gerard, com as mãos no bolso da jaqueta, mantinha o olhar atento. Ray, por outro lado, parecia distante, perdido nos próprios pensamentos, a mandíbula cerrada denunciando a ansiedade que tentava manter sob controle.
Depois de alguns minutos de caminhada, dobraram a esquina e pararam diante de um bar discreto, com uma placa de néon piscando de maneira errática. O letreiro desgastado denunciava anos de negligência, e as janelas tingidas de poluição filtravam a luz amarelada do interior. Ray abriu a porta sem hesitar, o som abafado de vozes misturando-se ao tilintar de copos e ao farfalhar de um jogo de cartas e conversas animadas acontecendo em uma mesa próxima.
Escolheram um canto mais afastado, onde o burburinho do bar não interferisse na conversa. Ray se sentou pesadamente na cadeira de madeira escura, soltando um suspiro longo enquanto deslizava os dedos pelo distintivo que ainda pendia de seu pescoço. Quando o garçom se aproximou, ele pediu um uísque sem nem olhar o cardápio, então finalmente ergueu os olhos para Gerard, a expressão carregada de algo entre desconfiança e preocupação.
— Aqui podemos falar sem ouvidos extras — murmurou, olhando ao redor antes de encarar Gerard. — Agora me diz... o que mais você sabe sobre essa história?
Gerard pensou se realmente deveria confiar no Ray.
— Foi apenas isso que aconteceu. — Gerard mentiu. — Bert quase foi levado por policiais.
Ray soltou um longo suspiro, conformado. Como se estivesse pesando cada palavra antes de falar.
— Gerard... o que eu estou prestes a te contar pode me colocar em uma situação muito ruim. — A seriedade na voz de Ray fez Gerard se manter alerta. Antes que pudesse responder, sentiu as mãos firmes do amigo em seus ombros, apertando com urgência. — Isso não pode vazar para ninguém, entendeu? Ninguém.
Os olhos de Ray estavam intensos, carregados de um aviso silencioso. Gerard sustentou o olhar e assentiu lentamente.
— Cara, eu não sei mais quem tá no controle dessa merda. — Ele balançou a cabeça, os olhos vidrados em algum ponto do bar, mas sem realmente enxergar nada. — A delegacia tá um caos. Tem gente fazendo coisas por conta própria, favores, encobrindo merda... E eu, supostamente chefe disso tudo, não sei nem em quem posso confiar.
Gerard cruzou os braços, observando o amigo.
— Você tá me dizendo que perdeu o controle?
Ray riu de novo, dessa vez encarando Gerard com uma expressão amarga.
— Perdi? Eu nunca tive, cara. Quando eu percebi, já tinham me colocado aqui como um fantoche. O problema é que, se eu fizer barulho, eu sou o próximo a cair.
Gerard franziu a testa.
— Então foi isso? Você deixou os caras fazerem o que quiserem pra se proteger?
Ray ficou em silêncio por um instante antes de encarar Gerard com dureza.
— Você acha que é tão simples assim? Acha que, se eu cair, tudo se resolve? Se eu rodar, quem entrar no meu lugar vai ser ainda pior. Pelo menos, assim, eu consigo impedir que as coisas piorem... até certo ponto.
Gerard soltou um suspiro. Ele já viu esse tipo de história antes.
— Então, você tá me dizendo que tem gente na delegacia agindo fora da lei?
Ray desviou o olhar, apertando os punhos.
— Eu tô te dizendo que tem algo muito errado aqui. Tem coisas que não podem ser ditas em voz alta. Você não entende como a cidade funciona, cara.
— Eu entendo muito bem. — Gerard retrucou, com o tom de voz levemente ofendido — Eu já vi gente honesta perder o distintivo por muito menos do que os desgraçados que a gente protege. Vi polícia vendendo informação, acobertando assassinatos... Vi gente desaparecendo... Você quer que eu simplesmente ignore?
No meio da conversa tensa, uma garçonete se aproximou com passos firmes, equilibrando uma bandeja com precisão. Ela deslizou as bebidas sobre a mesa sem pressa, sem interromper a troca de olhares carregada entre os dois homens.
— Duplo, sem gelo — disse, empurrando o copo na direção de Ray.
Gerard recebeu o seu em silêncio, o olhar fixo no líquido âmbar que tremulava sob a luz baixa. A garçonete sumiu tão rápido quanto apareceu, deixando para trás somente o som do vidro tilintando contra a madeira e o zumbido distante de conversas alheias.
— Você não tem provas. — Ray continuou depois de levar o copo à boca. — Só tem suspeitas e um palpite ruim.
— E você tem medo.
Ray soltou um longo suspiro, encarando Gerard por um momento, depois se inclinando para frente e abaixando o tom de voz.
— Você acha que não fiz nada? — Gerard manteve a expressão firme e, quando Ray tentava manter o tom de voz sob controle. — Eu tentei cortar as asas de alguns caras, transferi uns, abri investigações internas... Mas tudo some no meio do caminho. Qualquer coisa que movo, alguém já tá um passo à frente. Dossiês desaparecem, testemunhas mudam o depoimento, ordens são revertidas sem explicação. O jornalista que estava prestes a...
— Pera aí... — Uma esperança cresceu dentro de Gerard — Jornalista?
Ray parou de falar, observando a súbita mudança na expressão de Gerard.
— Sim, um jornalista. — Ele franziu a testa. — Frank Iero. Eu estava mandando coisas pra ele montar uma matéria e denunciar essa porra. Antes que pudesse divulgar, sumiu do mapa.
Gerard sentiu um arrepio percorrer sua espinha. O nome ecoou em sua mente, trazendo flashes dos sonhos, das visões, do desespero.
— Ray... — Gerard segurou os seus ombros e falou quase num sussurro — Ray, então você é o informante?
Ray ficou imóvel por um instante, como se precisasse processar o que acabara de ouvir. Seus olhos escuros buscaram os de Gerard, e então ele soltou um riso nervoso.
— Informante? — Ele passou a mão pelo rosto, exalando pesadamente. — Eu chamo de tentar impedir que essa delegacia afunde de vez.
Gerard não recuou. Seu coração batia forte.
— Mas, Ray... Se você era a fonte do Frank, então alguém pode ter descoberto.
Ray apertou a mandíbula, desviando o olhar.
— Eu sei.
O silêncio entre os dois se tornou denso. Ray finalmente ergueu os olhos de novo, sua expressão carregada de algo que Gerard não conseguia decifrar completamente — culpa, raiva, medo.
— Eu tentei manter isso discreto. Eu só queria que alguém de fora tivesse provas suficientes pra ferrar esses desgraçados. Então... — Ele hesitou. — Frank começou a se aprofundar demais. A se expor demais. Eu avisei que ele precisava ser cuidadoso, falei que teria que se mudar, mas ele achava que estava sempre um passo à frente. Mas peraí... como diabos você sabe disso, Gerard?
Ele precisava pensar rápido. Não podia dizer a verdade, não podia revelar os sonhos, as mensagens vindas de um lugar que ele mesmo ainda lutava para entender. Então, optou pelo caminho mais seguro:
— Robert McCracken — disse, mantendo o tom firme, como se não houvesse hesitação alguma em suas palavras. — O mesmo que quase foi levado pelos policiais. Ele me procurou há alguns dias. Estava desesperado, dizendo que o amigo dele desapareceu e que não poderia envolver a polícia nisso.
Ray arqueou uma sobrancelha.
— Você tá falando sério?
Gerard assentiu.
— Descobri que Frank andava investigando uns policiais. Quando Frank sumiu, Bert achou que tinha alguma coisa errada e me pediu ajuda.
Ray franziu a testa.
— E por que ele não veio direto pra mim?
— Porque eles não confiam na gente. Sabem que a polícia está envolvida de alguma forma. — Gerard respondeu sem rodeios.
Ray soltou uma risada curta, seca.
— Mas ele confia em você, então?
Gerard sustentou o olhar.
— Eles sabem que eu tô afastado.
Ray ficou em silêncio por alguns segundos. O suficiente para Gerard sentir um peso no ar.
— E onde ele tá agora?
Gerard hesitou, escolhendo bem as palavras.
— Seguro. Em um lugar que não vai ser encontrado.
Ray estudou o rosto de Gerard como se tentasse encontrar rachaduras na história. Então, suspirou.
— Você tá se metendo onde não devia, Way. Isso não vai acabar bem pra você.
Gerard deu de ombros.
— Nunca acaba.
Ray esfregou o rosto com as mãos, exalando com força.
— Você quer a verdade, Gerard? Tudo mesmo?
Gerard cruzou os braços, tenso. — Quero.
— Então aqui vai. A corrupção na polícia de Nova Iorque não é um monte de policiais desonestos agindo por conta própria. É um sistema. Autorregulado e agora, autossuficiente.
— Quem está no topo disso?
— Corey Todd Taylor. O dono da Falcon Security. Ele não é só um empresário do ramo de segurança privada. Ele criou um sistema onde a polícia e a empresa dele são praticamente uma coisa só.
Gerard aperta os olhos: — Como assim?
Ray passa a mão pelo rosto, exausto.
— No começo, ele oferecia "apoio" pra a polícia. Equipamentos, treinamento, serviços de segurança terceirizados. Mas isso foi só a entrada. Aos poucos, ele começou a infiltrar agentes dele na força policial. Pessoas que ele treinou, que deviam lealdade a ele, não ao distintivo.
— Isso não explica a corrupção.
— Explica sim. Porque depois que ele tinha esses contatos na polícia, começou a vender "proteção" para políticos, empresários e até gangues. Ele oferecia segurança contra criminosos que a própria polícia deveria prender... também garantia que certos criminosos nunca fossem incomodados.
Gerard murmura, absorvendo a informação: —Ele transformou a polícia em uma mercadoria.
— Exatamente. O esquema dele é autor regulável. A Falcon Security fornece equipamentos e pessoal pra a polícia. Em troca, os policiais fazem vista grossa para as operações dele. Se alguém ameaça expor o esquema, ele usa os próprios contatos na força pra silenciar a ameaça.
— E quem não aceita jogar o jogo...
— Acaba sumindo. Às vezes, de maneira figurada, transferido pra algum buraco no meio do nada. Outras vezes... desaparece de verdade.
— Como o Frank.
Ray baixa os olhos: — Como o Frank.
— E você? Até onde você tá nessa merda toda, Ray?
Ray riu, um som amargo, sem humor.
— O suficiente pra saber que se você continuar cavando, vai encontrar um buraco grande demais pra sair. Eu tentei manter a paz, equilibrar os pratos, garantir que ninguém fizesse nada estúpido demais. Mas o sistema não quer equilíbrio, Gerard. Ele quer crescer, se alimentar e engolir qualquer um que tente destruí-lo.
— E agora? O que acontece agora?
— Agora? Agora você tem que decidir se quer mesmo ir até o fim. Porque, se quiser, Gerard... você vai precisar estar pronto pra se queimar também.
— Isso... isso é loucura.
— E o que não é nessa porra? — Ray rebateu. — Você mesmo disse que alguém está manipulando tudo. Que as provas desaparecem. Que nada faz sentido.
— Então me diz, Ray... Se o Frank sumiu porque estava chegando perto de soltar essa bomba, quem mais sabia sobre a matéria?
Ray ficou em silêncio por um instante. O peso da pergunta de Gerard pairava entre os dois como uma tempestade prestes a desabar.
— Eu... — Ray hesitou, passando a mão pelo cabelo, claramente inquieto. — Algumas pessoas sabiam. Mas eram poucas. Fiz questão de manter isso restrito.
— Quantas? — Gerard insistiu.
Ray fechou os olhos por um segundo, como se tentasse lembrar.
— Duas. Além de mim e do Frank, só mais duas pessoas tinham acesso ao que ele estava investigando.
Gerard sentiu o coração acelerar.
— Quem?
Ray passou a língua pelos lábios, nervoso.
— O capitão responsável pelo setor de investigações internas e um dos promotores que se ofereceu para acompanhar o caso...
Ele parou. O silêncio durou um segundo a mais do que deveria.
— Nomes.
Ray encontrou finalmente o olhar de Gerard e respondeu, a voz grave e carregada de tensão:
— Capitão Anthony Green e Tenente Tucker Rule.
Gerard franziu a testa, repetindo os nomes em voz baixa, como se pudesse encaixá-los no quebra-cabeça que se formava em sua mente.
— Então, algum deles deve ter vazado a informação. Você acha que foi por isso que Frank sumiu?
Ray passou as mãos pelos cabelos, visivelmente frustrado.
— Eu não acho, Gerard. Eu sei.
— Temos que pegar o desgraçado e saber onde está o Frank.
Gerard acendeu um cigarro, a brasa iluminando seu rosto por um breve instante antes de se apagar novamente. Ele tragou fundo, soltando a fumaça devagar, os olhos fixos na calçada à sua frente.
— Você tem certeza disso? — Ray perguntou, o tom de voz baixo e firme. Ele cruzou os braços, o rosto sombrio enquanto olhava para os próprios pés.
— Não temos outra escolha. — Gerard respondeu, jogando a bituca no chão e esmagando-a com a ponta do sapato. — Alguém está manipulando tudo por dentro. Se a gente não pegar o rato agora, nós vamos ser os próximos.
Ray permaneceu em silêncio por um momento, o maxilar travado. E então continuou:
— Tive bastante tempo para pensar em algumas coisas e posso sugerir uma: vamos plantar uma informação de que achamos o dossiê completo do Frank. Digo que tá num cofre alugado no banco Thomas Lowell. Se alguém aparecer lá, pegamos o desgraçado. — Ray explicou, o tom de voz calmo, mas os olhos faiscando com determinação.
Gerard ergueu finalmente o olhar, encontrando os olhos de Ray. Havia cansaço ali.
— Se alguém aparecer... ou se aparecermos mortos antes disso. — Ray murmurou, apertando os braços contra o corpo como se quisesse se proteger do frio. Ou de algo pior.
— É um risco. Mas é nossa única chance. — Gerard respondeu, firme.
Ray balançou a cabeça devagar, a expressão sombria. O silêncio pairou entre eles, pesado como chumbo.
— Então é isso. Armadilha para rato. Quem diria que chegaríamos a esse ponto? — Ray soltou um riso amargo, sem humor, olhando para o céu escuro acima deles.
Gerard concordou, enfiando as mãos nos bolsos da jaqueta. — Quando?
— Quando estiver tudo armado, eu te ligo. Fique atento.
Eles trocaram um último olhar antes de terminar o último gole da bebida. Se levantaram e saíram em direções opostas.
Chapter 8: O Hacker
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Gerard subiu a escadaria da casa paroquial carregando as muitas sacolas de compras. A noite já tinha chegado, e o vento frio cortava sua pele, fazendo-o se encolher um pouco dentro da camisa social suja. Bert havia insistido em ajudá-lo com as compras, e embora a companhia fosse duvidosa, ele não podia negar que precisava de um pouco de interação social.
Empurrou a porta do quarto, largando as compras sobre a cama com um suspiro. O ambiente ainda carregava um cheiro amadeirado misturado ao perfume fraco de incenso que Mikey costumava queimar nas missas. Antes de qualquer coisa, ele precisava se sentir humano de novo.
No banheiro estreito, Gerard ligou o chuveiro e esperou a água aquecer antes de se despir , sentindo os músculos rígidos protestarem a cada movimento. A primeira sensação da água quente escorrendo por sua pele foi quase um choque, mas logo se tornou um alívio. Ele fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás, deixando que o calor dissolvesse um pouco do cansaço acumulado. Ficou ali por longos minutos, esfregando a pele com vigor.
Quando finalmente saiu do banho, enrolou a toalha na cintura e se encarou no espelho embaçado. O rosto cansado e a barba escurecendo o rosto o faziam parecer mais desgastado do que realmente sentia. Pegou a espuma de barbear e alisou suavemente o rosto, em seguida pegou a lâmina e começou a deslizar o metal afiado contra a pele, removendo a barba com paciência. Cada linha do rosto parecia mais nítida conforme ele avançava, e quando terminou, passou a mão pelo queixo liso, estranhando a sensação.
Gerard se pegou encarando o seu reflexo no espelho, a mente emaranhada em pensamentos que ele preferia ignorar. A lembrança de Bert em sua memória voltava com teimosia, reavivando sensações que ele nunca teve coragem de nomear. Eles ficaram próximos — próximos demais, talvez. As risadas bêbadas, os toques casuais que duravam um segundo a mais do que o necessário, o jeito como Bert o olhava como se soubesse algo que ele não sabia. Gerard sempre afastava esses pensamentos com a justificativa de que era só Bert sendo Bert. Só um jogo, só uma brincadeira, só álcool misturado com carência. Mas agora, com a cabeça sóbria e o peito apertado, ele se perguntava se realmente era só isso.
Era difícil entender Bert.
E então, havia Frank. Um homem que ele nunca viu pessoalmente, mas que o assombrava desde que pisou em Nova Iorque. Como colocar em palavras algo que ele mesmo não compreendia? Ele se perguntava se o interesse fora do normal por Frank era apenas parte da investigação ou se havia algo mais profundo, algo que ele não estava pronto para encarar. E talvez nunca estivesse.
Havia algo mais, algo visceral. Os sonhos o deixavam transtornado. Parecia que, de alguma forma, havia uma conexão entre os dois. Gerard sentia um aperto estranho no peito quando acordava, uma saudade irracional de alguém que ele sequer conhecia. A maneira como a voz de Frank pedia socorro, o jeito como seus olhos — fragmentos de sonho que ele conseguia lembrar — pareciam procurar por ele.
Era obsessão? Culpa? Ou algo que ele não queria admitir? Gerard suspirou enquanto o pensamento surgiu em sua cabeça. Mas logo tentou afastá-lo.
