Chapter Text
A queda foi um impacto que arrancou o ar dos pulmões de Harriet, deixando-a atordoada por um instante eterno. O cheiro era o primeiro a registar-se – não o mofo úmido do Departamento de Mistérios, mas algo profundo, antigo, como raízes desenterradas depois de séculos e o perfume intenso, quase sufocante, de flores desconhecidas sob um luar prateado. A terra sob ela era de ervas secas e frias, e o céu... o céu era uma abóbada negra incrustada de estrelas que brilhavam com uma luz estranha, dourada e fria, dispostas em constelações que nenhuma aula de Astronomia em Hogwarts jamais lhe mostrara. O ar vibrava. Não com a magia controlada e canalizada dos bruxos, mas com uma energia selvagem, primordial, que parecia sussurrar promessas e ameaças em uma língua esquecida. Era magia viva, e ela sentiu sua própria magia bruxa, nervosa e cansada, estremecer em resposta.
— Teddy? James! — Sua voz saiu rouca, urgente, rasgando o silêncio inquietante. O terror de tê-los perdido no vazio além do Véu foi uma garra de gelo em seu coração.
Um soluço abafado respondeu à sua esquerda. — Tia Harry!
Teddy Lupin, seu afilhado, estava enroscado em si mesmo, os olhos arregalados de pavor, mas intacto. Seu cabelo, normalmente uma paleta mutante de cores, estava tão negro quanto a noite ao redor, refletindo seu medo. Às suas costas, agarrado com força quase dolorosa às suas vestes através do encantamento de segurança que ela tecera às pressas, James Sirius soluçava baixinho, seu pequeno corpo tremendo contra o dela. Alívio, agudo e quase doloroso, inundou Harriet. Eles estavam vivos. Juntos.
O alívio durou apenas o tempo de um suspiro. O som ecoou primeiro como um trovão distante, mas rapidamente se delineou em algo mais ameaçador: o ritmo rápido e metálico de cascos batendo contra a terra dura. Muitos cascos. Seguidos por gritos agudos, melodiosos e ao mesmo tempo cortantes, que não soavam humanos.
Harriet se levantou num movimento fluido, anos de treino em combate assumindo o controle. Empurrou Teddy para trás de si, ao mesmo tempo que ajustava James nas costas, sua varinha de teixo aparecendo instantaneamente em sua mão direita, apontada para a escuridão de onde os sons surgiam. O coração batia forte contra as costelas. Não aqui. Não agora. Não com eles.
Eles emergiram da penumbra como fantasmas montados em pesadelos. Cavaleiros altos e esguios, com armaduras que pareciam feitas de escamas de serpente ou casca de árvore, refletindo a fraca luz das estrelas douradas. As criaturas que montavam não eram cavalos, mas sim seres esbeltos e musculosos, com cascos fendidos de ébano e olhos que brilhavam com um intenso tom dourado e prateado, inteligentes e predatórios. Lanças longas, pontas afiadas como agulhas de gelo, foram abaixadas em uníssono, formando uma cerca mortal ao redor dos intrusos.
— Vocês violaram as fronteiras sagradas de Elfhame, mortais! — bradou um dos cavaleiros, sua voz soando como o tinir de cristais quebrados, cheia de uma autoridade inquestionável. A lança apontou diretamente para o peito de Harriet. — Declarem sua natureza e sua intenção, ou serão tratados como invasores hostis!
Harriet apertou o cabo de sua varinha, os dedos conhecendo cada entalhe da madeira. Sua mente acelerou, calculando ângulos, encantamentos de escudo, maldições de desarme. Mas uma voz interna, a mesma que a mantivera viva em inúmeras batalhas, gritava cautela. São muitos. As crianças. Magia diferente. Ela respirou fundo, mantendo a varinha erguida, mas sem atacar. Seus olhos verdes, tão famosos no mundo que deixara para trás, varriam o grupo, buscando uma fraqueza, uma liderança.
Foi então que os cavaleiros se abriram, como uma maré obediente, e ele apareceu.
Não montado em uma das criaturas, mas caminhando com uma indolência que era puro poder contido. Um rei. Cardan Greenbriar. Mesmo sem nunca tê-lo visto antes, Harriet sabia. A coroa de espinhos negros entrelaçados repousava sobre cabelos tão escuros quanto a noite de Elfhame, contrastando com sua pele de um pálido marfim. Mas eram os olhos que prendiam – grandes, amendoados, da cor de ouro derretido, refletindo a luz estelar com uma intensidade quase sobrenatural. Um sorriso jogava nos seus lábios, largo e perigosamente encantador, como se a cena diante dele fosse uma peça de teatro particularmente divertida.