De volta ao quarto, jogou todas as roupas da sacola sobre a cama. Usou o desodorante 42h que Bert escolheu e borrifou o perfume contra sua pele. Passou a loção pós-barba com as mãos e sentiu o rosto arder levemente. Escolheu uma camisa social escura e uma calça jeans simples, peças confortáveis e mais importante que isso: roupas limpas. Vestiu-se devagar, sentindo o tecido engomado contra a pele recém-banhada. Não era muito, mas pelo menos agora ele se sentia um pouco mais como alguém inteiro — ou pelo menos como alguém tentando voltar a ser. Graças a Bert.
Alguns minutos mais tarde, Gerard atravessou as ruas de Nova Iorque, sentindo o peso das caixas de pizza equilibradas no antebraço. O cheiro quente de queijo derretido e massa recém-saída do forno subia até seu nariz, misturando-se ao frio cortante da noite. Ele parou na esquina antes do prédio de Frank, observando as luzes fracas das janelas e respirando fundo antes de seguir em frente.
O trajeto até o apartamento era familiar agora. O prédio tinha aquele ar decadente, com paredes desgastadas e corredores mal iluminados. Gerard deu duas batidas firmes na porta e recuou um passo, aguardando. Do outro lado, ouviu trincos se movendo antes de a porta se abrir lentamente, revelando o rosto de Jamia. Seus olhos se arregalaram ao ver quem estava ali, e seu queixo caiu ligeiramente em surpresa.
Diante dela, estava um homem (quase) irreconhecível. Gerard parecia uma versão aprimorada de si: o rosto barbeado revelava traços que há muito tempo estavam escondidos, a pele limpa contrastava com o brilho leve de um pós-barba perfumado. Os cabelos, agora penteados para trás, davam-lhe um ar organizado, quase sofisticado. As roupas eram novas, simples, mas bem escolhidas, ajustando-se perfeitamente ao seu corpo.
Nas mãos, ele equilibrava três caixas de pizza, o aroma quente e familiar escapando pelas frestas. Ele lançou um sorriso meio tímido, quase desajeitado, os ombros ligeiramente encolhidos como se pedisse permissão para entrar.
— Alguém está com fome? — perguntou, com a voz suave.
Bert levantou os olhos preguiçosamente do celular quando ouviu a voz familiar na porta, mas o que viu fez sua expressão mudar num piscar de olhos. Ele piscou uma, duas vezes e então soltou uma risada incrédula, quase engasgando com o ar.
— Caralho, quem é você e o que fez com Gerard? — Bert cruzou os braços, o olhar dançando de cima a baixo enquanto um sorriso maroto se formava no canto de sua boca. — Um banho, uma lâmina de barbear e umas roupas novas realmente fazem milagres.
Gerard revirou os olhos, mas não conseguiu conter o sorriso que escapou. Havia algo reconfortante na provocação de Bert, um lembrete de que ainda havia normalidade, mesmo em meio ao caos.
— Achei que era hora de dar um jeito na bagunça. — Ele ergueu as caixas de pizza como se fossem troféus. — E alimentar esses dois ingratos.
Bert soltou uma gargalhada tão alta que fez Jamia levar um susto. Ele se levantou, sacudindo a cabeça em descrença e se aproximou de Gerard, tirando as caixas de pizza das mãos dele e o admirando de cima a baixo, sem menor pudor.
— Você aparece igual a um modelo da Armani... E ainda traz comida. Acho que é o meu dia de sorte.
— Bert, deixa o Gerard em paz. — Jamia tentou soar severa, mas o riso escapou antes que ela pudesse se controlar.
— Tá tudo bem, Jamia. Já me acostumei com o Bert. — Gerard deu de ombros, tentando parecer indiferente, mas o brilho em seus olhos o traiu.
— É, Jamia. Ele já se acostumou com o Bert. — Bert imitou a voz de Gerard com uma expressão exageradamente séria antes de cair na gargalhada de novo.
Jamia balançou a cabeça, um sorriso suave iluminando seu rosto. Mas a leveza durou pouco. Seus ombros caíram levemente, o olhar desviando para o chão enquanto ela perguntava, a voz carregada de ansiedade.
— Gerard, o Bert me falou sobre o policial que queria levá-lo para depor. Conseguiu descobrir alguma coisa?
O riso morreu na sala. Gerard sentiu o peso da pergunta apertar seu peito. O calor das risadas foi substituído pelo frio cortante da realidade. Ele viu a esperança misturada ao medo nos olhos de Jamia e o rosto de Bert endurecer, esperando pela resposta.
Ele queria manter aquela trégua, aquele instante de normalidade, por mais alguns minutos. Mas a verdade que carregava era sombria demais, brutal demais. E ele sabia que, uma vez dita, não haveria volta. Por mais que Gerard soubesse que eles precisariam enfrentar a verdade, ele sentia que, naquele momento, ninguém não estava pronto para a brutalidade da informação que ele carregava. Jamia já estava abalada pela incerteza e pela angústia de não saber o que aconteceu com Frank. Revelar agora que o esquema de corrupção na polícia de Nova Iorque silenciou o jornalista poderia ser um golpe fatal no equilíbrio emocional de todos.
— Não... não consegui nada. — Gerard mentiu, sustentando o olhar para ver a reação dos dois. — Vamos comer, antes que esfrie.
As caixas de pizza estavam espalhadas pela mesinha de centro, abertas e quase vazias, enquanto latas de refrigerante se amontoavam ao lado delas. O ar estava impregnado com o cheiro de queijo derretido e molho de tomate, misturado com risadas soltas que ecoavam pelo apartamento.
— E aí ele escorregou no meio da pista e caiu de bunda na frente de todo mundo! — Bert mal conseguia terminar a frase, as lágrimas se acumulando no canto dos olhos enquanto ria descontroladamente. — Eu juro... e aí, eu não segurei. Comecei a rir no microfone.
Gerard tentou segurar o riso, mas a imagem mental foi demais para ele. Ele jogou a cabeça pra trás, gargalhando tão alto que sentiu as bochechas doerem.
— Você não fez isso! — Jamia olhou incrédula para Bert, mas não resistiu e começou a rir também. — Como você ainda não foi demitido?
— Carisma, querida. — Bert deu uma piscadela, pegando a última fatia de pizza. — E chantagem emocional.
Gerard balançou a cabeça, ainda rindo, e se recostou no sofá. Havia um calor confortável na sala, uma trégua momentânea do caos que os cercava. Ele observou Jamia limpando as lágrimas dos olhos enquanto ria, e Bert tentando recuperar o fôlego, gesticulando exageradamente ao recontar o momento.
Era um alívio. Um pedaço de normalidade no meio do turbilhão. Gerard quase podia esquecer do cheiro de ferrugem que o assombrava, das sombras que pairavam sobre o caso de Frank. Por um momento, só existiam risadas, pizza e amigos.
— Certo, essa foi boa... — Gerard balançou a cabeça, tentando controlar o riso. — Mas você ainda não me respondeu como você conseguiu a vaga do outro cantor...
Bert ergueu a mão dramaticamente, como se estivesse num palco.
— Ah, querido, essa é uma história pra outra pizza... — Ele piscou, se recostando no sofá. — Ou mais três.
As caixas de pizza vazias estavam empilhadas sobre a mesa de centro, o cheiro de queijo derretido e orégano ainda pairando no ar. Os três estavam espalhados pela sala depois de comer, como soldados exaustos após uma batalha. Bert estava largado no sofá, uma perna apoiada no braço do móvel, enquanto os olhos vagavam pelo teto, perdidos em seus pensamentos. Jamia estava encolhida na poltrona, abraçando os joelhos contra o peito, o olhar fixo na janela, onde as luzes da cidade piscavam indiferentes.
O disfarce de normalidade desmoronou assim que o último pedaço de pizza foi devorado. A situação voltava a assombrá-los. O silêncio era denso, carregado de preocupação e cansaço. O riso e as provocações de Bert haviam sumido, substituídos por uma expressão sombria. Jamia mordia o lábio inferior.
— É sempre assim. — Ela finalmente sussurrou, a voz frágil, quase se quebrando. — A gente tenta seguir em frente, tenta ter um momento normal... Mas aí volta tudo de novo.
Bert fechou os olhos, respirando fundo como se tentasse reunir forças que não tinha.
— É como um pesadelo que não acaba. — Ele murmurou, a voz rouca.
Gerard ergueu o olhar, observando seus rostos cansados, marcados pela dor e pela incerteza. Ele queria dizer algo que trouxesse conforto, prometer que tudo ficaria bem... Mas não conseguia mentir. Não quando ele mesmo não tinha certeza de nada.
— Gerard, minha mãe me ligou hoje. — Jamia apertou os olhos, como se lembrasse de uma informação importante — Passo os dias aqui no apartamento do Frank, e então ela me ligou para dizer que alguns policiais apareceram por lá, me procurando...
O sangue de Gerard gelou.
— O que eles disseram? — As palavras escaparam num sussurro incrédulo, mas seus olhos já estavam em alerta máximo.
Jamia apertou as mãos sobre o colo, os dedos tremendo levemente. — Disseram querer conversar... Perguntaram se ela sabia onde eu estava... Mas, como ela não sabia o endereço do Frank, ela pediu para voltarem em outro momento que eu os atenderia.
Eles estavam na mira. Estavam tentando encurralar todos que cercavam o Frank.
Bert se inclinou para frente, os cotovelos apoiados nos joelhos, o rosto pálido. — Eles tão cercando a gente...
Gerard passou a mão pelo rosto, tentando pensar rápido.
— Ninguém pode saber que estamos trabalhando juntos. — Sua voz saiu baixa, mas firme.
— Pensei em chamar um amigo meu... — Jamia quebrou o silêncio, sua voz cautelosa, quase hesitante. — Um hacker... Ele pode acessar o computador do Frank e conseguir mais informações pra a gente.
Gerard endireitou a postura, seus olhos fixos nela enquanto processava a ideia. Era arriscado, mas fazia sentido. Mantê-los ocupados enquanto o plano do Ray acontece seria uma boa estratégia. As respostas estavam lá, escondidas atrás de senhas e códigos que só alguém muito bom poderia quebrar. E Gerard duvidou se isso seria um processo rápido.
— Você confia nele? — A pergunta de Gerard foi direta, o tom firme, mas sem acusação.
Jamia assentiu, sem hesitar. — Com a minha vida. Ele era amigo do Frank também. Se souber que pode ajudar... Ele vai topar.
Bert soltou um assobio baixo, cruzando os braços. — Então, temos um fantasma da internet na equipe agora? Isso tá ficando cada vez mais interessante.
Gerard lançou um olhar sério para Bert, mas não conteve o pequeno sorriso no canto da boca. Por um momento, quase se esqueceu do peso daquela investigação. Quase.
— Então chame ele. — Gerard finalmente decidiu, sua voz baixa e determinada. — Mas faça isso com cuidado. Use um telefone descartável ou pessoalmente, sem rastros. Não podemos nos dar ao luxo de mais um desaparecimento.
Jamia assentiu, o rosto determinado. Ela sabia no que estava se metendo, mas também sabia que não podia recuar. Não agora.
— Vou ligar pra ele. Amanhã, assim que conseguir o telefone. — Ela afirmou, sua voz firme como uma promessa.
O cansaço pesava sobre eles, os corpos afundando nos móveis como se o chão estivesse prestes a ceder. Gerard respirou fundo, sentindo a responsabilidade apertar seu peito. Ele não podia protegê-los de tudo, mas faria o que estivesse ao seu alcance.
— Eu queria pedir uma coisa... para os dois. — Sua voz saiu baixa, mas firme, quebrando o silêncio pesado.
Bert e Jamia ergueram os olhares ao mesmo tempo, suas expressões cansadas e curiosas voltadas para o delegado.
— Não andem mais sozinhos. Se precisarem de algo, eu trago. Se precisarem ir a algum lugar, eu levo. Combinado?
O silêncio voltou a reinar por um momento, enquanto as palavras pairavam no ar, cheias de preocupação e cuidado genuíno. Jamia apertou os lábios, o medo visível em seus olhos enquanto assimilava o aviso. Bert deixou escapar um suspiro, passando a mão pelo rosto como se quisesse afastar o cansaço, mas acenou lentamente com a cabeça.
— Combinado. — Jamia respondeu, sua voz vacilando, mas determinada.
— Certo... — Bert murmurou, o tom despreocupado, mascarando a tensão que se escondia em seu olhar. — Mas só se você prometer que vai aparecer todo limpinho assim de novo.
Gerard soltou uma risada curta, sincera, o som ecoando na sala silenciosa e aliviando um pouco o peso do ambiente.
— Eu prometo. — Ele respondeu, permitindo-se relaxar por um breve instante antes de a preocupação voltar a se instalar em seu peito.
Eles estavam juntos naquilo. E, por mais que parecesse estar se fechando o cerco, Gerard estava determinado a mantê-los a salvo. A qualquer custo.
Jamia passou a mão pelo rosto, os ombros caídos do cansaço e da preocupação. Seu olhar vagou pelo apartamento, pousando em detalhes que ainda carregavam a presença de Frank — o seu casaco de veludo jogado no encosto da cadeira, uma caneca esquecida na pia.
— Eu só... — Ela hesitou, a voz embargando. — Eu só queria encontrar alguma coisa que me dissesse onde ele está.
Gerard sentiu um aperto na garganta. Ele olhou para Bert, que desviou o olhar, mexendo nervosamente nas mangas da jaqueta. A sensação de impotência os envolvia como uma sombra persistente.
— Por que você não descansa um pouco? — A voz de Gerard saiu baixa, quase gentil. — Amanhã pela manhã, continuamos.
Jamia balançou a cabeça, tentando recusar, mas seu corpo traía sua determinação. As olheiras fundas entregavam noites de insônia, e sua postura curvada denunciava o peso de dias sem descanso.
— Não vou conseguir dormir... sozinha. — Ela murmurou, olhando para o quarto de Frank, a porta entreaberta como um lembrete cruel de sua ausência.
Gerard se aproximou, seu semblante suave. — A gente fica aqui com você. Ninguém vai a lugar nenhum até amanhã.
Ela mordeu o lábio, segurando a emoção que ameaçava transbordar. Finalmente, assentiu, levantando-se da poltrona como se sua energia tivesse sido completamente drenada.
Ela andou até o quarto e deu uma última olhada nos dois. Ele sabia que o descanso seria breve, e que o pesadelo continuaria quando ela acordasse.
Mas, por ora, ela estava segura. E isso era tudo o que ele podia oferecer.
A casa estava mergulhada em um silêncio pesado, quebrado somente pela respiração suave de Jamia, adormecida no quarto. As luzes da cidade piscavam através da janela, refletindo sombras na parede. Gerard permaneceu encostado na parede, os braços cruzados até decidir passar um cafe para a noite que viria e ir para cozinha. Seus pensamentos estavam distantes, perdidos na teia emaranhada daquele mistério.
— Ei, xerife — chamou, olhando para Gerard. — Me desculpa por ter te chamado de louco. Eu acredito em você.
Gerard se virou, encontrando o olhar atento de Bert. Uma sombra de surpresa passou por seu semblante antes de se dissolver num cansaço amargo. O rapaz estava recostado no batente da porta da cozinha, os braços cruzados de maneira relaxada, mas os olhos refletindo uma preocupação genuína.
— Não precisa se desculpar. — respondeu, com um meio sorriso cansado. — Eu também me achei louco por um tempo.
Gerard pegou o pó de café no armário e caminhou até a pia, onde a cafeteira estava.
— Mas ouvir isso agora... — Gerard continuou, — ajuda. Mais do que você imagina.
Um silêncio breve se instalou de novo, agora menos sufocante. Do quarto, Jamia murmurou algo no sono.
— Acha mesmo que vamos encontrá-lo? — a voz de Bert era baixa, quase um sussurro, como se o próprio ato de perguntar fosse perigoso.
— Não acho. Eu sei que vamos encontrar o Frank.
O nome pairou no ar como uma promessa.
Bert, que até então estava encostado no batente da porta, afastado e quieto, deu um passo à frente. Havia algo na sua expressão que misturava hesitação e urgência, como se estivesse segurando aquela pergunta há muito tempo. Ele observou Gerard por um momento, analisando a tensão nos ombros, o peso nos olhos.
— O que realmente aconteceu na delegacia? — perguntou, com a voz baixa e contida.
Gerard piscou devagar. Seus ombros enrijeceram e, por um instante, ele ficou imóvel, os olhos fixos em um ponto qualquer do chão. A respiração, antes ritmada, ficou pesada.
— Nada que você já não saiba. — Gerard respondeu, tentando soar casual, mas sua voz carregava uma mentira mal disfarçada.
Bert arqueou uma sobrancelha, dando mais um passo para frente, a curiosidade o empurrando na direção de Gerard. — É mesmo? Porque, sinceramente, eu acho que você tá segurando alguma coisa.
O silêncio que se seguiu foi denso. Gerard desviou o olhar, encarando Bert, tentando encontrar as palavras certas.
— Eu só... Não quero que vocês se machuquem. — Sua voz saiu rouca, carregada de culpa.
Bert se aproximou mais. Ele parou ao lado de Gerard, as costas apoiadas na pia, ombro a ombro. Por um instante, ficaram ali, em silêncio.
— Você não tem que carregar isso sozinho. — Bert murmurou, sua voz mais suave, quase reconfortante. — Se meteu nessa confusão, agora é tarde demais pra me deixar de fora.
Gerard soltou um riso fraco, balançando a cabeça. — Você é louco.
— É, provavelmente. — Bert mexeu os ombros, um sorriso brincando no canto dos lábios. — Mas você também não é lá muito certo, delegado.
Os olhos de Gerard se voltaram para Bert, capturando a luz suave do abajur na sala. Havia um brilho travesso nos olhos de Bert, uma faísca de desafio que fez Gerard esquecer, por um segundo, de todo o caos ao redor.
— Você não tem medo de nada, né? — Gerard perguntou, um sorriso discreto aparecendo em seus lábios.
— Pelo menos, não de você.
Por um segundo que pareceu uma eternidade, o mundo ao redor desapareceu. Gerard sentiu seu coração acelerar, o calor subindo pelo pescoço até o rosto quando viu a sombra de Bert se aproximar.
Ele desviou os olhos por um instante, tentando recuperar o fôlego, mas Bert não lhe deu essa chance. O outro deslizou o corpo como um gato silencioso e parou na frente do policial.
— Tá fugindo de mim, Gerard? — A voz dele soou baixa, rouca, como se soubesse exatamente o efeito que causava.
Gerard engoliu seco. Sentia a borda da pia pressionando suas costas, sem mais espaço para recuar.
— Não tô fugindo — sussurrou, mais para si do que para Bert. — Eu só... não é...
Bert parou à frente dele, tão perto que Gerard podia sentir o calor que emanava do corpo do outro. O cheiro de cigarro impregnado na jaqueta de couro, misturado com algo doce e familiar.
— Nada disso aqui é uma boa ideia — Bert murmurou, os olhos escuros cravados nos dele. — Mas estamos aqui, certo?
O silêncio de Gerard era denso, quase palpável, e fazia Bert se perguntar se deveria continuar. Ele prendeu a respiração por um instante, tentando decifrar aquele olhar parado, indecifrável. O ar quente que escapava pelas narinas de ambos já se misturava no pouco espaço entre seus rostos, aquecendo a pele.
Ainda assim, nenhum dos dois se afastava.
Bert, inquieto com a dúvida, se inclinou só um pouco mais, testando os limites. Seus lábios pairaram a um suspiro de distância dos de Gerard, como se desenhassem a silhueta daquele beijo que ainda não acontecia. Era uma provocação sutil — não por malícia, mas por cautela. Queria ter certeza de que não estava sozinho naquela vontade.
O canto de sua boca se curvou em um sorriso leve, quase involuntário, quando sentiu o calor do rosto de Gerard contra o seu. A tensão era doce, elétrica. Entre um meio riso e uma respiração contida, Bert quase podia jurar que aquele momento suspenso era mais íntimo do que qualquer outro toque.
E então, sem aviso, Gerard o beijou.
Foi um beijo urgente. As mãos de Gerard seguraram o rosto de Bert com firmeza. Sentiu o mundo girar quando Bert respondeu ao beijo, uma explosão de sensações se espalhando pelo corpo como um choque.
As mãos dele agarraram a gola da camisa de Gerard, puxando-o mais para perto, sentindo seu corpo colidir contra o dele.
Por um instante, tudo se calou — as incertezas, a dor, as preocupações. Só existia aquele toque, aquele calor vindo do outro, uma urgência crua, desesperada. Os beijos ficaram mais intensos, mais famintos. As bocas se encontravam e se separavam com respirações entrecortadas, como se um precisasse do outro para continuar respirando. A língua de Bert deslizou pela de Gerard, explorando, provocando, enquanto suas mãos se moviam pelas costas dele, subindo sob a camisa, tocando a pele quente e arrepiada.
Gerard gemeu contra os lábios dele, sentindo as mãos do outro passar pela espinha. Suas mãos subiram, passando pelos ombros de Bert, arranhando levemente a nuca.
Gerard deslizou as mãos até a cintura de Bert, puxando-o pela calça, colando-os ainda mais. Os dois sentiam que cada toque era proibido, tentando manter o silêncio que era possível para não acordar Jamia, enquanto tentavam controlar a respiração. O barulho da geladeira era o único som além dos corpos se chocando em movimentos rápidos, desesperados. As mãos de Gerard exploravam as costas de Bert, sentindo cada músculo se mover, cada suspiro quente contra a sua pele.
Num impulso, inverteu as posições com um empurrão firme, fazendo Bert recuar até colidir com a bancada atrás de si. Os olhos de Gerard ardiam, intensos e escuros de desejo.
Num movimento súbito, Gerard agarrou os cabelos de Bert com força, os dedos enroscando-se entre os fios. Por um instante que pareceu uma eternidade, Bert congelou — o coração disparado, sem saber se aquele gesto terminaria num beijo ou num soco. O olhar de Gerard estava carregado demais, desejo e algo mais que Bert ainda não conseguia decifrar.
Mas não houve tempo para entender. Gerard o puxou de uma vez, com um ímpeto bruto, e seus lábios colidiram em um beijo urgente, faminto — mais duro, mais profundo, como se ele quisesse arrancar o fôlego de Bert.
As mãos de Gerard desceram pelas laterais do corpo de Bert com firmeza, como se mapeassem cada curva, cada espaço entre eles, sem hesitação. Eles se beijaram de novo — uma, duas, três vezes — como se aquele momento fosse tudo o que restava. Havia uma urgência crua, intensa, na forma como se tocavam, como se saboreavam. Não existiam promessas. Não havia passado, nem futuro. Só o agora. Apenas dois homens, como Deus os fez.
Quando Gerard finalmente se afastou, ofegante, seus olhos estavam marejados, a respiração descompassada, as mãos trêmulas. Ficou ali por um segundo, encarando Bert como se tentasse se desculpar sem dizer nada, como se o beijo tivesse aberto uma porta que ele não sabia mais como fechar.
Bert ainda estava curvado contra a pia, com as mãos segurando na borda para não ceder à vertigem da separação repentina. O corpo ainda vibrava com o toque de Gerard.
— Isso não devia ter acontecido — Gerard murmurou, a voz baixa, quase engasgada, como se dissesse aquilo mais para si do que para Bert.
Pela primeira vez, Bert não tinha uma resposta pronta na ponta da língua. Ainda assim, um traço de sorriso permanecia em seus lábios, suave, quase imperceptível — como se estivesse tentando guardar aquele momento só para si.
Ficaram ali, na cozinha de Frank, evitando se olharem diretamente. O som de Jamia se remexendo na cama, seguida por um suspiro longo, rompeu o transe que se encontravam. A realidade caiu sobre eles como um balde de água fria.
Gerard afastou uma mecha de cabelo do rosto, pigarreou e tentou recuperar a postura, como se pudesse esconder o que aconteceu atrás de uma frieza.
— Eu... eu vou verificar as trancas da porta. — disse, num tom baixo, quase automático.
— Claro... — Bert respondeu, sem desviar os olhos. O sorriso ainda brincava em sua boca, mas agora seus olhos seguiam Gerard até ele desaparecer pelo corredor, como se quisessem memorizar cada passo.
Quando se viu sozinho, Bert finalmente soltou o ar dos pulmões num suspiro longo, como se estivesse segurando a respiração desde o início. Agachou-se diante da pia e recostou a cabeça em uma das gavetas. Um sorriso pequeno e satisfeito ainda permanecia em seu rosto.
Chapter 9: O apanhador
Summary:
Gente, eu fiz uma confusão!
Era para ter postado 3 capítulos e eu só postei 2. Ficou faltando o 9, então vocês não devem ter entendido muito bem o desfecho. Releiam a partir desse e tudo fará sentido, eu prometo.
Acho que estou maluca.
Chapter Text
A noite avançava silenciosa pelas janelas do apartamento de Frank, trazendo um frio leve que parecia se infiltrar pelas frestas e se impregnar nas paredes. As luzes da cidade piscavam lá fora, indiferentes ao que se passava lá dentro.
Jamia dormia no quarto, rendida depois de dias sem descanso. Bert adormecera no sofá da sala, os cabelos bagunçados e o rosto suavizado pela calmaria do sono — um contraste brutal com o caos que ele carregava há algumas horas antes, quando acordado.
Eles se falaram muito pouco depois do que aconteceu. Bert parecia estar sempre com um sorriso no canto da boca, e quando deitou no sofá, perguntou se Gerard queria dividir aquele espaço minúsculo com ele.
Ele não soube dizer se Bert estava falando sério ou não, mas achou melhor rejeitar a proposta, o que quer que aquilo tenha significado. Sentado à pequena mesa da cozinha, com papéis espalhados ao redor, ele mantinha os olhos fixos nas anotações de Frank, rabiscos que pareciam sem sentido à primeira vista, mas escondiam algo. Ele relia tudo, uma, duas, dez vezes. Procurava padrões, nomes, conexões. A luz fraca da luminária deixava sombras em seu rosto cansado, e a xícara de café frio ao lado indicava quantas horas ele já estava ali.
Mas não era só a investigação que o mantinha acordado. O cheiro e o gosto de Bert ainda estavam em sua narina e boca, insistente. O beijo. O toque de Bert, como ele o provocou — e acabou por ceder. Se sentia culpado. Era como se, ao tocar Bert, tivesse profanado tudo aquilo que estavam vivendo. Como se o apartamento ainda estivesse impregnado da presença de Frank, e ele tivesse cometido um erro ao se deixar levar no meio disso tudo.
E ainda tinha um pensamento que perpassava na sua mente: O que ele era quando estava despido de todas as vaidades dos títulos que carregava? O marido, o delegado, o cidadão modelo... ele já não era mais nada disso. Ele não queria mais ser nada disso. Ele tentava se agarrar aos fragmentos de si, mas sabia que era uma jornada de autoconhecimento que deveria fazer depois de achar Frank.
"Preciso de foco..." ele pensava, repetidas vezes, mas seus olhos o traiam quando olhava na direção do sofá, parcialmente iluminado com a luz da cozinha. Bert dormia como se nada importante tivesse acontecido. E talvez não tivesse acontecido mesmo. Por que Gerard não sabe muito sobre a vida pessoal do Bert, na cabeça dele, ele parece o tipo de cara que beija mil pessoas e não se apega a ninguém.
Mas com Gerard era diferente. Ele ainda era casado, por mais que não estivesse mais com Lindsey. Sabe-se lá quantos anos ele não beijava outra pessoa além da Lindsey. E esse pensamento o fez sorrir de nervoso. Se sentia como um adolescente de novo. Dando um primeiro beijo.
E de fato era o primeiro beijo. Pelo menos, o primeiro com um homem.
A constatação veio num estalo. Ele se levantou, andou até o banheiro, esfregando as mãos no rosto.
Ele foi até o banheiro sem acender a luz, apoiando-se na pia com as duas mãos. Encarou o próprio reflexo no espelho por alguns segundos, mesmo sem enxergar direito. Precisava se ver. Precisava lembrar quem era.
O gosto, o calor, o susto — e, pior ainda, a ausência de repulsa. Ele deveria ter afastado o Bert? Deveria sentir repulsa de si mesmo por beijar um homem?
"Não é hora pra isso, porra..."
As mãos tremiam levemente. Ele se encostou na parede mais próxima e fechou os olhos, tentando se ancorar em qualquer coisa. Um pensamento que não o engolisse inteiro.
Era só uma crise. Leve, mas real. Ele contou até dez em silêncio. Uma, duas vezes. Aos poucos, o coração foi desacelerando.
Foi nesse instante que a palavra veio, com força: bissexual.
Não que nunca tivesse pensado nisso. Mas sempre empurrava pra debaixo do tapete da mente, junto com todos os outros pensamentos desconfortáveis que sua rotina meticulosamente construída ajudava a esconder. Até agora. Até Bert.
Mas ele não estava apaixonado. Aquilo ali não era amor. Era só... Uma parte dele que nunca teve espaço pra respirar. E agora, finalmente, encontrava uma brecha.
Abriu a torneira e jogou água fria no rosto. Sentiu um alívio. Respirou fundo mais uma vez. O coração ainda acelerado, mas sob controle.
"Você está bem", murmurou, tentando convencer a si mesmo.
No sofá, Bert continuava dormindo. Inofensivo. Bonito demais pra esse momento de crise — mas irrelevante. Tentava empurrar todo o pensamento para longe — até o arrependimento amargo por ter deixado a situação chegar nesse ponto.
O ar no apartamento parecia pesado demais para continuar ali. Gerard precisava de um cigarro. Precisava de uma pausa, estava cansado de pensar no próprio caos. Empurrou a porta da cozinha, que rangeu baixinho, e atravessou até a escadaria de emergência. Assim que abriu a porta externa, o vento cortante da noite nova-iorquina lhe atingiu o rosto como um tapa.
A estrutura metálica da escada era velha, enferrujada em alguns pontos, mas firme. Ele se sentou em um dos degraus e puxou do bolso um maço amassado de Marlboro. Acendeu o cigarro com um isqueiro arranhado, cujas chamas vacilavam contra a brisa insistente.
A primeira tragada queimou a garganta.
Do alto daquela escada, ele via parte do beco atrás do prédio e as janelas vizinhas, algumas iluminadas, outras escuras, vazias. Tudo parecia comum, silencioso... mas nada ali era seguro. Ele sabia disso agora.
O cigarro queimava devagar entre seus dedos enquanto ele repassava mentalmente tudo o que ele tinha até agora.
Frank estava desaparecido há 5 dias. Jamia dizia que ele vinha agindo estranho nos últimos dias, recluso, quase não se falavam mais. A matéria sobre corrupção policial estava desaparecida com o autor, mas o que se sabia era que as acusações apontavam direto para a delegacia central de Nova Iorque. Mais especificamente, para os altos escalões e uma empresa de segurança privada.
— Frank... no que diabos você se meteu? — disse baixinho, encarando a fumaça subir e se dissipar no ar frio.
Ray tentava manter a fachada de controle, tendo o Frank como um canal para expor toda a sujeira de corrupção que a Polícia estava envolvida, mesmo que isso custasse o seu emprego. Mesmo que custasse a sua vida.
E por fim, havia o próprio pressentimento. Aqueles sonhos. Fragmentos desconexos, imagens que vinham quando ele estava vulnerável, sempre com o mesmo rosto pedindo ajuda. Ele tentou ignorar esse lado por anos, afundando-se no ceticismo e no álcool, mas agora... agora parecia impossível negar que algo — ou alguém — tentava se comunicar com ele.
A cidade continuava viva ao seu redor. Mas ali, naquela escadaria esquecida, era como se o tempo tivesse parado. Seus olhos percorreram os arredores e, no canto oposto, meio escondido em uma velha planta ressecada num vaso rachado, ele viu um pequeno cinzeiro de metal, manchado de nicotina e esquecido pelo tempo. Dentro, pontas de cigarro parcialmente queimadas e amassadas.
Gerard se aproximou, abaixando-se devagar. Tocou o cinzeiro com dois dedos, virando-o um pouco.
— Era aqui que você vinha, né? — sussurrou, quase num suspiro.
Gerard se sentou ao lado da planta, imaginando que Frank fazia o mesmo.
Estava prestes a apagar a bituca no cinzeiro quando algo, no canto da planta, chamou sua atenção — um livro, quase fora de vista.
Era um livro velho, com a capa já quase soltando da lombada. O Apanhador no Campo de Centeio. Ele reconheceu o título na hora — um clássico, mas parecia fora de lugar ali, exposto ao vento e à terra do vaso. Quando o pegou, notou que estava relativamente seco, como se estivesse ali há algum tempo, protegido da chuva direta, esquecido.
Ele olhou para o livro em suas mãos, depois de volta para o cinzeiro.
A cena começou a tomar forma em sua mente: Frank sentado nos degraus, o livro equilibrado no joelho, o cigarro aceso, o olhar atento e ágil sobre as páginas, talvez organizando pensamentos, talvez somente fugindo da realidade por alguns minutos.
Era só uma escadaria de emergência. Mas para Frank... pode ter sido um refúgio.
Ao folhear as páginas amareladas, viu uma fotografia. Era Frank. Tirando uma selfie, rindo, com os cabelos bagunçados e uma camiseta preta surrada. Ao lado dele e mais atrás, Jamia sorria de forma cúmplice, com um cartaz contra corrupção nas mãos. A foto parecia tirada durante algum protesto. Era íntima, vibrante. Real.
No verso da foto, preso com um clipe, havia um cartão de acesso velho e gasto com uma tarja magnética arranhada. Havia uma logo amarela já quase desbotada, escrito: "FS". No campo do nome: "Visitante".
Gerard ficou imóvel por um instante, a respiração presa na garganta. O cartão tremia levemente entre seus dedos, e ele não sabia se era pelo vento ou pelas emoções que começavam a se acumular no peito.
Guardou a foto com cuidado no bolso interno da calça. Depois, analisou o cartão com calma. Já tinha visto aquela logo antes...
— Você deixou isso pra mim? — murmurou, sem esperar resposta.
Gerard se sentiu energizado de novo. Segurou o livro com mais cuidado do que se fosse uma prova e olhou mais uma vez para a cidade lá embaixo.
Frank deixou rastros. E ele iria seguir cada um deles até encontrá-lo.
Gerard voltou à cozinha e pousou o livro sobre a bancada.
Voltou à mesa. As pilhas de folhas espalhadas pela mesa como quem desmonta uma bomba-relógio. Alguns papéis estavam rabiscados às pressas, com nomes riscados, setas ligando palavras, trechos de reportagens e datas em destaque com caneta vermelha. Nada fazia muito sentido à primeira vista.
Foi só quando ele virou uma pasta surrada marcada com o nome "Contrato de Prestação de Serviço" que algo chamou sua atenção. O cabeçalho era de uma empresa de segurança privada, com o mesmo logotipo daquele cartão. O nome da empresa no rodapé parecia quase despretensioso, como se quisessem que passasse despercebido: Falcon Security.
Gerard estreitou os olhos, voltando a encarar o contrato com mais atenção. O serviço descrito era vago demais: segurança para eventos corporativos. Mas os valores haviam sido omitidos. Tudo confidencial.
Ele estendeu o cartão que encontrou no livro, segurando-o ao lado do contrato.
Mesmo logotipo. Mesmo nome.
"FS."
E então a ficha caiu.
Frank esteve na Falcon Security antes de desaparecer.