Seu olhar dourado percorreu Harriet com uma lentitude deliberada, como um colecionador avaliando uma peça rara. Demorou-se na cicatriz em forma de raio parcialmente oculta por seus cabelos desgrenhados, um farol no mundo bruxo, aqui apenas uma marca curiosa. Desceu, passando por seus olhos desconfiados, até pousar na mão esquerda que segurava Teddy. Harriet sentiu a pele da palma queimar sob o seu olhar, como se ele pudesse ver as palavras “não devo contar mentiras” gravadas a fogo na carne, um lembrete eterno da crueldade de Dolores Umbridge e da sala proibida.
Cardan Greenbriar ergueu uma sobrancelha perfeitamente arqueada, aquele meio sorriso se aprofundando.
— Que visão curiosa se apresenta aos nossos portões noturnos, — sua voz era uma melodia baixa, preguiçosa, mas com uma afiação que cortava como o vidro mais fino. Parecia flutuar no ar carregado de magia. — Uma mortal, banhada no cheiro acre da morte recém-cruzada, carregando duas crias frágeis, caindo como um pássaro ferido no meu jardim. Verdadeiramente, o destino tece tramas caprichosas. Seus olhos dourados cintilaram com perverso deleite. — Mas, minha querida rainha... — ele virou ligeiramente a cabeça, o sorriso tornando-se um convite perigoso, — o que devemos fazer com essa tragédia ambulante que nos caiu do céu?
Harriet seguiu o olhar de Cardan. Uma figura mais baixa, mas não menos imponente, estava parada à sua direita, ligeiramente à frente. Jude Duarte. A Rainha de Elfhame. Seu cabelo castanho estava preso com severidade, e seus olhos castanhos, profundos e frios como a terra congelada de inverno, já estavam fixos em Harriet. Não havia curiosidade divertida nesse olhar, apenas avaliação implacável. Era o olhar de uma estrategista, de uma lutadora, medindo ameaça, vulnerabilidade, utilidade. Seu traje era mais prático que o do rei – couro escuro e metal polido – e na cintura, mesmo embainhada, repousava uma espada que irradiava uma aura de perigo palpável, como a varinha de Harriet. Jude estudou Harriet de cima a baixo, seu olhar calculista passando sobre as roupas sujas e rasgadas, a postura defensiva, a varinha erguida, a marca na testa, até pousar nas duas crianças – Teddy, tentando parecer corajoso atrás de sua tia, e James, ainda choramingando, seu rosto escondido no ombro de Harriet.
Antes que Harriet pudesse articular qualquer defesa, qualquer explicação, a voz de Jude cortou o ar, mais fria e mais clara que a do marido:
— Uma mortal que atravessa portais da morte carregando crianças não é uma viajante comum. É uma fugitiva. Seu olhar encontrou o de Harriet, desafiador. — E uma que claramente não confia em feéricos. Um instinto sábio, diga-se de passagem. Ela fez uma pausa infinitesimal, seu olhar voltando-se para Teddy e James, e um leve franzir apareceu entre suas sobrancelhas. — Mas as crianças... Elas são o verdadeiro enigma aqui. Raridade e vulnerabilidade em Elfhame são um convite ao perigo. Seus olhos voltaram a Harriet, frios e inescapáveis. — Então, fugitiva... o que devemos fazer com vocês?
Harriet engoliu em seco, a garganta apertada. O cheiro da terra, das flores estranhas, da magia selvagem, parecia sufocante. O peso das Relíquias – a Capa da Invisibilidade dobrada sob suas vestes, a Varinha das Varinhas pulsando em sua mão, a Pedra da Ressurreição fria como gelo no bolso – era um fardo físico. Ela fugira de um mundo que a temia e a odiava por causa do poder que detinha. Caíra em outro onde o poder era a moeda corrente e os jogos eram jogados com garras mais afiadas. A ironia era cortante. Jude estava certa: ela não confiava neles. Como poderia? Mas olhou para Teddy, seus olhos cheios de medo mas também de uma confiança absoluta nela, e sentiu James respirar contra seu pescoço. O mundo bruxo poderia tê-la condenado, mas seu destino, agora, estava irrevogavelmente ligado ao dessas duas crianças neste reino perigoso e deslumbrante. O Véu a trouxera aqui. Por um motivo? Por pura crueldade? Não importava. Ela estava dentro. E o julgamento em Elfhame, sob o olhar dourado de um rei caprichoso e os olhos castanhos de uma rainha de ferro, já havia começado.
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O Grande Salão do Palácio de Elfhame era uma catedral viva de magia antiga e perigo. Raízes de árvores imensas, entrelaçadas com fios de prata e gemas cintilantes, formavam arcos góticos que se perdiam nas alturas, onde luzes dançantes – como vagalumes aprisionados em cristais – lançavam padrões cambiantes sobre o chão de mármore negro. O ar estava impregnado do perfume opressivo de flores noturnas e do cheiro mais sutil, porém penetrante, de intriga e poder. Bancadas elevadas, esculpidas em madeira escura que parecia sussurrar, acomodavam membros da corte feérica. Suas roupas eram tecidas de sonho e pesadelo, seus rostos de beleza etérea e perturbadora escondiam dentes afiados e olhos que brilhavam com inteligência fria e malícia.
No centro, sobre tronos entrelaçados de espinhos negros e folhas de prata, sentavam-se os soberanos. Jude Duarte, a Rainha Mortal, vestia um traje severo de couro negro e veludo verde-escuro, sua espada Mortem repousando desembainhada sobre os joelhos, um aviso claro. Seus olhos castanhos, frios e calculistas como os de um falcão, varriam a sala antes de se fixarem no ponto focal: Harriet Potter. Ao seu lado, reclinado com uma graça indolente que era pura afetação, Cardan Greenbriar, o Rei Imortal. Trajava sedas negras e verdes que pareciam absorver a luz, uma coroa de espinhos negros entrelaçados com gemas escuras sobre sua cabeça. Segurava uma taça de vinho rubi, mas seus olhos dourados – como moedas de ouro sob a luz fraca – não perdiam um detalhe de Harriet, um sorriso perpétuo de divertida expectativa brincando em seus lábios.
Harriet estava em pé no centro do salão, sozinha naquele círculo de mármore polido. Sentia o peso de centenas de olhos feéricos sobre ela, olhos que viam além da superfície, que farejavam medo e fraqueza. Teddy e James estavam invisíveis sob a Capa da Invisibilidade, encolhidos a seus pés, protegidos por todos os encantamentos de silêncio e contenção que conseguira conjurar. Seu coração martelava contra as costelas, um tambor de guerra surdo. A varinha comum de teixo estava escondida na manga, mas a Varinha das Varinhas, a Varinha de Sabugueiro, pulsava contra seu antebraço como um coração secundário, ansiosa, poderosa. A cicatriz na mão esquerda formigava, um aviso prévio.
Um silêncio pesado desceu sobre o salão, quebrado apenas pelo tilintar distante de sinos de cristal e o sussurro das vestes feéricas.
Jude ergueu uma mão. O silêncio se tornou absoluto.
— Harriet Potter. — A voz da Rainha ecoou, clara e cortante como o aço de sua espada. O nome, dito em voz alta naquele lugar, soou como uma declaração de guerra. Harriet sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Como eles sabiam? Cardan sorriu, como se adivinhasse seu pensamento. — Você atravessou o Véu da Morte, uma passagem para o além, e caiu em nosso reino. Traz consigo duas crianças e… uma aura de poder incomum e finalidade perturbadora. Jude inclinou-se ligeiramente para frente. — O Conselho de Elfhame exige respostas. Verdadeiras. Por que fugiu do seu mundo?
Harriet respirou fundo. O ar estava carregado de magia, pesado. Ela podia sentir a pressão da corte, como se as próprias paredes a espreitassem.
— Fugi, — ela começou, sua voz soando estranhamente alta na quietude, — porque o mundo que salvei decidiu que eu era uma ameaça maior do que o tirano que derrotei. Era uma verdade. Uma verdade dolorosa. A cicatriz na mão permaneceu fria.
Cardan soltou uma risadinha baixa, melodiosa. — Ah, a ingratidão. Um prato que se serve frio em todos os reinos, parece. — Ele girou o vinho em sua taça. — Mas continue, pequena salvadora. O que desencadeou essa fúria repentina contra sua heroína?