— Filho da mãe... — sussurrou, sem conter um misto de admiração e surpresa.
Ele se levantou abruptamente da cadeira, andando de um lado para o outro da cozinha com o cartão em mãos, o contrato embaixo do braço. A mente dele fervia. Frank havia conseguido entrar na sede da Falcon Security. Com aquele crachá, ele tinha acesso — ao menos parcial — a algum setor da empresa. E agora Gerard tinha o que precisava.
Uma prova do vínculo entre o jornalista desaparecido e a empresa de segurança. Um contrato firmado com a polícia. Um cartão de acesso que colocava Frank fisicamente dentro da sede da Falcon. Havia indícios, só precisava saber quantas mais conseguiria a partir disso.
Ele podia montar uma linha do tempo. Levar isso a um promotor. Usar como base para pedir um mandado formal. Oficializar uma investigação.
Era a peça que faltava.
Gerard pegou o celular e tirou fotos de tudo: o contrato, o cartão, a foto, os rabiscos de Frank. Depois, juntou cada item com cuidado para guardá-las em uma pasta.
Respirou fundo, os dedos ainda tremiam de leve.
— Vou te achar, Frank. Estou perto. — disse, baixinho.
Agora ele não estava mais tateando no escuro, ele tinha uma prova concreta. Gerard mal conseguia ficar parado.
Com o celular apertado com força entre os dedos, ele voltou à escadaria de emergência. O mesmo lugar onde encontrara o livro, o cartão. Agora era também o lugar onde ele sentia, pela primeira vez em dias, que estava no caminho certo.
Ele se sentou no mesmo degrau de antes, jogou o corpo para frente e discou o número de Ray com dedos trêmulos, quase ansiosos demais para funcionar.
Chamou uma, duas, três vezes. E então:
— Alô? — A voz rouca e sonolenta do outro lado soou irritada.
— Ray, sou eu. Cara... escuta. Eu achei. Eu achei, porra! — Gerard falou rápido demais, atropelando as palavras, com os olhos arregalados e o peito em chamas.
— Gerard? Que diabos... que horas são? — Ray resmungou, mas o tom mudou quando ouviu a intensidade na voz do outro. — O que você achou?
— A porra da prova de que a gente precisa. O Frank esteve na Falcon Security. Encontrei o cartão de visitante no apartamento dele. O Frank conseguiu um contrato entre eles e a polícia, Ray! Isso muda tudo.
Ray demorou a responder. Quando falou, sua voz estava mais desperta, mais séria.
— Manda foto de tudo. Eu vou acionar a promotoria. Se o que você tá dizendo é verdade... isso pode nos dar o mandado imediatamente.
— Não. — disse firme.
— Como assim, "não"? — Ray soou impaciente.
Gerard apoiou o cotovelo no joelho e passou a mão no rosto, tentando controlar a ansiedade.
— Ainda tem o rato, Ray. Alguém tá espionando a investigação, vazando cada passo.
Ray bufou do outro lado da linha.
— Eu tô tentando descobrir quem é.
— Então a gente precisa estar a frente deles. Nada de envolver o promotor de Nova Iorque. Ainda não. — Gerard falou com convicção, como quem já havia pensado nisso antes. — E mais: se a gente for pedir esse mandado, tem que ser por fora. Alguém de confiança. Um juiz que não tenha ligação com Nova Iorque.
Silêncio. Gerard aproveitou a brecha.
— Newark. Conheço um juiz de lá. Discreto, íntegro. Não tem rabo preso com ninguém do departamento.
— Você tem certeza? — Ray perguntou, a voz mais baixa.
— Absoluta. A gente vai usar esse cartão e o contrato como base e o juiz vai poder emitir o mandado com sigilo de justiça.
— E se o rato descobrir antes de invadirmos a Falcon Security?
Gerard soltou um suspiro e apoiou a cabeça na parede fria atrás de si.
— Aí entra o seu plano. A gente planta uma isca falsa e prendemos o criminoso assim que sair o mandato.
Ray ficou em silêncio por alguns segundos. Quando respondeu, havia uma ponta de respeito contido na voz dele.
— Você pensou em tudo, hein?
— Não podemos errar dessa vez, vamos achar o Frank.
Do outro lado da linha, Ray respirou fundo.
— Tudo bem. Façamos do seu jeito. E a isca... eu cuido disso amanhã. Com calma.
Gerard fechou os olhos por um instante, deixando o alívio breve passar por seu corpo.
— Obrigado por confiar em mim.
— Não tenho muita escolha, tenho? — Ray respondeu, tentando soar leve. Mas o tom era mais amargo do que brincalhão.
A ligação caiu logo depois. Gerard ficou ali mais alguns minutos, olhando o horizonte urbano engolido pela madrugada. Ele acendeu outro cigarro com as mãos protegidas do vento, o estalo do isqueiro quebrando o silêncio rarefeito da madrugada. A primeira tragada veio mais lenta, menos ansiosa. Agora não era por vício ou nervosismo — era ritual. Um jeito de ocupar o tempo entre a tempestade de pensamentos.
Ele olhou mais uma vez para o horizonte, onde a cidade parecia adormecida, mas inquieta — como ele.
Só então se deu conta de algo estranho... libertador, até.
Durante todo aquele tempo, desde que achara o cartão, o contrato, o livro... ele não havia pensado em Bert. Nem no beijo. Nem no que significava, ou se significava algo. Não havia espaço para a culpa, nem para o caos emocional. O silêncio do nome dele era quase reconfortante.
Quando o assunto era Frank, tudo o resto se calava.
Havia uma urgência nos olhos daquele jornalista, nas fotos, nos sonhos, nas pistas deixadas como migalhas de pão por onde quer que tivesse passado. Como se cada detalhe gritasse "encontre-me" sem palavras.
E Gerard estava ouvindo.
Soltou a fumaça aos poucos, os olhos fixos em algum ponto do nada, enquanto deixava o peso das últimas horas assentar devagar.
Frank.
Era só pensar nele que o mundo entrava em foco.
Como se o resto... fosse só ruído. Gerard permaneceu na escadaria de emergência por mais tempo do que imaginava. O vento frio da madrugada já não cortava como antes; agora era apenas parte do cenário, como o rangido ocasional do metal ou o zumbido distante da cidade adormecida.
Sentado no degrau, com o cotovelo apoiado no joelho e o olhar perdido entre os prédios, ele percebeu que o céu começava a mudar de cor. Um tom azul-acinzentado foi se desmanchando aos poucos, tingindo-se de dourado nas bordas, como se alguém tivesse riscado um fósforo no horizonte.
Era o começo do dia.
O primeiro fio de luz atravessou a avenida distante, refletindo nos vidros dos edifícios e pintando de cobre o concreto gasto das fachadas. Gerard segurou a respiração por um instante — não por drama, mas por pura surpresa. Havia algo de silenciosamente grandioso naquela cena. Algo que não exigia palavras, nem explicações.
E foi só então que ele se deu conta: ele nunca parou para ver um nascer do sol.
Não de verdade.
Não daquele jeito.
Tantas madrugadas enterradas em plantões, garrafas vazias ou noites em claro em quartos sem janelas. Mas agora, sentado num prédio qualquer, com os ossos cansados e os dedos cheirando a tabaco, ele via o mundo acordar. E pela primeira vez em muito tempo... se sentia acordando junto.
Gerard apertou os olhos pela claridade e deixou escapar um leve sorriso, discreto e triste.
A cidade voltava a respirar. Mas ele sabia que aquele instante, pequeno e silencioso, ficaria com ele. Como mais uma peça invisível desse quebra-cabeça que só fazia sentido no escuro.
A luz dourada já invadia a escada quando o som de uma porta se abrindo atrás dele quebrou o silêncio. Passos hesitantes ecoaram pelo piso metálico até pararem a poucos metros de onde ele estava.
— Gerard?
Era a voz de Bert. Baixa, ainda rouca de sono, carregando uma mistura de preocupação e cautela.
Gerard não respondeu de imediato. Continuou olhando para o horizonte, como se ainda tentasse memorizar aquele instante raro.
Bert se aproximou devagar, esfregando os braços pelo frio.
— Você tá aqui desde ontem?
Gerard assentiu com a cabeça, sem olhar para ele.
— E você nem dormiu?
— Não. — respondeu, a voz baixa, quase em paz.
Bert suspirou, sentando-se no degrau ao lado. Ficaram em silêncio por alguns segundos, observando o céu mudar de cor, o dia ganhando forma aos poucos.
— Você tá bem? — Bert perguntou, mais suave dessa vez.
Gerard demorou a responder. Inspirou fundo, o cheiro do metal, da cidade e do cigarro ainda impregnado nas narinas.
— Sobre ontem... — Bert começou, sem o encarar — Eu tava... confuso. E você também, né?
Gerard soltou um riso curto, quase amargo. Finalmente, virou o rosto para ele, os olhos cansados, mas firmes.
— É. Confusos.
Bert apertou os joelhos com as mãos, desviando o olhar.
— Eu não quero que fique estranho entre a gente.
— Não se preocupe. — respondeu Gerard, direto. Sem agressividade, mas também sem suavidade.
O silêncio voltou com mais peso. O vento batia nas laterais do prédio, trazendo consigo o som de uma cidade despertando.
Bert mexeu-se inquieto.
— Só... me avisa se quiser que eu vá embora.
Gerard demorou a responder. Olhou para o horizonte mais uma vez, onde o sol subia com preguiça por entre os prédios.
— Você não precisa ir. Mas também não precisa fingir que nada aconteceu.
— Eu não tô fingindo. Só não sei o que significa.
— Nem eu. — Gerard deu de ombros. — Mas agora não é hora de descobrir.
Bert assentiu, a mandíbula tensa, mas sem discutir.
E por mais alguns minutos, ficaram em silêncio, cada um lidando com o desconforto à sua maneira. O céu, em contrapartida, parecia alheio — límpido, bonito, indiferente.
— Você sabia que eu nunca tinha visto o sol nascer? — disse, quase sorrindo.
— Não? — Bert perguntou, surpreso.
— Já fiquei acordado a noite inteira algumas vezes... plantão, emboscadas, insônia. Mas ver o sol nascer mesmo, assim, só por ver? — Ele balançou a cabeça, o olhar ainda fixo no horizonte. — Nunca aconteceu.
Bert observou, em silêncio, o rosto de Gerard recortado contra a luz suave da manhã.
— É bonito. Mesmo num lugar tão feio.
Gerard riu e, por um instante, o clima entre eles pareceu voltar a respirar. Era um novo dia. E havia coisas mais urgentes a fazer.
Gerard se levantou devagar, sentindo os músculos reclamarem da noite mal dormida. Apoiou-se no corrimão da escada e olhou o céu já claro, como se marcasse o fim de uma vigília silenciosa.
Bert o observou em silêncio, ainda sentado nos degraus.
— Vai pra onde? — perguntou, tentando soar casual, mas o olhar atento traía a preocupação.
Gerard hesitou por um instante, depois apenas disse:
— Dormir. Finalmente.
Bert apenas assentiu, devagar, como se ponderasse algo que não precisava ser dito. O silêncio entre eles se esticou por alguns segundos, e dessa vez ele não questionou, não insistiu.
— Tá. Boa noite, então. — murmurou, com um meio sorriso cansado.
Gerard retribuiu o gesto, o rosto suavizado por um instante.
— Boa noite, Bert.
Ele se virou e caminhou em direção à porta da cozinha, sem dizer mais nada. Bert ficou parado, observando em silêncio até que Gerard desaparecesse do seu campo de visão. Seus passos eram firmes, mas silenciosos. Ele sentia o olhar de Bert queimando em suas costas até desaparecer do seu campo de visão. Assim que cruzou a porta, acelerou o ritmo.
Na cozinha parcialmente iluminada, Gerard moveu-se com rapidez, pegou todos os documentos necessários o suficiente para convencer o juiz a lhe conceder o mandato. Não havia mais tempo a perder.
Ele deu uma última olhada para trás, para o apartamento silencioso, antes de puxar a porta e trancá-la com cuidado. O ar da manhã era cortante, e a rua estava quase deserta. Gerard caminhou a passos largos até seu carro, estacionado a alguns quarteirões dali, em uma rua menos movimentada. Abriu a porta com cuidado e, já sentado atrás do volante, puxou a pasta para o colo e conferiu novamente o conteúdo, como se precisasse se assegurar de que tudo ainda estava ali.
Girou a chave na ignição. O motor respondeu com um ronco baixo, e logo Gerard estava acelerando pelas ruas de Nova Iorque, rumo a Newark.
O caminho foi tenso, o trânsito da manhã estava carregado, mas ele mantinha o foco, as mãos firmes no volante. A mente fervilhava, repassando mentalmente os pontos que apresentaria ao juiz. Não podia haver falhas.
Quando finalmente avistou o prédio imponente do tribunal de Newark, sentiu a ansiedade crescer. Estacionou rapidamente, pegou a pasta e subiu as escadarias de pedra, sem olhar para trás.
Chapter 10: O encontro
Notes:
Passando aqui rapidinho pra pedir desculpas pelo sumiço. Eu sei que fiquei um tempão sem postar e sem dar notícias. A verdade é que nas últimas semanas tudo aconteceu de uma vez: peguei dengue, depois uma gripe daquelas que derrubam, e agora tô na correria com dois empregos. Tá sendo puxado! Meu tempo ficou super apertado e minha saúde também deu aquela balançada.
Mas queria que vocês soubessem que não abandonei a fanfic, e ela está bem perto de finalizar. Postei 2 capítulos de uma vez pelo tempo que fiquei sem aparecer. Vão ler 🖤✨
Chapter Text
Estar no tribunal de Newark trazia uma nostalgia estranha. A chuva tamborilava firme contra as janelas do prédio antigo, de tijolos e vidro. O tribunal parecia mais frio do que de costume naquele dia. A cidade parecia querer engolir tudo em cinza.
Gerard Way, agora atuando informalmente como investigador, mantinha o olhar fixo nos corredores austeros do prédio. Os sapatos ressoavam contra o piso de mármore. Ele passara a noite revendo provas, conectando os pontos que ligavam a Falcon Security ao desaparecimento de Frank. Os sonhos não deixavam dúvidas, mas o tribunal precisava de evidências sólidas.
No salão reservado para o juiz de plantão, o som do ar-condicionado contrastava com o murmúrio distante das secretárias e dos oficiais de justiça. Gerard já estava esperando há aproximadamente duas horas.
Sentado numa das cadeiras duras de madeira encostadas na parede, ele tamborilava os dedos no braço da poltrona, tentando ignorar a rigidez do ambiente. Ao seu lado, a pasta com os documentos repousava como uma bomba prestes a explodir. Tudo o que ele tinha: relatórios, fotos, transcrições, provas conectando Corey Taylor à Falcon Security — estava ali dentro.
A ansiedade o corroía. Ele sabia que não era mais delegado, pelo menos não oficialmente. Não tinha mais o crachá, nem a autoridade legal. Só tinha o nome, a reputação... e um senso de urgência que crescia a cada segundo. Frank ainda estava desaparecido. O tempo era o inimigo mais cruel agora.
Uma funcionária de blazer escuro surgiu na porta e chamou:
— Sr. Way? O juiz já pode recebê-lo.
Gerard se levantou de imediato. Os músculos estavam tensos, e o joelho estalou quando ele andou. Pegou a pasta com firmeza e seguiu a mulher por um corredor estreito. Ela apenas apontou com a cabeça para o elevador no fim do caminho.
No quarto andar, as luzes do gabinete ainda estavam acesas. Gerard respirou fundo antes de bater duas vezes na porta.
— Entra logo, Way. — disse uma voz grave e meio arrastada.
Ao entrar, o ambiente o engoliu. Era sóbrio e silencioso, com estantes repletas de livros jurídicos, uma janela fechada e uma luminária antiga iluminando a mesa do magistrado e... uma guitarra encostada no canto. No centro, atrás de uma mesa com papéis espalhados e uma caneca que dizia "Don't make me use my judge voice", estava ele — Gabe Saporta. De terno, mas com a gravata afrouxada, mangas arregaçadas e o mesmo ar insolente de quem nunca levou a rigidez da profissão tão a sério quanto ele gostaria.
— Então é verdade. — Gabe ergueu uma sobrancelha ao se levantar da cadeira. — Você voltou à ativa ou só tá com saudade de mim?
Gerard forçou um sorriso fraco, cansado.
— Preciso da sua ajuda, Gabe.
— Claro que precisa. — Gabe caminhou até a frente da mesa, apoiando-se na beirada. — Sempre aparece um Way na minha porta quando o inferno tá prestes a abrir as portas.
Gerard abriu a pasta e começou a organizar os documentos sobre a mesa.
— O nome dele é Frank Iero. Jornalista investigativo. Desaparecido há uma semana. E isso aqui... — ele empurrou os papéis com rapidez — é o começo de um rombo que envolve a Falcon Security e parte da polícia de Nova Iorque.
Gabe passou os olhos pelos papéis que Gerard havia espalhado sobre a mesa. O nome "Falcon Security" saltava à vista, cercado de anotações rabiscadas à caneta e fotos coladas com fita. Era coisa séria. Mais séria do que qualquer outra que ele tivesse visto nos últimos meses — e ele já tinha visto de tudo.
— Por que não entregou isso à promotoria de Nova Iorque?
— Porque há gente lá dentro acobertando tudo isso. — Gerard respondeu sem hesitar. — Corey esteve com Frank dias antes do desaparecimento. Usou recursos da Falcon Security para monitorá-lo. Há um contrato assinado, cartão de visitas, fotos, mensagens criptografadas... está tudo aí.
Gabe pousou os papéis e cruzou as mãos, encarando Gerard com os olhos de quem já viu muitas tragédias começarem assim: com boas intenções e provas imperfeitas.
— Tá me pedindo pra emitir um mandado de prisão com base numa investigação não oficial, conduzida por um homem emocionalmente instável, sem nenhuma autoridade legal?
— Tô pedindo pra salvar uma vida. — Gerard retrucou, a voz embargada. — Você pode esperar por mais provas. Eu não posso. Cada hora que passa é a vida do Frank que tá em risco.
Um longo silêncio caiu entre eles. Só se ouvia o tique-taque do relógio analógico na parede.
O juiz suspirou, recostando-se na cadeira.
— Você acredita mesmo que esse mandado pode levar ao paradeiro do rapaz?
Gerard não respondeu de imediato. Olhou para baixo, os olhos fixos na pasta aberta sobre a mesa.
— Eu sei que pode.
Gabe passou os olhos rapidamente pelas folhas. Seus dedos tamborilaram no tampo da mesa. Ele ficou em silêncio por longos segundos, analisando o material. Depois ergueu o olhar, mais sério.
— Você tá me pedindo um mandado de busca pra abrir a porta do inferno. E sabe disso.
Gerard sustentou o olhar, firme.
— Tô. E se não fizer isso agora, vão apagar qualquer chance de encontrar esse garoto com vida. Ou de provar qualquer coisa.
O juiz deu um passo para trás, esfregando o rosto com as mãos. Depois olhou de novo para Gerard — dessa vez, sem ironia.
— Você tem noção de onde isso vai dar, se for verdade?
— Tenho. E vou até o fim.
Um silêncio pesado se instalou. Por fim, Gabe soltou um suspiro e estalou os dedos.
— Então senta aí. Vai me guiando pelas provas enquanto eu redijo essa ordem. Mas se isso for uma furada, Gerard... eu juro que acabo com você.
Gerard assentiu e se sentou, sentindo, pela primeira vez em dias, que estava um passo mais perto de Frank.
O som das teclas preencheu o gabinete por longos minutos, enquanto Gerard explicava em voz baixa os vínculos da Falcon Security, as conexões com contratos públicos e os detalhes encontrados no apartamento de Frank. Gabe absorvia tudo em silêncio, com o maxilar travado e os olhos passando das palavras na tela para os documentos espalhados à sua frente.
Quando enfim terminou de redigir o texto, leu cada linha em voz baixa, com a ponta da caneta batendo levemente na borda da mesa.
Gerard esperava, mãos inquietas no colo.
Então, Gabe parou. O papel do mandado diante dele. A caneta pairando sobre o espaço da assinatura.
E, por um breve instante, a lembrança antiga surgiu , que ainda latejava em algum lugar escondido de sua consciência.
Collin Pierce. Tinha apenas 19 anos. Um garoto magro, com os olhos sempre baixos e a voz trêmula. As marcas de agressão nos braços e nas costelas contavam uma história que ele não conseguia colocar em palavras. Gabe se lembrava claramente das mãos inquietas do rapaz sobre o colo, das respostas curtas, do silêncio carregado de medo. Lembrava da descrições gráficas do julgamento, do olhar perdido que não pedia ajuda — só queria desaparecer.
A ausência de provas. A recusa em testemunhar. A burocracia implacável que engolia até os casos mais desesperadores."Não posso fazer nada sem uma vítima disposta a falar a verdade. Me desculpa."
Ele odiava aquela frase. A sentia presa na garganta desde o dia em que a disse. E, pouco tempo depois, Collin estava morto — encontrado enforcado na mesma propriedade onde tudo acontecera. Nenhum culpado. Nenhuma justiça. Só o silêncio de sempre.
Gabe engoliu seco. As peças que, naquela época, não se encaixavam... agora estavam todas sobre a mesa. Reconhecia a mesma sombra rondando por entre os papéis e os nomes. Mas, dessa vez, não havia silêncio. Havia alguém disposto a ir até o fim.
Gabe firmou a mão e assinou o mandado.
— Pronto. — disse, sem emoção, empurrando o papel para Gerard. — Entrega isso direto ao oficial de plantão. Eles vão ter que cumprir ainda hoje.
Gerard pegou a folha com um aceno rápido, os olhos agradecidos, mas carregados.
Antes de sair, parou na porta e se virou.
— Obrigado.
Gabe não respondeu de imediato. Ficou olhando para a caneca vazia sobre a mesa. Depois ergueu o olhar, sério.
— Não me agradece ainda. Só volta com esse garoto vivo, Way.
Gerard assentiu e desapareceu no corredor.
Ele caminhou com cautela e pressa pelo estacionamento vazio, sentindo o vento frio empurrar gotas de chuva contra o rosto. Tomou o cuidado de proteger a pasta com os documentos sob o casaco, apertando-a contra o corpo para não deixá-la molhar. Os passos ecoavam no asfalto encharcado.
Ao abrir a porta do carro, jogou-se no banco do motorista. Não ligou o motor. Apenas ficou ali, imóvel, permitindo que o corpo desabasse contra o encosto. Os olhos fixos no nada. A pasta repousava no banco do passageiro, e dentro dela, o mandado assinado — a única coisa concreta em meio ao turbilhão.
A cabeça latejava. Os ombros ardiam sob o peso de noites maldormidas e escolhas difíceis. As últimas horas vinham em flashes desconexos: o dia agradável com Bert, a abordagem policial. As descobertas da investigação, o beijo. O olhar de Gabe, o som do teclado preenchendo o silêncio da sala. Tudo parecia maior do que ele, como uma maré que subia rápido demais.
Passou as mãos pelo rosto, os dedos gelados arrastando a umidade da pele áspera. Os olhos ardiam. A garganta fechada ameaçava entregar o que ele insistia em conter.
— Porra... — murmurou, um fio de voz rouco, mais um suspiro do que uma palavra.
Era como se, naquele instante, seu corpo enfim tivesse recebido permissão para sentir. A exaustão se revelava nos músculos tensos, na ausência de sono, na mistura corrosiva de medo, adrenalina e esperança. Tudo desabava em silêncio, dentro daquele carro parado sob a chuva fina de Nova Iorque.
Encostou a testa no volante, os olhos fechados. Respirou fundo, mais de uma vez, tentando encontrar um ponto fixo dentro de si.
Ainda havia muito a ser feito. Ainda havia um garoto desaparecido. Ainda havia uma verdade sufocada por trás de selos e assinaturas. Mas, por aquele breve momento, Gerard se permitiu parar.
Sentir.
Cansar.
E continuar. Porque, no fundo, ele sabia: parar doía mais.
A delegacia de Nova Iorque estava em ebulição quando ele chegou. Algumas horas haviam se passado desde que conseguiu o mandado. Subiu as escadas devagar, os passos firmes, o casaco ainda úmido da garoa. A pasta sob o braço, com as cópias dos documentos e o mandado assinado por Gabe, era sua única armadura.
Parou diante da porta do gabinete de Ray. Respirou fundo.
Bateu uma vez.
— Entra — veio a voz abafada lá de dentro.
Ray estava à mesa, as mangas da camisa dobradas até os cotovelos, cercado por pilhas de papel como trincheiras. O rosto parecia ainda mais cansado do que no dia anterior, mas os olhos estavam atentos. Quando viu Gerard, ergueu uma sobrancelha.
— Isso é o que eu acho que é?
Gerard não respondeu. Entrou, caminhou até a mesa e, com um gesto firme, colocou o mandado assinado diante dele.
O silêncio que se seguiu pareceu sugar o ar da sala.
Ray leu o documento com calma, linha por linha. Quando terminou, recostou-se na cadeira e soltou um suspiro baixo, pesado.
— Saporta assinou?
— Sim.
— Posso saber como?
— Ele confia em mim.
Ray assentiu lentamente. O olhar que lançou a Gerard era outro — mais denso, mais contido. O peso de alguém que sabia exatamente o que viria a seguir.
— Você podia ter levado isso direto pra corregedoria. — Ray cruzou os braços — Ou pro FBI. Podia ter me cortado do processo.
— Eu sei. — Gerard respondeu, simples. — Mas não quis.
Ray não disse nada por alguns segundos. Apenas pegou o telefone, discou um ramal e falou com a voz baixa, precisa:
— Monta uma equipe. Só de gente que eu confio. Temos execução de mandado agora.
Desligou. Voltou-se para Gerard.
— Você vai com a gente?
Gerard hesitou, o olhar pesado, cansado, mas firme.
— Não.
— Way, você me trouxe isso como parceiro. Não vai sair pela porta agora. — Ray se levantou, recolheu a pasta, e disse com firmeza: — Vamos ver onde isso nos leva. E se tiver merda no caminho... a gente limpa junto.
Gerard soltou um leve sorriso, sem humor, apenas cansaço.
— Eu entendi. Mas você vai ter que entender que... eu preciso dormir. Mesmo que seja por uma hora. Se eu não parar agora, eu desmonto no meio do caminho.
Ray ficou em silêncio por um momento, como se considerasse dizer algo. Mas no fim, apenas assentiu com a cabeça.
— Tudo bem. Você já fez o mais difícil — disse, erguendo o mandado entre os dedos. — Amanhã a gente caça esse rato. E você vai estar comigo.
Gerard virou-se, parando a mão na maçaneta.
— Isso aqui não é mais só sobre encontrar o Frank, né? — Ray perguntou.
Gerard hesitou. A garganta secou e, por um instante, o olhar dele vacilou.
— Não. Não é.
Ray assentiu devagar, como quem entende mais do que diz. Como quem carrega os próprios fantasmas.
— Vai. Dorme. Quando você voltar... vamos precisar da sua cabeça no lugar.
Gerard não respondeu. Apenas acenou com a cabeça e saiu da sala, deixando o som abafado da porta se fechar atrás de si como um ponto final provisório. Cada passo no corredor parecia mais pesado que o anterior. A missão ainda estava longe do fim, mas agora, ao menos, ele não estava mais sozinho.
E isso, naquele momento, era tudo o que ele precisava.
As luzes da rua piscavam em fragmentos esparsos pela janela do carro enquanto Gerard dirigia, mas ele mal se lembrava de ter atravessado a cidade. A estrada parecia um túnel borrado, os semáforos passando como lampejos vermelhos e verdes que não significavam nada. A última coisa nítida era a porta da delegacia se fechando atrás dele. Depois disso... um borrão.
Quando deu por si, estava parado em frente à paróquia.
O motor do carro ainda roncava em marcha lenta, os dedos de Gerard firmes no volante, como se segurassem algo prestes a escapar. O limpador de para-brisa fazia um barulho ritmado, hipnótico — mas ele não lembrava da chuva ter começado. A luz do poste refletia no vidro do carro, e só então ele percebeu que estava com os olhos marejados — não de choro, mas de exaustão extrema.
Desligou o motor com um gesto lento, quase automático. Ao abrir a porta, o ar frio da madrugada o atingiu como um tapa. A gravidade parecia diferente, puxando seus músculos como se cada passo até a porta da casa paroquial fosse um esforço contra um peso invisível. Ele tropeçou no primeiro degrau, mas recuperou o equilíbrio sem pensar — como alguém que já não estava mais no corpo.
A porta estava destrancada. Sempre estava.
Dentro, o corredor mal iluminado o recebeu com um silêncio acolhedor. Os pés pisavam no piso de madeira sem som, como se o mundo estivesse em suspensão. Ele passou pela cozinha sem olhar, sem notar as luzes apagadas, a xícara esquecida na pia. Subiu as escadas como um sonâmbulo. Quando abriu a porta do quarto de hóspedes, a cama estava lá, feita, intacta.
Ele não tirou os sapatos. Caiu de lado, como um corpo que desliga.
A sensação de seu corpo afundando foi quase um alívio. Ele sabia que, ao acordar, a busca continuaria. Mas, por agora, o descanso era tudo o que ele precisava.
O sono de Gerard, embora necessário, não trouxe paz. Quando seus olhos se fecharam e seu corpo finalmente encontrou um descanso fragmentado, o mundo ao seu redor se dissolveu em sombras. A figura estava lá, em pé, com a silhueta indistinta, flutuando no ar como uma sombra presa entre mundos. Era como se ele soubesse que ela o aguardava.
Gerard tentou mover-se, mas suas pernas estavam pesadas, como se o chão o prendesse como um ímã. Quando olhou para frente, viu os olhos — brilhando na escuridão como faróis. A figura estava parada, a poucos passos dele, e a voz sussurrou através de sua mente, como um eco distante.
"Gerard..."
A palavra flutuou no espaço, suave, mas carregada de autoridade. Seu corpo estremeceu, e uma sensação de frio percorreu sua espinha. Ele tentou falar, mas sua garganta estava seca. A figura se aproximava lentamente, sem se mover de verdade, como se estivesse perto e, ao mesmo tempo, distante. A luz que emanava dela não era bem luz. Era uma energia que parecia puxá-lo para dentro.
Diante dele, uma silhueta começou a tomar forma. No início, era apenas uma sombra ondulante, mas, conforme se condensava, Gerard sentiu um arrepio tomar conta de seu corpo. A figura era ele mesmo. Não um reflexo, mas uma versão distorcida e estranha. Os olhos eram fundos, como se todo o cansaço que ele sentia tivesse se multiplicado. A pele, pálida demais. A expressão, algo entre o pesar e o entendimento absoluto.
"Que porra é essa?" murmurou, sentindo um nó na garganta.
A outra versão dele sorriu — um sorriso pequeno, carregado de algo que ele não conseguia decifrar.
"Não precisa ter medo" disse a figura. A voz era idêntica à sua, mas com um eco estranho, como se viesse de dentro da própria mente. "Eu só estou aqui porque você precisa de mim. Você se sente perdido."
As palavras se arrastavam lentamente pelo ar, como se cada sílaba fosse formada num lugar além do tempo.
"Eu sinto sua dor."
Gerard engoliu em seco. Sua mente ainda estava confusa, mas as palavras daquela figura ressoavam dentro dele com uma clareza arrepiante.
"Quem... quem é você?"
A outra versão dele sorriu de novo. Mas, dessa vez, havia algo mais triste em sua expressão.
"Eu sou você. Mas, mais importante... sou uma ponte. Eu sou a resposta que você procura."
O coração de Gerard disparou.
"O... quê?"
A figura ficou em silêncio por um momento, como se ponderasse a pergunta, antes de dar um passo à frente.
"Eu sou apenas um reflexo do que você busca, Gerard."
"Então o que eu faço?" ele perguntou, a voz falhando.
A figura se moveu lentamente, sua presença invadindo o espaço ao redor.
"Você não está sozinho. Nunca esteve. Se precisar de mim, basta pedir. Uma palavra, Gerard. Apenas uma palavra."
O frio aumentou. O peso da escuridão se tornava mais denso, mais opressor.
"Eu não sei o que isso significa. Como posso pedir ajuda de alguém que não é... real?"
A figura sorriu.
"Você já pediu, sem saber. E eu estarei aqui. Como sempre estive."
Gerard sentiu o peso daquelas palavras caírem sobre ele. Pela primeira vez, teve a sensação de que havia algo mais do que ele entendia. Algo maior. Algo mais profundo.
"Você está dizendo... que a resposta está bem diante de mim? Que eu só preciso... pedir por ela?"
A figura não respondeu. Apenas estendeu a mão. Gerard tentou alcançá-la, mas ela se desfez como fumaça. Com um último sussurro, a voz ecoou em sua mente:
"Quando estiver pronto para ver, verá. Quando estiver pronto para pedir, eu estarei aqui para responder."
Gerard encontrou Mikey no pequeno escritório da paróquia, onde o irmão folheava alguns papéis, como de costume. A luz suave da manhã começava a iluminar o ambiente, mas, para Gerard, a sensação de estar distante de tudo só aumentava. Ele ainda estava preso ao pesadelo, como se a figura do sonho tivesse ficado com ele, ocupando todo o espaço.
Mikey levantou os olhos assim que Gerard entrou. Sem surpresa. Percebeu imediatamente a tensão no rosto do irmão e se levantou, movendo-se com a calma de sempre.
— Você viu, não foi? — perguntou sem rodeios, como se já soubesse exatamente o que acontecera.
Gerard o olhou, perplexo:
— Como você... sabe?
Mikey assentiu lentamente, como se tivesse esperado por isso.
— A coisa... falou comigo também.
— Não foi um sussurro, nem uma fumaça. Era eu. — Gerard disse, tentando manter a compostura.
Mikey o encarou com uma expressão tranquila, como se já soubesse o que ele estava descrevendo. Não parecia surpreso nem preocupado — e algo em seu olhar dizia que já havia lidado com aquilo antes.
— Porque ele é parte de você. Assim como as vozes que escuto fazem parte de mim — disse suavemente. — Você sempre negou, sempre tentou ignorar, mas a verdade é que nós temos esse dom. Desde crianças. Você só não quis enxergar.
Gerard engoliu em seco. No fundo, sempre soubera que havia algo de diferente. Algo que não conseguia controlar — algo que Mikey parecia dominar com naturalidade.
— Isso sempre esteve comigo?
— Desde sempre — confirmou Mikey. — Mas... por algum motivo, eles são sensíveis. Não gostam de ser ignorados. E você os reprimiu, Gerard. Sempre lutou contra isso. Tentou esquecer, ignorar... mas eles nunca foram embora. Eu aceitei os meus, e por isso consigo ouvir e ver o que os outros não conseguem.
Gerard sentiu um arrepio. A ideia de que aquela figura era uma parte dele o incomodava. Forçou-se a manter o olhar firme no irmão.
— E como isso funciona, exatamente? Como você... usa essa coisa?
Sua voz saiu mais ríspida do que pretendia.
Mikey se recostou na cadeira, pensativo.
— É engraçado a gente não ter como nomear uma coisa que não entende — sorriu, calmo. — Mas gosto de pensar que é uma extensão do que você sente, do que sabe, do que precisa. Não é um espírito, nem um fantasma. É sua consciência tentando te guiar.