Jude lançou-lhe um olhar de advertência, mas Harriet prosseguiu, focando na Rainha, cuja desconfiança era mais direta, menos capciosa.
— Rumores. — Ela escolheu a palavra com cuidado. — Rumores sobre artefatos poderosos que eu supostamente controlava. Artefatos que… perturbavam o equilíbrio. Outra verdade. As Relíquias eram perturbadoras. A cicatriz na mão começou a aquecer, um formigamento incômodo. Mentira por omissão, sussurrou sua consciência. Ela não estava contando tudo sobre as Relíquias, sobre ser a Mestra da Morte.
— Artefatos? Jude perguntou, seu olhar se tornando mais aguçado. — Que tipo de artefatos? E que ‘equilíbrio’ exatamente eles perturbavam, a ponto de te caçarem como uma fera?
A pergunta era um campo minado. Harriet sentiu a pele da palma da mão queimar.
— Artefatos ligados à morte, — ela admitiu, a voz um pouco mais rouca. A verdade, mas não toda. — E o equilíbrio que eles temiam era o do poder. Temiam que eu me tornasse outra… força obscura. A cicatriz ardeu como um fio quente. Mentira por omissão novamente. Eles temiam, sim, mas era mais profundo – temiam o que ela já era, o que as Relíquias faziam dela.
Cardan inclinou-se para frente, seus olhos dourados brilhando com intensidade repentina. — Morte? Ele sibilou a palavra como um encantamento. — Você cheira a morte antiga, Harry Potter. Não a morte comum de mortais… mas algo mais profundo. Mais… primordial. Como a sombra do próprio Véu. Seu olhar percorreu-a, demorando-se na testa e na mão fechada. — Esses artefatos… eles te marcaram, não é? Por dentro e por fora.
O salão sussurrou. A palavra "morte" nas bocas feéricas tinha um peso diferente, um sabor perigoso.
— As marcas que carrego, — Harriet respondeu, lutando para manter a voz firme, — são lembranças de batalhas travadas, de escolhas feitas. Não dos artefatos. Meia-verdade. A cicatriz do raio era de Voldemort, a da mão de Umbridge. Mas o poder que emanava dela, a aura que Cardan sentia… isso era das Relíquias. A cicatriz na mão queimava intensamente agora, uma dor aguda e insistente. Ela cerrou o punho, sentindo as letras gravadas na carne.
— E as crianças? Jude interveio, redirecionando o foco com a precisão de um golpe de espada. Seus olhos castanhos perfuraram Harriet. — Por que as trouxe consigo através de um portal da morte? Quem são elas para você? E onde estão agora? Seu olhar varreu o círculo vazio ao redor de Harriet, desconfiado.
Harriet sentiu um frio gelado que não tinha relação com a cicatriz ardente. Esta era a pergunta mais perigosa. A verdade absoluta colocaria Teddy e James sob os holofotes cruéis da corte.
— Elas estão a salvo, — ela disse, a voz tensa. — Sob minha proteção. São minha família. Meu filho e meu afilhado. Verdade. Mas "a salvo" era relativo, e "sob minha proteção" soava frágil diante do poder reunido ali. A cicatriz na mão latejava, mas não queimou com força total. Foi o suficiente para Jude.
A Rainha ergueu uma sobrancelha, desdenhosa. — ‘A salvo’? Em Elfhame? Você é ingênua ou deliberadamente enganosa, Harriet Potter? — Ela apontou para o chão de mármore aos pés de Harriet. — Nada aqui está verdadeiramente a salvo. Especialmente crianças mortais. Especialmente crianças ligadas a uma fugitiva que carrega o cheiro da morte e esconde seus tesouros. O olhar de Jude era acusador. — Você as escondeu de nós. Porque sabe que são sua fraqueza. E porque não confia em nós. Uma desconfiança… mútua, diria.
A cicatriz na mão de Harriet explodiu em dor. Uma dor branca e aguda, como se Umbridge estivesse gravando as palavras novamente, agora com uma pena em brasa. "eu não devo mentir". Ela não pôde evitar um pequeno suspiro de dor, um tremor percorrendo seu braço. Foi quase imperceptível, mas no salão silencioso, observado por criaturas com sentidos aguçados, foi como um grito.
Cardan sentou-se subitamente ereto, o vinho esquecido. Seus olhos dourados fixaram-se na mão escondida de Harriet com a intensidade de um predador avistando uma presa ferida. Um verdadeiro sorriso, largo e cheio de dentes afiados, iluminou seu rosto.