Gerard apertou os punhos.
— E você já passou por isso? Já viu... você mesmo?
Mikey assentiu, um pequeno sorriso surgindo no canto dos lábios.
— Sim. No começo, era estranho. Assustador até. Mas depois percebi que era minha forma de processar o que eu não queria enfrentar de outro jeito. — Ele se inclinou para frente, encarando Gerard com intensidade. — Não é um poder sobrenatural, Gerard. É o que sempre esteve dentro de nós.
Gerard esfregou o rosto, frustrado.
— E por que agora? Por que, depois de todos esses anos, isso está voltando?
Mikey suspirou.
— Porque você está precisando. Porque há algo que precisa saber, mas não quer admitir. A pergunta não é por que isso voltou. A pergunta é: você está pronto?
As palavras de Mikey pairaram no ar, pesadas. Gerard desviou o olhar, sentindo o cansaço pesar nos ombros. Queria negar tudo. Dizer que era loucura. Mas, no fundo, sabia que o irmão tinha razão.
Ficou em silêncio, digerindo tudo o que ouvira. Aceitar aquela presença — aceitar a si mesmo — dava medo. Mas também parecia inevitável. Sempre fugira disso. Sempre reprimira o que via, o que sentia.
E agora... com Frank desaparecido.
Se havia uma chance de descobrir o que aconteceu, talvez fosse hora de parar de lutar contra algo que sempre esteve ali.
Suspirou, passando as mãos pelos cabelos desgrenhados.
— E se eu não conseguir?
A voz soou mais frágil do que gostaria.
Mikey sorriu, compreensivo.
— Você já conseguiu antes. Só precisa parar de ter medo da resposta.
Gerard riu, seco, sem acreditar muito. Mas, no fundo, sabia que Mikey estava certo. Levantou-se e pegou o casaco.
— Vou tentar.
— Não force nada. Deixa acontecer — aconselhou Mikey. — E, se precisar... sabe onde me encontrar.
Gerard assentiu, hesitando por um segundo antes de sair.
— Obrigado, Mikey.
O irmão apenas sorriu, como se já soubesse que esse momento chegaria.
Gerard hesitou antes de sair pelo portão da rua. A ideia de voltar ao apartamento de Frank, cercado pelo olhar atento de Jamia e Bert, parecia sufocante. Ele precisava de silêncio. De espaço. De tempo para processar tudo, sem ser questionado.
Sem pensar muito, pegou o caminho de volta à casa paroquial. Destrancou a porta lateral e subiu até o quarto onde estava hospedado desde que saíra de Nova Jersey. Ao entrar, fechou a porta e respirou fundo.
O quarto era simples, quase impessoal. Mas agora parecia um refúgio.
Sentou-se na beira da cama, passando as mãos pelo rosto.
Mikey dissera que aquela presença era parte dele. Que precisava parar de resistir.
Gerard fechou os olhos.
Se era pra acontecer, que acontecesse ali.
Então, ele sentiu.
Um arrepio percorreu sua espinha, e o ar pareceu mais pesado — uma presença, não como algo externo, mas como se uma parte dele estivesse se desprendendo e se manifestando diante de seus olhos.
Quando ergueu o olhar... ele estava ali.
Chapter 11: A emboscada
Chapter Text
Ele nunca tinha visto aquilo daquela forma.
Sempre fora uma sombra, um vulto... mas, desta vez, a figura era idêntica a ele. Mesmo rosto, mesma postura abatida. Mas os olhos... os olhos eram um abismo. Não havia vida neles, apenas um buraco profundo. A pele estava mais pálida, quase cinzenta, drenada de qualquer traço de vitalidade. Os cabelos, sem corte, batiam nos ombros. Vestia as mesmas roupas de Gerard, mas desbotadas, como se tivessem sido lavadas tantas vezes que perderam a cor. A expressão era neutra. Calma.
A presença diante dele não se movia, não falava, apenas o encarava com aqueles olhos vazios, profundos como um poço sem fundo. Gerard engoliu em seco, sentindo um nó na garganta.
O silêncio era esmagador. O ar parecia pesado. Seu reflexo distorcido não demonstrava nada além de uma paciência inquietante, como se estivesse esperando.
Gerard passou a língua pelos lábios ressecados, tentando acalmar a respiração. Ele sabia o que precisava fazer.
— Me ajuda.
Sua voz saiu rouca, quase um sussurro, mas ecoou pelo quarto como se tivesse gritado.
A figura permaneceu imóvel. Nenhuma reação. Nenhum som.
— Eu não sei o que fazer — continuou, sentindo a frustração e o desespero se misturarem.
Ainda nada. Mas algo no ar mudou. Uma vibração sutil, como se a própria realidade tremesse ao redor deles. A aparição não se moveu de imediato, apenas o observou com um olhar de compreensão absoluta. E então, finalmente, falou — com uma voz que era sua, mas ao mesmo tempo, não era.
— Olá, Gerard.
O som da voz fez Gerard prender a respiração. Era sua própria voz, distorcida. A figura diante dele ainda não havia se movido, mas agora parecia mais presente, mais sólida. Ele sorriu.
— Oi? — Gerard repetiu, sem saber exatamente como reagir. Seu próprio reflexo falava com ele. Isso não fazia sentido. Mas depois de tudo que já tinha vivido, do que Mikey lhe dissera... talvez a lógica comum não se aplicasse mais.
A aparição inclinou levemente a cabeça, observando-o com paciência infinita.
— Você pediu ajuda — disse, com uma voz que carregava um eco estranho, como se viesse de dentro da mente de Gerard.
Ele assentiu, tentando não se deixar consumir pelo medo.
— Sim. Eu... eu preciso saber o que aconteceu com Frank. Preciso saber onde ele está.
A figura piscou devagar, como se ponderasse a resposta.
— Você já sabe.
Um arrepio gelado percorreu a espinha de Gerard. Sua mente protestou de imediato.
— Não sei... se soubesse...
A aparição deu um passo à frente. O movimento não foi brusco, mas o ar no quarto ficou mais denso.
— Você já esteve lá... Não consegue se lembrar?
Gerard sentiu a garganta secar.
— Já estive... lá? — A pergunta saiu num sussurro rouco. — Onde...?
A aparição não desviou o olhar. Os olhos — os mesmos que ele via no espelho todos os dias — transbordavam algo que Gerard não conseguia nomear.
— No lugar onde Frank está... — A voz ecoou como um murmúrio distante, um sussurro vindo de todos os lados ao mesmo tempo. — Você viu... mas não prestou atenção. Não agiu como um detetive.
A coisa falou com uma impaciência sutil.
— Você precisa voltar. Precisa olhar... e enxergar o que ignorou.
— Voltar...? — A voz de Gerard era um sussurro trêmulo. — Voltar pra onde?
A aparição se inclinou, os lábios quase tocando o ouvido dele ao sussurrar:
— Você só precisa pedir.
Dessa vez, a figura se moveu lentamente, como uma inquietação materializada. Gerard murmurou:
— Então me leve até lá.
A figura se aproximou até tocar sua têmpora. E Gerard foi puxado para trás.
A sensação foi quase física, como se uma força invisível o arrastasse. Ele tentou resistir, mas não teve forças. Sua visão começou a turvar, e o quarto desapareceu em um turbilhão de cores e formas distorcidas. O ar ficou denso, sufocante, e ele sentiu que estava sendo transportado para outro lugar.
De repente, a pressão sumiu. Gerard abriu os olhos e se viu em um ambiente diferente — sombrio, úmido, escuro.
— O que é isso? Onde estou? — ele perguntou, a voz reverberando no ar silencioso.
Gerard estava sozinho. Era como se tivesse sido arrancado de si mesmo e jogado num lugar completamente distinto. Estava num espaço abafado, com cheiro de ferrugem e decadência. Respirar era difícil. A sensação de imensidão ao redor o envolvia por completo.
Olhou ao redor, tentando entender onde estava. No início, sua visão estava embaçada, mas aos poucos a escuridão cedeu. As paredes de concreto, cobertas de ferrugem e sujeira, estavam rachadas, como se pudessem desabar a qualquer momento. O teto era alto demais para parecer real, com vigas de metal expostas e cordas penduradas, largadas ali há tanto tempo que pareciam esquecidas. O som de gotas caindo ecoava por toda parte, como uma sinfonia de abandono.
Gerard deu um passo à frente, vendo seu reflexo distorcido nas poças d'água do chão. O piso estava sujo, coberto de poeira e detritos, cercado de caixas de metal amassadas e pedaços quebrados de madeira. O ar ao redor vibrava com tensão, como se algo estivesse prestes a se revelar.
As sombras se moviam de forma quase viva, numa dança lenta e ameaçadora. Gerard sentiu um calafrio. Ele sabia que não estava sozinho. Havia algo ali — invisível, mas presente em cada canto. Na madeira que rangia, nas gotas que ecoavam, nos passos que pareciam surgir de lugar nenhum.
Após o que pareceu uma eternidade vagando pelo galpão, ele avistou uma figura. Algo observava. E o fazia sentir um nó no estômago.
À primeira vista, parecia uma sombra, mas, à medida que Gerard se aproximava, a imagem foi se tornando mais nítida. Seu coração acelerou ao reconhecer o que parecia ser Frank, mas algo estava errado. O corpo estava imóvel, sentado contra a parede de concreto, numa postura de quem estava totalmente esgotado, desfalecido.
— Frank?
Frank estava sujo, com os cabelos desgrenhados e a roupa rasgada. Parecia mais pálido do que o normal, com a respiração irregular. Gerard se ajoelhou ao lado dele, sentindo seu corpo tremer, não de frio, mas de uma emoção que não conseguia nomear.
— Frank? — ele perguntou novamente, com a voz mais suave, quase uma súplica.
Os olhos de Frank se abriram lentamente, como se ele tivesse perdido a esperança há muito tempo. Com esforço visível, levantou a mão e tentou colocá-la no peito de Gerard, mas as mãos atravessaram seu corpo. Ele não falou, mas Gerard podia sentir a força daquele gesto. O toque era pesado, frio e carregado de um cansaço imenso.
Então, em um sussurro quase inaudível, Frank falou:
— Me ajuda...
O som das palavras foi tão baixo que Gerard quase não conseguiu entender, mas a mensagem estava clara: ele precisava tirar Frank dali.
— Onde você está? — Gerard perguntou com urgência, a voz cheia de desespero. Tentou segurar a mão de Frank, tentando manter o contato, mas o corpo dele era como um fantasma, impossível de tocar ou segurar. Gerard precisava de respostas, precisava entender onde estavam e como sair dali.
Frank olhou para Gerard com uma expressão vazia, sem forças para responder. O corpo estava fraco, como se toda a vida tivesse sido drenada dele.
— Frank... — sussurrou Gerard. — Acorda.
Ele tentou manter o contato, mas antes que pudesse perguntar mais, viu os olhos do rapaz se fecharem lentamente. A mão de Frank, que antes tentava tocar seu peito, afundou novamente contra o chão com um suspiro pesado.
Frank tinha desmaiado, e a pressão no ar parecia aumentar, como se o próprio ambiente ficasse mais denso. Gerard sentiu uma sensação de pânico se espalhar, mas não podia ficar ali parado. Precisava saber onde estava, precisava entender o que acontecia.
Com esforço, afastou-se de Frank. O corpo dele permanecia em silêncio, mas Gerard sentia a tensão no ar, como se uma força invisível tentasse tirá-lo dali. Ele não tinha tempo a perder.
Gerard se levantou, tentando se manter firme. Olhou ao redor, procurando alguma pista do local onde estavam. A escuridão era quase total, mas algumas luzes fracas e sujas filtravam-se pelas fendas no teto. Ele começou a caminhar cautelosamente, sem saber exatamente o que buscava. O chão rangia sob seus pés enquanto avançava, e as paredes ao redor estavam sujas e cobertas de mofo — um ambiente claustrofóbico e sufocante.
Havia várias portas enferrujadas e janelas quebradas, mas nada indicava uma saída clara. Ele tentou olhar pelas fendas das portas, mas só viu escuridão.
A cada passo, Gerard sentia uma inquietação crescente. Estava preso, mas onde? E, o mais importante, como sair dali? Seu único objetivo agora era encontrar uma saída e, se tivesse sorte, tirar Frank dali com vida.
Uma porta velha, uma das espalhadas pelo galpão, estava ligeiramente entreaberta. Gerard se aproximou silenciosamente, estendendo a mão contra o metal enferrujado e, com incredulidade, passou pela porta sem movê-la. Um rangido baixíssimo ecoou, mas não o suficiente para alertar qualquer presença.
Do outro lado, a escuridão dava lugar a uma visão mais ampla. Gerard avançou com cautela e logo percebeu que não estava sozinho. A alguns metros, perto do que parecia o portão do galpão, havia um grupo de homens — capangas, provavelmente — reunidos em vigília.
Gerard se escondeu atrás de uma parede, observando-os. Eles conversavam em tons baixos, mas Gerard conseguiu captar fragmentos. Ele se abaixou mais, tentando se ocultar nas sombras para não ser visto. A conversa dos capangas se intensificava, mas o tom havia mudado. Não falavam mais de uma missão cumprida com eficiência, e sim de abandonar tudo. A tensão no ar ficava palpável, deixando Gerard ainda mais apreensivo.
— Eu não sei, cara... — murmurou uma voz nervosa, quase relutante. — Eu não quero fazer parte disso. Matar o Frank... é demais. Eu não tô aqui pra isso.
Gerard franziu a testa, o coração batendo forte. O que estavam planejando fazer com Frank? Por que alguém estava tão reticente?
— Você está louco, né? — respondeu outra voz, mais firme. — Abandonar a missão agora? O chefe vai nos matar. Se você virar as costas, quem vai sair morto daqui é você, não eu. Se ele descobrir que a gente não terminou o que começou...
Houve uma pausa. O silêncio pesado tomou conta por segundos, até que o homem que falou primeiro respondeu, com voz baixa e carregada de medo:
— Eu não posso mais fazer isso... se ele morrer.
A figura mais firme riu com tom amargo, quase sardônico.
— Não tem mais volta, entendeu? Se você sair agora, quem vai pagar por isso é você. O chefe não perdoa quem falha. — A ameaça pairou no ar, carregada de tensão palpável. — Você não tem escolha. Nem você, nem eu.
Gerard sentiu o estômago revirar com o que ouvia. O que quer que estivesse acontecendo, havia uma ameaça real sobre Frank. Havia indecisão entre os capangas, mas, ao mesmo tempo, a ameaça de uma morte iminente pairava no ar.
Gerard saiu das sombras como um predador, seus passos firmes ecoando no ambiente abafado. Os capangas congelaram, olhos arregalados enquanto o observavam se aproximar. O sangue pareceu drenar dos rostos deles, expressões oscilando entre descrença e puro terror.
— Que... que merda é essa? — gaguejou um deles, a voz trêmula enquanto dava um passo para trás e batia contra a parede.
— Vocês estão vendo isso? — outro capanga levou a mão ao peito, tentando conter o coração disparado.
Os capangas não esperaram por mais nada. Os olhos arregalados, a respiração ofegante, como se o próprio ar estivesse preso em seus pulmões. Um deles tropeçou para trás, derrubando uma cadeira que caiu com um estrondo no chão. O outro mal conseguiu conter um grito sufocado, a voz trêmula escapando de seus lábios:
— É um fantasma!
O pânico foi instantâneo. Eles se empurraram na pressa descoordenada de escapar, esbarrando nas paredes estreitas enquanto tentavam alcançar a porta. Um deles perdeu o equilíbrio e quase caiu de joelhos, mas se ergueu com um movimento desajeitado, os olhos ainda fixos em Gerard como se ele fosse uma aparição saída diretamente de um pesadelo.
O som apressado de passos ecoou enquanto corriam pelo corredor estreito, tropeçando em seus próprios pés na tentativa desesperada de escapar daquela visão. Um deles se virou para olhar uma última vez — o rosto branco como papel, os olhos vidrados de puro terror. O silêncio se espalhou pelo local, pesado e denso, deixando apenas Gerard parado ali, imóvel como uma estátua. A sombra em seu rosto escondia suas emoções, mas seus olhos brilhavam com uma determinação fria.
Assim que o último eco dos passos apavorados desapareceu, Gerard permitiu-se soltar a respiração que nem percebera estar segurando. Olhou ao redor, os sentidos ainda em alerta máximo, atento a qualquer ruído que pudesse indicar um retorno inesperado.
O local estava imerso em penumbra, as sombras se esticando pelas paredes descascadas e o chão de concreto manchado pelo tempo. Era um depósito abandonado, úmido e abafado, com um cheiro forte de mofo e ferrugem. Caixas de madeira empilhadas ao acaso formavam corredores estreitos, criando um labirinto claustrofóbico.
Gerard caminhou devagar, os passos silenciosos enquanto se aproximava da mesa onde os capangas estavam reunidos antes de fugirem. A superfície estava desorganizada, coberta de papéis amassados, bitucas de cigarro e copos descartáveis. Ele folheou as folhas espalhadas, os olhos treinados capturando detalhes rapidamente: anotações ilegíveis, números de telefone sem identificação, rabiscos que pareciam mapas de ruas. Guardou o papel no bolso, mantendo a mente focada, apesar da aceleração em seu peito.
Continuou a vasculhar o local. Afastando algumas caixas, percebeu uma logo: Falcon Security.
Tentou se lembrar de onde conhecia aquele nome. Uma sensação de urgência tomou conta dele. Não havia mais tempo a perder.
"Eu preciso sair daqui", pensou Gerard.
O puxão que antes sentia nas costas se intensificou. O ambiente ao redor distorceu-se, como se a realidade estivesse se curvando sobre si. O som abafado das vozes desapareceu, e tudo ao seu redor se desfez — como se nunca tivesse existido.