— Ah… — ele sibilou, o som cheio de descoberta perversa. — Ela dói, não dói? Quando mente? Ou quando omite? Ou quando simplesmente… não diz tudo o que sabe? Seu olhar encontrou o de Jude, triunfante. — Veja, minha rainha. A pequena mentirosa tem um detector de falsidade embutido. Deliciosamente irônico, não é? Um presente de um inimigo, talvez? Ele voltou-se para Harriet, o olhar dourado agora incandescente com fascínio cruel. — Mostre-nos, Harry Potter. Mostre-nos a marca que castiga suas mentiras.
Jude não disse nada, mas sua expressão endureceu. A desconfiança transformou-se em certeza de perigo. O Conselho sussurrava, olhos brilhando com interesse súbito e malícia. A pressão no salão aumentou, sufocante.
Harriet sentiu o suor frio escorrer pelas suas costas. A dor na mão era uma agonia pulsante, gritando cada vez que ela pensava em negar, em desviar. Teddy e James estavam invisíveis a seus pés, mas ela podia sentir o medo deles, um pequeno tremor no ar. Ela olhou para os rostos impassíveis de Jude e o olhar predatório de Cardan. A Varinha das Varinhas pulsava contra seu antebraço, uma promessa de poder absoluto, mas também de destruição. Usá-la aqui seria confirmar todos os seus medos, para ambos os reinos.
O julgamento não era mais sobre suas razões para fugir. Era sobre o poder que ela carregava, as mentiras que contava para protegê-lo, e a marca que a traía. E a corte de Elfhame, faminta por diversão e vantagem, acabara de descobrir seu ponto mais fraco. O verdadeiro julgamento, Harriet percebeu com um frio na alma, só estava começando. E a próxima palavra que dissesse, fosse verdade ou mentira, seria medida pela dor em sua carne.
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A noite atual era um reflexo daquela primeira, mas tingida pela experiência adquirida. Teddy e James dormiam em um aposento adjacente ao de Harriet, protegidos por camadas de encantamentos silenciosos, barreiras sutis e uma boneca de trapos que Teddy transformara em um guardião com olhos de coruja sob o comando nervoso de Harriet. O próprio aposento de Harriet era mais confortável agora – ainda não luxuoso, mas com tapetes macios, uma lareira que queimava com chamas verdes e prateadas, e estantes com livros de lendas feéricas que ela estudava febrilmente, buscando vantagem.
Mas a paz era ilusória. Como naquela primeira noite, a cicatriz em sua mão esquerda começou a arder. Não era uma dor aguda como durante uma mentira descarada, mas uma queimadura surda, persistente, como brasas sob as cinzas. A advertência era clara: alguém a observava. Alguém cuja presença desencadeava o detector de falsidade embutido em sua carne, talvez porque sua própria existência em Elfhame fosse agora uma meia-verdade sustentada.
Harriet levantou-se silenciosamente da poltrona onde lia, a varinha comum (sempre à mão) deslizando para sua palma. A Varinha das Varinhas pulsava contra seu antebraço, um baixo ronco de poder adormecido. Ela caminhou até a varanda aberta, que dava para os jardins noturnos banhados por uma lua gigante e fria.
Lá estava ele. Cardan Greenbriar. Não recostado, mas de pé, apoiado na balaustrada de mármore branco, olhando para as sombras dançantes abaixo. Vestia roupas de dormir de seda negra que pareciam absorver a luz lunar, seu perfil cortante contra o céu estrelado. Ele não se virou imediatamente.
— A insônia é uma companhia frequente para aqueles que carregam segredos pesados, não é, Harry? — Sua voz era um fio de seda escura, sem a afetação teatral da corte. Era quase... íntimo. Perigosamente íntimo.
Harriet não respondeu. Parou a alguns passos dele, a varinha relaxada, mas pronta. A cicatriz ardia.
Ele virou-se então, lentamente. Os olhos dourados brilhavam na escuridão, captando a luz como os de um felino. Seu sorriso afiado estava presente, mas havia algo diferente nele. Menos divertimento, mais... conhecimento. A avaliação de meses de observação.
— Sabe, — ele começou, aproximando-se um passo, o cheiro dele – floresta úmida, vinho doce e algo indescritivelmente antigo – envolvendo-a. — eu passei esses meses fascinado. Fascinado pela sua dança constante. Pelas muralhas que ergue com tanta habilidade. Pela forma como protege os pequenos lupinos com a ferocidade de uma leoa, mas como se contorce por dentro cada vez que precisa omitir uma peça do seu quebra-cabeça para minha adorável e desconfiada rainha. —Ele parou bem diante dela. A altura dele forçava-a a erguer o olhar. — Aquela primeira noite, eu brinquei. —Disse que sabia o que era pior que uma mentira. Seu olhar caiu para a mão esquerda de Harriet, como se pudesse ver a marca sob a manga. — Uma meia-verdade. E você está cheia delas.
Harriet sentiu os músculos da mandíbula tensionarem. Ele não estava errado. Sua vida em Elfhame era um tapete tecido com fios de verdades parciais. Ela ajudava Jude com insights sobre estratégia militar (experiência de guerra é universal), traduzia textos antigos com runas que lembravam as estudadas em Hogwarts (omitiu onde as aprendera), usava magia prática para resolver pequenos problemas do palácio (nunca a Varinha das Varinhas). Tudo útil. Tudo calculado para manter sua posição precária. Tudo meias-verdades que mantinham a cicatriz em um estado de agonia latente.
— E o que o Rei de Elfhame quer com minhas meias-verdades? — Ela perguntou, a voz mais áspera do que pretendia. O cansaço do jogo constante pesava. — Mais diversão? Um novo quebra-cabeça para desmontar entre um gole de vinho e o próximo escândalo da corte?
Cardan riu, um som baixo e rico que fez as sombras parecerem sussurrar. — A diversão é inegável. Ver você navegar nosso labirinto com a graça desajeitada de um mortal, mas com a determinação de uma força da natureza... é cativante. —Seu sorriso se suavizou, tornando-se quase contemplativo.— Mas há mais. Você é uma tempestade, Harry. Uma tempestade envolta em mortalidade, carregando o eco da morte em seu núcleo. E tempestades... bem, elas podem destruir. Ou podem limpar o ar, trazer mudança. —Seu olhar dourado perfurou o dela. —Jude vê uma ferramenta. Uma arma potencial. Eu... vejo uma força. Uma força que poderia balançar as fundações de reinos, se direcionada. E isso é infinitamente mais interessante do que uma simples mentirosa.
Ele ergueu a mão, não para tocá-la, mas como se traçasse o contorno de sua silhueta no ar frio da noite. — As meias-verdades são sua armadura, eu entendo. Contra nós. Contra o mundo que você deixou para trás. Mas armaduras pesam, Harry. E essa, — ele apontou vagamente para sua mão esquerda, — essa sua particular armadura interna... ela está te matando lentamente. Cada omissão, cada verdade pela metade, é uma facada que você mesmo se dá.
Harriet ficou imóvel. A dor na cicatriz parecia pulsar em uníssono com suas batidas cardíacas aceleradas. Ele tocara em algo profundo, algo que ela não queria admitir. O preço da sobrevivência em Elfhame era a erosão constante de sua própria integridade, punida literalmente em sua carne.
— E qual é a alternativa? — Ela sussurrou, a defesa baixando por um instante, revelando a fadiga crua por baixo. — Confiar? Em vocês?
Cardan inclinou-se ligeiramente, seu rosto ficando perigosamente próximo. Seus olhos eram poças de ouro líquido. — Confiar? Talvez não. Mas parar de lutar contra a própria correnteza? Talvez. O Véu não a trouxe aqui por acaso, Harry Potter. Ele trouxe uma tempestade. E tempestades... — seu sussurro era quase um toque na pele dela, — ...não se contêm em garrafas, nem se escondem atrás de meias-verdades. Cedo ou tarde, elas se libertam.
Ele recuou tão repentinamente quanto se aproximara, a máscara do rei indolente voltando a se firmar. — Pense nisso. Enquanto sua mão ainda permite que você pense com clareza. Ele deu meia-volta, suas vestes negras fundindo-se às sombras da varanda. — Boa noite, tempestade. Sonhe com ventos de mudança.
Ele desapareceu no corredor escuro, deixando Harriet sozinha na varanda, o cheiro da floresta e a dor latejante em sua mão como únicos companheiros. Ela olhou para a marca, agora uma sentença irônica em sua existência. Cardan tinha razão. Ela trocara uma gaiola por outra, e a armadura de meias-verdades que a mantinha segura também a estrangulava. O tempo em Elfhame passara, mas a encruzilhada permanecia: continuar a dança lenta da autodestruição, ou abraçar a tempestade que era – e arriscar tudo, incluindo os dois corações que dormiam no quarto ao lado. A gaiola dourada com espinhos apertava, e a cicatriz em sua mão ardia como um farol no escuro, lembrando-a do preço de cada palavra não dita.