Os ecos do ambiente anterior ainda ecoavam em sua mente, mas quando abriu os olhos, tudo parecia calmo demais. O cheiro de ferrugem ainda impregnava suas narinas. Em um instante, estava de volta ao quarto paroquial. Desta vez, sozinho. No mesmo estado em que o deixou — mas agora, sabia o que precisava ser feito.
Gerard deu um pulo da cama e colocou a mão no bolso. O mapa estava com ele.
Pegou rapidamente o telefone e ligou para Ray, que atendeu prontamente:
— Eu ia te ligar agora... — disse Ray, imediatamente. — O plano já está em ação. Me encontre no banco. Em algumas horas, pegaremos o rato.
A linha ficou muda antes que Gerard pudesse responder. Permaneceu parado por um momento, absorvendo as palavras. A espera havia acabado. Era hora de agir.
Saiu da paróquia a passos rápidos, o ar frio da manhã mordiscando sua pele enquanto descia os degraus de pedra. O céu estava cinza, pesado, como se anunciasse uma tempestade iminente. Ao chegar ao carro, destravou as portas com um bip agudo, deslizando para o banco do motorista com um movimento fluido e decidido.
Suas mãos estavam firmes no volante enquanto digitava o nome do banco no GPS. A rota apareceu na tela com uma linha azul serpenteando pelas ruas da cidade. Ele apertou o pedal do acelerador, sentindo o motor roncar em resposta. A velocidade aumentou, o velocímetro subindo enquanto Gerard desviava habilmente entre os carros — a cidade passando por ele como um borrão.
Ao chegar ao banco, estacionou na rua lateral, onde a luz pálida do sol mal alcançava. O prédio de pedra parecia imponente, suas colunas antigas lançando sombras que se alongavam pela calçada. Gerard saiu do carro, fechando a porta com um estalo decidido, e caminhou até um beco estreito ao lado do banco, onde Ray já o aguardava.
Ray estava de pé, encostado na parede, uma perna dobrada apoiada contra o tijolo áspero. Usava óculos escuros que escondiam seus olhos, mas a tensão em sua postura era evidente. Os cabelos enrolados estavam presos em um coque baixo, algumas mechas rebeldes escapando ao redor da nuca. O suspensório preto sobre a camisa social clara acentuava seus ombros largos, dando-lhe um ar de elegância casual — e autoridade.
Quando Gerard se aproximou, Ray afastou-se da parede, os sapatos polidos raspando levemente na calçada. Sem dizer uma palavra, tirou os óculos escuros, revelando um olhar penetrante e determinado. Seus olhos buscaram os de Gerard — uma troca silenciosa de entendimento passou entre eles — até que Ray finalmente falou, com a voz baixa e controlada:
— Tudo pronto. Vamos pegar esse desgraçado hoje.
Esperaram por algumas horas, observando cada movimento do prédio à frente. O local era luxuoso, no coração de Manhattan. A rua estava movimentada, alguns carros estacionados ao redor, enquanto uma leve brisa espalhava folhas secas pela calçada.
Do outro lado da rua, Gerard estava sentado em um banco de madeira velha, parcialmente descascada, como se o tempo tivesse arrancado suas camadas uma a uma. Mantinha uma postura relaxada, uma perna cruzada sobre a outra, segurando um jornal aberto nas mãos. Seus olhos, no entanto, se moviam com precisão, espiando por cima da borda do papel, atento a qualquer atividade suspeita. A manchete na capa era irrelevante; o jornal não passava de um disfarce cuidadosamente escolhido.
No ouvido direito, um ponto discreto estava preso de forma quase imperceptível, escondido pelo cabelo desalinhado. O aparelho fazia contato direto com Ray, cuja voz surgia baixa e rouca no canal de comunicação. Ray estava a poucos metros dali, dentro de um carro preto com vidros fumê escuros o suficiente para esconder qualquer indício de sua presença. O motor estava desligado, e o veículo se misturava ao cenário urbano, inofensivo para qualquer um que não soubesse o que realmente acontecia ali.
De seu posto, Ray tinha uma visão estratégica da entrada lateral do prédio. Estava atento, os dedos tamborilando levemente no volante, enquanto os olhos corriam de um lado para o outro, verificando os espelhos retrovisores. O rádio no painel emitia um leve brilho, mostrando o horário que avançava lentamente, aumentando a tensão do momento.
O silêncio no ponto foi quebrado pela voz de Ray, quase num sussurro:
— Nada ainda. Você vê algo daí?
Gerard permaneceu imóvel, virando levemente a página do jornal para manter o disfarce. Respondeu com o tom controlado:
— Negativo. Tudo quieto demais.
A brisa fria sacudiu as folhas das árvores próximas, trazendo um arrepio que correu pela espinha de Gerard. Algo estava errado, mas ele não conseguia identificar o quê. O instinto de policial falava mais alto — o mesmo instinto que o manteve vivo em situações muito piores. Eles continuaram esperando, imersos na tensão invisível que permeava o ar, prontos para agir ao menor sinal de movimento.
Ray estava em silêncio absoluto, os olhos fixos através do vidro fumê, aguardando qualquer sinal que indicasse que o jogo estava prestes a começar. Ele respirava calmamente, embora a tensão fosse palpável. Cada som parecia amplificado, como se o mundo tivesse diminuído de tamanho, reduzido ao espaço que ele observava.
Foi então que ele viu: Anthony Green surgiu do outro lado da rua, sua figura emergindo de um carro recém-estacionado, como uma presença que não queria ser notada, mas que inevitavelmente seria. Ray observou cada detalhe, o modo como Anthony se aproximava do banco, os passos calculados e silenciosos, como se soubesse que estava sendo vigiado, mas tentasse disfarçar.
Anthony parou por um momento, deixando a rua num silêncio inquietante, enquanto olhava ao redor. Seus olhos percorriam o cenário com precisão, a cabeça virando ligeiramente para observar os edifícios e vielas, como se verificasse se alguém o seguia. Estava em alerta. Não havia dúvida de que sabia o que estava fazendo.
Mas o que chamou ainda mais a atenção de Ray foi o que aconteceu a seguir. De onde Anthony se aproximava, dois homens surgiram. Estavam discretos, mas em posição de vigilância. Suas figuras imponentes bloqueavam o caminho sem parecerem deslocadas. Não estavam ali para entrar, estavam ali para garantir que ninguém mais o fizesse.
Anthony deu um último olhar furtivo ao redor e, com expressão fechada e resoluta, caminhou até os dois homens. Não houve hesitação. Um simples aceno de cabeça e um gesto sutil mostravam que se conheciam. Os guardas, por sua vez, não disseram nada — apenas o acompanharam, como sombras. Quando chegaram à entrada lateral do prédio, tomaram posição, com semblantes que diziam que ninguém mais passaria dali.
— O rato mordeu a isca — Ray sussurrou no ponto de Gerard, e ele sabia exatamente o que precisava fazer. — Vão.
Gerard se levantou do banco com a leveza de quem já estava completamente focado. Olhou ao redor, olhos atentos a qualquer movimento. A rua ainda estava silenciosa, porém movimentada. Quando deu o primeiro passo em direção ao beco, Ray observou, olhos fixos no ponto onde ele desapareceria. Sabia que Gerard tinha habilidade para se infiltrar sem ser percebido.
A calçada estava vazia, exceto pelo som baixo dos passos de Gerard. Ele atravessou a rua com calma calculada, movendo-se com a confiança de quem já enfrentou o perigo. Chegou à entrada lateral, onde os dois seguranças estavam posicionados. Sem hesitar, se aproximou.
Os homens mantinham uma postura rígida, olhares alertas. Trocaram olhares por um instante, decidindo quem tomaria a frente. Mas Gerard não lhes deu tempo. Ao se aproximar, o mais alto falou, com tom seco:
— A entrada está fechada.
Gerard parou a poucos passos deles, olhar sério, mas sem se intimidar. Ergueu uma sobrancelha, como se aquela fosse a última coisa que esperava ouvir. Sua voz foi suave, mas firme:
—Sério? Eu acho que não.
A surpresa na fala foi deliberada, uma armadilha para desconcertá-los. Gerard não estava ali para discutir. Seu olhar era afiado, calculando cada reação deles. Os seguranças se entreolharam, incertos. Era uma reação comum: incredulidade, seguida pela tentativa de manter a autoridade.
O som de passos rápidos ecoou pela rua. A calmaria foi rompida quando uma viatura surgiu na esquina, seguida por mais dois carros. Sirenes desligadas, mas luzes azuis e vermelhas iluminando o beco. Pneus raspando na calçada, anunciando reforços. Ray observava tudo, com um leve sorriso: a operação seguia como planejado.
Gerard, diante dos seguranças, não mostrou surpresa. Sabia que essa era a hora exata. Os guardas se agitaram. O mais alto lançou um olhar de dúvida ao outro, mas a chegada das viaturas não deixava alternativas.
Os carros bloquearam a entrada. Portas se abriram e policiais saíram com rapidez, mãos nas armas. Gerard puxou a dele da cintura, apontando:
— Mãos na cabeça.
O segurança mais velho olhou para os outros com expressão de derrota. Respirou fundo, trocando olhares com os companheiros, e ergueu as mãos. O mais jovem o imitou, desesperado.
— Tudo bem, tudo bem... já perdi — disse o mais velho, voz baixa e resignada.
Os policiais avançaram com cautela, abordando os guardas, pedindo que se afastassem. As mãos foram algemadas com precisão. Um policial fazia perguntas, outro vigiava o prédio. A ação foi rápida e silenciosa, quase ensaiada.
Gerard, confiante, entrou sem hesitar. Não olhou para trás, não buscou aprovação. Seu olhar fixava-se no interior do prédio. Seus passos ecoavam, aumentando o peso do silêncio. Enquanto isso, os policiais cercavam o edifício. Alguns revistavam os seguranças, outros subiam pela escada lateral. O prédio parecia conter a respiração, prestes a ser desmascarado. Funcionários e civis estavam recuados em um canto, assustados.
O som dos passos de Gerard reverberava pelo corredor enquanto se aproximava da escada. A tensão era densa. Com a arma em punho, olhar determinado, avançava. Os policiais o guiavam, autorizando sua entrada e garantindo que não houvesse surpresas.
O corredor estava silencioso. Nenhuma reação dos seguranças. Gerard alcançou a porta do cofre social, girou a maçaneta. A porta se abriu com um som metálico. O cofre parecia um galpão, repleto de armários trancados por chave. Mas o que chamou sua atenção foi a figura à frente.
Anthony Green estava lá, em pé. A postura era tensa, o olhar surpreso.
Ao seu lado, o gerente do banco — um homem nervoso, mãos trêmulas, entregando uma chave a Green. Ao ver Gerard, não demonstrou medo. Apenas uma calma fria, como se soubesse que o confronto era inevitável.
Gerard não perdeu tempo. Sua voz cortou o ar, fria e severa:
— Capitão Anthony Green?
O nome parecia pesar no ambiente. Gerard avançou um passo. A arma estava à vista, mas ainda não apontada diretamente. O tom não deixava espaço para dúvida. Green sabia: tinha sido emboscado. O gerente deu um passo para trás, como se quisesse desaparecer, mas não havia mais para onde correr.
— Você está preso por ser cúmplice no sequestro de Frank Iero.
Chapter 12: O atentado
Notes:
✨ Mensagem da autora ✨
Oi, leitores lindos!
Antes de mais nada, eu queria agradecer de coração a cada pessoa que está acompanhando essa fanfic. Sei que os capítulos às vezes demoram um pouquinho pra sair (a vida acontece, né?), mas o carinho, a paciência e os comentários de vocês são o combustível que mantém essa história viva. Obrigada por estarem aqui, por confiarem no que estou construindo, e por se importarem com o destino de Gerard, Frank, Bert e Jamia e todos os outros personagens malucos que moram na minha cabeça.E falando em emoções... MEU DEUS, O SHOW DO MY CHEMICAL ROMANCE NO BRASIL!!!
Ainda tô processando tudo isso sem acreditar! Vocês conseguiram ingresso? Como foi a experiência de vocês???Enfim, obrigada por tudo. A história continua com mais alguns capítulos!
Com amor,
Ana (emo metaleira) 🖤✨
Chapter Text
— Sequestro? Frank? — Green começou, a voz suave, mas repleta de ironia. — Não faço ideia do que você está falando.
Gerard franziu a testa, seus olhos faiscando com uma mistura de irritação e cansaço. Ele sabia que Green estava tentando jogar o jogo da negação, tentando desviar a atenção.
Gerard não estava mais disposto a perder tempo com palavras vazias. Seu rosto estava duro, seus olhos fixos e implacáveis. Ele avançou com uma intensidade que poderia cortar qualquer resistência. A voz dele soou como uma lâmina afiada, cortando o silêncio que preenchia o ambiente:
— Eu poderia te arrebentar agora mesmo. — A voz de Gerard saiu cortante, e ressoava em todo o ambiente. Cada palavra daquela frase saiu como uma promessa. Ele levantou o punho, a força e a raiva acumuladas ao longo dos últimos dias agora canalizadas em cada músculo de seu corpo. — Posso fazer parecer que você tropeçou da escada.
Gerard não hesitou. A ameaça, tão simples e direta, ecoava no ar. O olhar de Green, desafiador e arrogante, parecia tentar medir a determinação de Gerard. A expressão de Green se manteve impassível, mas Gerard continuou:
— Onde está Frank?
— Eu não faço id...
Gerard não lhe deu tempo para reagir. Quando Green abriu a boca para mais uma de suas mentiras, Gerard deu um soco direto no estômago de Green, o impacto fazendo o capitão se curvar imediatamente, os olhos arregalados pela dor súbita.
O som do soco ecoou pela sala, e o corpo de Green, que até aquele momento estava imponente e desafiador, agora estava dobrado pela força do golpe. Gerard observou o homem se contorcer, não com pena, mas com a certeza de que as respostas estavam mais próximas agora do que nunca.
A dor ainda tomava conta de Green, sua respiração estava curta e irregular, mas ele tentou recuperar a compostura, forçando-se a ficar de pé. Seus olhos estavam mais alerta agora, mas a raiva e o medo começavam a transparecer.
Gerard se inclinou um pouco mais para frente, o olhar fixo e impiedoso. Gerard não havia terminado. Ele não deixaria Green sair do cofre sem soltar alguma informação. Os policiais ao redor mantinham a postura, os olhos inexpressivos. O comportamento de Gerard, decidido e implacável, já era esperado. Eles estavam prontos para seguir as ordens, seja qual fosse o próximo movimento de Gerard.
Green, com esforço, se recompôs, afastando-se da dor ainda latente em seu estômago. Ele tentou se manter firme, mas o corpo dele traía seus instintos. Ele sabia que a situação não era mais controlável. As mentiras já não tinham mais valor ali.
Gerard, sem perder tempo, tirou o mapa do bolso com um movimento preciso e calculado. Ele estendeu o papel em frente ao capitão, desdobrando-o de maneira imponente. O mapa estava repleto de marcações, rotas e detalhes, mas o que importava agora era a reação de Green.
— Vamos tentar de novo... — Gerard repetiu, sua voz mais baixa. — Você reconhece isso?
— A... porra de um mapa de Nova Iorque. — Anthony rangeu os dentes.
Gerard soltou um sorriso irônico, a frieza em seu olhar não deixou dúvidas de que ele estava controlando a situação. Ele virou o mapa nas mãos com um movimento rápido e sem pressa, como se estivesse se divertindo com o jogo psicológico.
— Menino esperto. — Gerard zombou, seu tom debochado e cortante. Ele se inclinou mais para frente, como um predador que está prestes a abocanhar sua presa. A pressão era tanta que parecia que o ar estava pesando mais. — Agora aponta onde o Frank está antes que você quebre o dedo sem querer.
Os olhos de Gerard não desviaram um milímetro. Ele ainda segurava o mapa com firmeza, aguardando a reação de Green. O capitão, embora suprimisse um tremor involuntário, sabia que não podia mais escapar. Gerard estava no controle agora, e ele tinha um método infalível de fazer as pessoas falarem.
Green sabia que qualquer tentativa de resistir seria inútil. O corpo dele tremia imperceptivelmente, e ele, finalmente, apontou para uma área específica do mapa, a mão hesitante, mas sem outra escolha. O som do dedo tocando o papel parecia uma sentença.
— Aqui. — Green disse, sua voz rouca e relutante.
O dedo de Green tremia levemente ao tocar o ponto marcado no mapa, e Gerard seguiu o movimento com o olhar,. A área que o capitão indicava era a região portuária de Nova Iorque, uma parte da cidade que era conhecido pela frenética movimentação de mercadorias, galpões de carga e descarga de navios. Uma área não exatamente pacífica, onde o crime poderia se esconder facilmente nas sombras entre os contêineres e as vielas escuras.
Gerard fitou o local marcado. O lugar era vasto e repleto de entradas e saídas, um verdadeiro labirinto de galpões e depósitos, perfeito para esconder qualquer coisa... ou qualquer pessoa. Ele sentiu a adrenalina crescendo, a sensação de que estava mais perto de encontrar Frank, de finalmente trazer respostas para o mistério, era palpável, mas a frieza da situação não deixava espaço para comemorações. Ele sabia que a missão agora seria mais perigosa do que nunca. Se Frank estivesse ali, escondido entre os galpões, teria que ser cauteloso. O tempo estava contra ele e, embora as respostas estivessem se aproximando.
Ele manteve os olhos fixos no mapa por um momento, absorvendo cada detalhe da localização.
— Porto...
Gerard murmurou para si, e tudo fez sentido. O galpão abandonado, o barulho de água caindo, o cheiro de ferrugem. Era o local onde o Frank estava. Ele fechou o mapa e guardou de volta no bolso, a expressão impassível, mas a tensão visível nos músculos de seu corpo. A região portuária de Nova Iorque seria seu próximo destino.