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A lua em Elfhame, maior e mais fria que a de seu mundo, lançava sombras alongadas e traiçoeiras pelos corredores exteriores do palácio. Harriet patrulhava a zona leste, uma área de jardins suspensos e passadiços de vidro que rangiam levemente sob seus passos. Jude a colocara como guarda noturno – uma posição aparentemente rotineira, mas Harriet não era ingênua. Sabia que era uma forma de mantê-la sob observação constante, testar suas habilidades e lealdade, e talvez atrair inimigos em potencial para a luz. Jude jogava xadrez com vidas; Harriet era uma peça valiosa e perigosa que precisava ser monitorada. Os meses transformaram sua desconfiança inicial em uma vigilância calculada. Ela conhecia cada sombra, cada sussurro do vento nas folhas de prata. Mas naquela noite, os sussurros eram diferentes.
Vieram de baixo, do Subterrâneo – a parte mais antiga e sombria do palácio, onde as raízes das Árvores Ancestrais mergulhavam nas profundezas e criaturas menos... nobres, faziam seus ninhos. Harriet parou, imóvel como uma estátua, a mão fechando-se no cabo da varinha sob o manto de guarda. Não eram sussurros do vento. Eram vozes baixas, roucas, cheias de rancor e um prazer sádico.
"...mortinha dormindo, pensando que está segura..."
"...o pequeno metamorfo primeiro... fazer ele gritar como o pai-lobo..."
*"...sangue mortal é fraco, mas a bruxa... ela vai sentir o X-..." A voz engasgou, como se tivesse sido advertida, mas a palavra proibida pairava no ar: Xingamento. O termo bruxo para a magia mais obscura.
O sangue gelou nas veias de Harriet. Teddy. James. Eles estavam nos aposentos dela, protegidos por encantamentos, mas não invulneráveis. O instinto materno, feroz e primordial, eclipsou toda cautela. Ela se moveu como um fantasma, deslizando pelas sombras com a agilidade que anos de fuga e combate lhe deram, seguindo os sussurros venenosos até uma claraboia quebrada que levava a uma cisterna subterrânea.
Lá embaixo, iluminadas pela luz fantasmagórica de fungos bioluminescentes, estavam três fadas do Subterrâneo. Suas formas eram distorcidas, membros longos demais, pele com textura de cogumelo seco, olhos como carvões incandescentes. Vestiam trapos e empunhavam adagas feitas de osso negro e garras retorcidas. Planavam em torno de um esboço grosseiro riscado no chão úmido – um mapa dos aposentos superiores, com uma marcação clara sobre os quartos de Harriet.
A raiva, fria e assassina, substituiu o medo. Harriet não deu aviso. Não teve tempo para elegância. "Stupefy!" O jato vermelho disparou de sua varinha, acertando uma das fadas no peito e arremessando-a contra a parede de pedra com um baque surdo.
O elemento de surpresa durou um segundo. As outras duas giraram com gritos agudos, mais parecidos com o rasgar de metal. Adagas de osso brilharam à luz dos fungos.
— A mortal! — rosnou uma, seus dentes afiados expostos em um sorriso de ódio. — Veio entregar seu sangue!
A luta foi brutal e rápida. Harriet era uma tempestade de movimento, desviando de golpes rápidos como cobras, bloqueando adagas com escudos de força (Protego!) que estilhaçavam o ar. Seus feitiços eram econômicos, letais: Impedimenta para derrubar uma, Petrificus Totalus para tentar conter a outra. Mas as fadas do Subterrâneo eram rápidas, resilientes, e sua magia era diferente – mais visceral, ligada à terra e à escuridão. Tentáculos de sombra brotaram do chão para agarrar seus tornozelos, e um gás ácido e fedorento jorrou da boca da segunda fada.
Harriet rolou para o lado, sentindo o tecido de suas calças queimar onde o gás a atingira. A dor era aguda. Ela levantou a varinha, pronta para um feitiço mais poderoso, mais negro, que a Varinha das Varinhas ansiara para liberar. Mas antes que pudesse articular, a fada mais próxima pulou, evitando seu feitiço de desarme, e cuspiu, literalmente, nas palavras:
— Seu sangue mortal será regar as raízes! O C...