Com um aceno imperceptível para os policiais, que já estavam prontos para agir, deram um passo à frente, cercando Green com rapidez. Eles não perderam tempo, aproximando-se de Green com uma firmeza que não deixava brecha para escape. As algemas eram colocadas em seus pulsos, apertadas para garantir que ele não tivesse mais espaço para reagir.
Green ainda tentou manter alguma dignidade, sua postura rígida, Gerard observou tudo com a calma implacável. Ele deu um breve aceno aos policiais, sinalizando que agora eles tomavam conta de Green, e se afastou sem olhar para trás. O trabalho estava feito. Não havia mais nada ali que ele precisasse testemunhar. Ele virou as costas para o prédio, saindo com a mesma determinação fria que o acompanhou desde o início.
Ele encontrou Ray, que estava do lado de fora coordenando os policiais. Assim que viu Gerard se aproximar, sua atenção se focou totalmente nele.
Sem perder tempo, Gerard falou com voz baixa:
— Frank está na região portuária.
As palavras saíram diretas. Ray assentiu rapidamente, seus olhos firmes e concentrados. Ele não fazia perguntas, pois sabia que Gerard tinha o controle da situação. Sem perder tempo, Ray começou a dar ordens aos policiais ao redor, organizando a movimentação para garantir que a operação na região portuária fosse a mais eficaz possível. Gerard parou por um momento, seus olhos fixos em Ray, antes de dar um passo à frente, interrompendo a ordem que estava sendo dada.
— Não. — A palavra saiu cortante, interrompendo qualquer plano que Ray estivesse prestes a colocar em ação. Gerard olhou diretamente para o seu parceiro, os olhos firmes e cheios de determinação. — Vou sozinho.
Ray franziu o cenho, surpreso com a postura abrupta de Gerard. Ele sabia que Gerard era impulsivo, mas essa decisão parecia arriscada demais, até para ele.
— Gerard, você sabe que não pode ir sozinho. A região portuária é uma armadilha. Precisamos de apoio. — Ray tentou argumentar, sua voz carregada de preocupação.
Mas Gerard não estava mais disposto a ouvir.
— Não é questão de apoio, Ray. É questão de tempo. — Gerard respondeu, a voz carregada de uma frieza resoluta. — Não posso esperar pela burocracia da polícia agora. Frank está lá, correndo perigo, e eu vou encontrá-lo antes que qualquer outra coisa aconteça.
Ray sabia que, quando Gerard decidia, era quase impossível dissuadi-lo. A operação policial seria um atraso, ele sabia. O tom de voz de Gerard não deixava espaço para negociação, e por mais que estivesse relutante, ele sabia que seria inútil tentar impedir.
— Você vai se matar assim, Gerard. — Ray resmungou, mas não havia como mudar a decisão do delegado. Ele só podia olhar enquanto Gerard, com o mapa ainda na mão, começava a se afastar, caminhando com a mesma postura determinada e focada.
Gerard se virou um último momento antes de seguir seu caminho. Seus olhos se fixaram em Ray, sem qualquer sinal de dúvida ou hesitação.
— Cuide de Green. Eu cuido do Frank.
Gerard dirigia pelas ruas movimentadas de Nova Iorque. O carro deslizou pelas ruas com uma precisão silenciosa, ele segurava o volante com firmeza, os dedos brancos pela pressão, mas seu olhar estava fixo na estrada à frente, determinado e implacável. Ele estava sozinho agora, afastado de tudo o que era familiar. A cidade parecia estar em um ritmo diferente para ele, tudo à sua volta borrado, mas o único foco era o destino que o chamava — a região portuária.
Enquanto ele avançava pela estrada, seu pensamento estava claro, concentrado somente no que estava por vir. A região portuária não era um lugar para heróis ou polícia; era um lugar sombrio, onde o crime se escondia. Ele sabia que tinha poucas opções e muito pouco tempo, mas não podia deixar o destino de Frank ser selado pela burocracia ou por qualquer operação.
As ruas foram ficando cada vez mais desertas e sombrias, com o brilho das luzes da cidade diminuindo à medida que ele se aproximava da área industrial. O som de seus pneus tocando o asfalto parecia mais alto, o carro mais pesado. A silhueta dos galpões de carga apareceu à distância, uma massa escura, imensa e desordenada, iluminada somente por algumas lâmpadas fracas, piscando aqui e ali. O cheiro do mar misturado com a maresia e a umidade dos galpões entrava pela janela entreaberta.
Ele entrou na área portuária, com seus olhos atentos a cada detalhe. Havia um silêncio estranho ali, uma quietude que fazia os galpões ainda mais ameaçadores. As ruas estavam vazias, mas os rastros de caminhões e os contêineres empilhados por todo lado falavam de uma movimentação constante, embora agora abandonada. Gerard respirou fundo, os músculos tensos, cada fibra de seu corpo ciente do perigo. A sensação de que Frank poderia estar ali, escondido entre aqueles galpões, entre as sombras, o fazia apertar ainda mais o volante.
Ele desacelerou o carro, agora completamente imerso no cenário sombrio da região portuária. Ele estacionou em um ponto mais isolado, perto de um galpão desativado. O som do motor desligando ecoou no espaço. Gerard saiu do carro com um movimento preciso e controlado. Ele olhou ao redor, já ciente de que o perigo podia estar a qualquer esquina, mas a única coisa que seu coração dizia era que Frank estava ali.
Com a arma em punho e o olhar fixo, Gerard começou a caminhar em direção ao galpão abandonado e empurrou o portão com uma força controlada, o som metálico ecoando na escuridão. O cheiro de umidade e metal enferrujado o envolveu instantaneamente, os olhos ajustando-se à pouca luz que vinha de algumas lâmpadas flutuantes que pareciam falhar a cada segundo. O lugar estava quase imerso na penumbra, exceto por algumas rachaduras nas paredes e nas janelas, que permitiam um leve raio de luz entrar, mas mal era suficiente para iluminar o espaço.
Cada passo de Gerard ressoava no concreto. O chão estava coberto por uma fina camada de poeira, e o eco de seus passos parecia amplificado pela vastidão do lugar, como se o próprio galpão estivesse vivo, observando-o, esperando.
À medida que ele avançava, Gerard sentiu uma onda de familiaridade invadir seu peito. A estrutura do galpão, os pilões de madeira empilhados, a claraboia, o cheiro do ambiente... tudo parecia já ter sido vivido por ele. O coração acelerou quando ele olhou para um canto do galpão, perto de uma pilha de caixas empilhadas desordenadamente. Seus olhos fixaram-se no espaço vazio à frente, como se fosse uma imagem surgindo da memória, ele se lembrou. Este era o galpão. O mesmo galpão que ele havia visto em seus sonhos, aquele lugar sombrio e silencioso, com as paredes de concreto descascando e as luzes tremeluzindo.
Ele avançou com mais cautela agora, os músculos tensos, a sensação de que estava sendo observado mais intensa do que nunca.
Caminhou em direção ao fundo do galpão, a sensação de déjà-vu se aumentando.
Ao chegar perto de uma das pilastras, algo captou sua atenção. Gerard se abaixou, os dedos trêmulos tocando uma corda frouxa que jazia no chão. Gerard reconheceu imediatamente o lugar em que Frank esteve.
— Droga... — Gerard murmurou.
Ele chegou tarde demais. Frank não estava mais ali.
Gerard se abaixou, os dedos tocando a corda frouxa que jazia no chão, como uma evidência silenciosa de que alguém tinha sido amarrado ali, talvez com as mesmas esperanças de que a situação fosse temporária. A corda, agora inútil, parecia quase zombar da sua frustração. Ele a apertou entre os dedos, tentando sentir algo que desse sentido ao caos que se desenrolava em sua mente. A sensação de ter chegado tarde demais o invadiu como uma onda fria, mas ele se forçou a ignorá-la. Não havia tempo para desistir. Frank poderia ainda estar por ali, escondido em algum lugar.
Com um movimento abrupto, Gerard se afastou da pilastra e se levantou, os olhos vasculhando rapidamente cada canto do galpão. O cheiro de mofo e a umidade faziam o ar denso e pegajoso. Ele se moveu mais rápido, seu olhar treinado por anos de experiência tentando captar qualquer pista que pudesse ter sido deixada para trás.
A luminosidade das frestas acima iluminava somente partes do galpão, criando sombras que dificultavam distinguir o que era real e o que era uma ilusão causada pela tensão. Gerard caminhou por entre as pilastras, os olhos fixos no chão enquanto vasculhava o espaço ao seu redor.
Em um canto mais afastado, um brilho chamou sua atenção. Não era forte, mas suficiente para se destacar na escuridão. Ele parou, seu coração acelerando com a possibilidade de algo importante. Com os músculos tensos e os olhos fixos, ele se agachou.
Ali, entre pilhas de caixas quebradas e papéis espalhados no chão, estava um pequeno pendrive, meio escondido. Ele estava preso a uma corda, quase imperceptível a olhos destreinados, como se tivesse sido cuidadosamente colocado para passar despercebido. Gerard, com a respiração contida, estendeu a mão e o puxou suavemente. Mas no instante em que seus dedos tocaram o objeto, algo aconteceu. Um choque repentino, uma sensação indescritível, de repente, ele foi puxado para trás, como se estivesse sendo arrastado por uma força invisível.
O mundo ao redor dele distorceu. O galpão, as sombras, tudo sumiu em um piscar de olhos. Gerard piscou, tentando entender o que estava acontecendo. Ele se viu de repente no apartamento de Frank, o lugar familiar onde ele passou dois dias com Bert e Jamia. A luz suave da sala iluminava o rosto de Frank, que estava em pé, digitando apressadamente em um pequeno celular com teclas. Seus dedos se moviam rapidamente, seu olhar fixo na tela, mas quando ele olhou para cima, Gerard viu um sorriso passar por seus lábios, como se estivesse recebendo alguma boa notícia.
Frank guardou o celular com um sorriso discreto e, então, pegou o pendrive em cima da mesa, passando-o por seu pescoço. Gerard tentou se mover, mas estava preso naquele momento, como se estivesse preso em uma memória. Frank parecia alheio à sua presença, mas sua mente estava absorvendo cada detalhe.
O ambiente mudou novamente, e Gerard foi transportado de novo. Agora, ele estava de volta ao galpão, mas algo estava errado. Ele viu dois homens sóbrios e impassíveis, segurando Frank pelos braços. O corpo de Frank estava pendido, seu rosto caído e marcado pela dor. Os capangas o arrastaram até a pilastra, suas mãos já estavam amarradas antes dele ser deixado ali. Gerard sentiu um nó na garganta ao ver a cena, mas não podia desviar os olhos.
Quando os homens se afastaram, Frank, ainda desnorteado, se reergueu lentamente. Sua têmpora sangrava, gotas escorriam do seu queixo.
Ele olhou ao redor, vendo se alguém o observava. Sem emitir um som, Frank cuspiu o pendrive no próprio colo. Gerard não entendia, mas viu o gesto claramente. Frank segurou o pendrive diante de seu corpo, como se o objeto fosse uma última tentativa de resistir, como se fosse a única coisa que ainda possuía naquele momento. E então, com um esforço visível e contido pelas cordas, ele fez um movimento, tentando lançar o pendrive para o canto mais distante do galpão.
E então, Gerard foi puxado de volta para a realidade. E ele se desequilibrou quando sentiu seu peso voltar para o corpo, forçando seus joelhos a cederem no chão.
O silêncio e o vazio do galpão era denso, quase palpável. Gerard ainda estava agachado, segurando o pendrive com força, os olhos fixos no objeto enquanto tentava processar as visões que acabara de ter. Seu coração batia acelerado, a adrenalina correndo por suas veias. Cada músculo em seu corpo estava tenso, e sua respiração era pesada. Ele finalmente se endireitou, guardando o pendrive no bolso.
No entanto, um estalo ecoou pelo galpão. Foi sutil, mas suficiente para chamar sua atenção. Gerard congelou por um segundo, os sentidos aguçados. O som vinha da sua esquerda, perto das pilastras, mas antes que ele pudesse reagir, uma sombra se moveu rapidamente em sua direção. Ele mal teve tempo de virar o rosto quando um golpe brutal o atingiu nas costas. A dor explodiu em suas costelas, roubando-lhe o ar enquanto ele cambaleava para frente, quase perdendo o equilíbrio.
Gerard grunhiu, tentando girar sobre os calcanhares, mas outro golpe veio de lado, atingindo-o na mandíbula com uma força que fez seu rosto arder. Ele caiu de joelhos, os olhos turvando por um momento enquanto tentava se estabilizar. Tudo estava girando, e seus instintos gritavam para ele se levantar, mas os agressores não estavam dispostos a dar-lhe essa chance.
Um chute violento acertou seu estômago, fazendo-o se dobrar de dor. Gerard arfou, o gosto metálico de sangue surgindo em sua boca. Ele tentou se defender, os braços levantando instintivamente para proteger o rosto, mas os golpes continuaram, incessantes, impiedosos. Eram dois homens altos e fortes, seus rostos sombreados pelas luzes fracas do galpão. Eles o cercavam, golpes calculados para enfraquecê-lo antes que pudesse reagir.
Gerard tentou se erguer, usando uma das pilastras como apoio, mas um dos homens o agarrou pelos ombros e o jogou contra a parede de concreto. Sua cabeça bateu com força, a dor irradiando por todo o crânio enquanto sua visão piscava com manchas brancas. Ele deslizou pela parede, caindo mais uma vez, o corpo pesado como chumbo. Sua mente gritava para ele lutar, mas o mundo parecia estar afundando ao seu redor.
Um dos homens se aproximou, a sombra cobrindo o rosto enquanto ele sorria com desdém.
— Você é um homem morto, delegado. — um dos homens murmurou.
A dor latejava em todo o corpo de Gerard, mas a adrenalina e o instinto de sobrevivência gritavam mais alto. Ele sentia o sangue escorrendo por seu rosto, o gosto metálico ainda presente em sua boca, mas não havia tempo para hesitação. A respiração era pesada, difícil, e cada movimento fazia suas costelas arderem, mas seus olhos continuavam focados nos agressores.
Um dos homens se aproximou com um sorriso cruel, pronto para desferir mais um golpe. Seus olhos estavam cheios de desprezo, a confiança de quem acreditava que a luta já estava ganha. Gerard sabia que não teria outra chance. Com um movimento rápido e preciso, ele deslizou a mão para o coldre em sua cintura, os dedos encontrando a arma.
Antes que o homem percebesse o que estava acontecendo, Gerard sacou a arma e, com um gesto firme, apontou diretamente para o peito do agressor. Não houve hesitação. Seu dedo pressionou o gatilho, o som do disparo ecoando pelo galpão com um estrondo ensurdecedor. O recuo fez seus músculos protestarem em dor, mas a bala atingiu o alvo com precisão.
O homem parou no meio do movimento, seus olhos se arregalando em choque enquanto o impacto o fazia recuar. Por um momento, ele pareceu incrédulo, o sorriso sumindo de seu rosto. Ele levou a mão ao peito, onde o sangue começava a escorrer rapidamente, manchando sua camisa. Seus joelhos cederam e ele caiu de costas, o corpo atingindo o chão de concreto com um baque pesado.
Gerard não teve tempo para contemplações. O segundo agressor soltou um grito de raiva e correu em sua direção, os olhos cheios de ódio. Gerard rolou para o lado, seu corpo protestando contra o movimento brusco, mas ele manteve a arma firme. Seu braço doía, o impacto dos chutes ainda pulsava, mas ele girou no chão, apontando novamente e atirando antes que o homem pudesse alcançá-lo.
O tiro cortou o ar, acertando a perna do segundo agressor. Um grito de dor ecoou pelo galpão, quando ele caiu de joelhos, segurando o local atingido. Gerard se arrastou para trás, apoiando-se em uma pilastra enquanto tentava recuperar o fôlego. Seus olhos não saíam dos inimigos, cada fibra do seu corpo pronta para reagir se fosse necessário.
O primeiro homem estava imóvel no chão, o corpo inerte, indicando que não seria mais uma ameaça. O segundo homem estava no chão, com a perna ensanguentada esticada de um jeito estranho. O tiro acertara a parte interna da coxa — onde passava a artéria femoral, Gerard sabia disso. O sangue jorrava em pulsos ritmados, como se o próprio corpo do homem batesse os segundos finais de sua vida. Gerard levantou-se lentamente, a arma ainda apontada enquanto se aproximava.
— Cadê Frank? — Gerard rosnou, a voz carregada de raiva e dor.
O homem ferido levantou os olhos, mas não respondeu. Ele tentou gritar, mas só conseguiu engasgar com a própria dor. Os olhos arregalados buscaram socorro no vazio do galpão, mas ninguém viria. Não a tempo.
Gerard observava em silêncio. Havia visto a morte de perto antes, mas havia algo cruel em assistir a um corpo lutar para sobreviver sabendo que não conseguiria. O chão de concreto formava uma poça escura ao redor da perna do homem, enquanto os dedos dele apertavam inutilmente o ferimento, como se pudessem impedir o inevitável.
— Onde está Frank?
Os movimentos foram perdendo força. Primeiro as mãos afrouxaram, depois o olhar perdeu foco. O som dos engasgos foi substituído por um silêncio absoluto. Gerard fechou os olhos por um momento. Não havia prazer naquilo. Só mais uma morte que precisava carregar.
Gerard deu as costas, saindo do galpão com a arma ainda em punho, mancando.
Frnkfan (Guest) on Chapter 4 Sun 02 Mar 2025 03:54PM UTC
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PeixeiraCibernética (Guest) on Chapter 11 Sun 01 Jun 2025 03:32PM UTC
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Frnkfan (Guest) on Chapter 11 Sun 01 Jun 2025 05:02PM UTC
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