O nome do Xingamento Imperdoável começou a se formar nos lábios grotescos da fada. Terror absoluto tomou Harriet. Não por ela, mas pelo que viria depois. Se eles sabiam o Cruciatus... Sabiam do Avada Kedavra. Eles atacariam Teddy e James.
Foi quando ele apareceu.
Não com estrondo, mas com a fluidez de uma sombra se materializando. Cardan Greenbriar. Ele não estava vestido para a corte, mas com roupas escuras e práticas que pareciam absorver a luz dos fungos. Em sua mão, a espada negra Mortem parecia sorver a própria escuridão ao redor.
A lâmina cortou o ar com um assobio sinistro. Foi um único movimento, fluido e mortalmente elegante. A cabeça da fada que preparava o Cruciatus saltou de seus ombhos antes que a palavra maldita pudesse ser completada. O corpo caiu, jorrando um líquido negro e espesso.
A segunda fada, ainda parcialmente petrificada, soltou um guincho de terror. Cardan nem olhou para ela. Um movimento lateral da espada, rápido como o bater de asas de um morcego, e uma linha escura apareceu no pescoço da criatura. Ela caiu, engasgando em silêncio.
O silêncio que se seguiu foi mais pesado que o gás ácido. Harriet estava de joelhos, respirando com dificuldade, a varinha ainda apontada para o lugar onde a ameaça desaparecera. A dor na perna queimava, e o cheiro de sangue fétido e mofo enchia suas narinas. O pulso onde a adaga a cortara superficialmente latejava.
Cardan virou-se para ela. Não havia vestígio de seu habitual ar de diversão. Seus olhos dourados brilhavam com uma luz fria e calculista na penumbra, examinando-a, avaliando os ferimentos, a postura defensiva. Ele caminhou até ela, os passos silenciosos na terra úmida. Sem cerimônia, ele limpou a lâmina negra e manchada de sangue viscoso... na manga do manto de guarda de Harriet.
Harriet estremeceu, mais com a invasão do espaço pessoal do que com o gesto em si. Ela olhou para ele, a confusão e o resíduo da adrenalina nublando seu pensamento.
— Por que? — ela perguntou, a voz rouca pela respiração ofegante e pela poeira da luta. — Por que me ajudou? — Jude era a estrategista, a que via utilidade. Cardan... Cardan era imprevisível.
Ele guardou Mortem com um movimento fluido, seu olhar fixo no dela. Aquele meio sorriso perigoso voltou a brincar em seus lábios, mas seus olhos permaneceram sérios, quase... intensos.
— Porque você é divertida, Harry Potter, — ele disse, a voz um sussurro sedutor que contrastava brutalmente com a carnificina ao redor. — Ver você lutar... é como ver uma fera acuada descobrir que ainda tem garras. É uma dança fascinante.—Ele fez uma pausa, seu olhar aprofundando-se, perdendo um pouco da ironia. — E porque... — ele acrescentou, a voz baixando ainda mais, tornando-se quase íntima, — sinto, no meu sangue feérico, que ainda vamos precisar um do outro. Mais do que você imagina, e mais cedo do que você gostaria.
Antes que Harriet pudesse processar as palavras, carregadas de um presságio que a fez estremecer internamente, Cardan fez um movimento rápido. Sua mão, fria e forte, agarrou seu pulso – o mesmo pulso que sangrava levemente de um corte superficial. Não foi um gesto de cura, mas de posse, de marcação. O toque foi breve, menos de um segundo, mas suficiente. Foi como se uma corrente elétrica percorresse o braço de Harriet, atingindo seu peito e fazendo seu coração acelerar violentamente contra as costelas. Uma onda de calor, completamente alheia à situação, lavou seu rosto. Ele sentiu o pulso dela disparar sob seus dedos.
Ele soltou-a tão rápido quanto a agarrou, um brilho de conhecimento perverso nos olhos dourados. Ele vira. Sentira.
— Cuide desse corte, tempestade, — ele murmurou, o sorriso se alargando, agora cheio de dentes afiados e diversão genuína. — Sangue derramado atrai mais do que apenas moscas em Elfhame. Ele deu um passo para trás, fundindo-se com as sombras mais profundas da cisterna. — Até a próxima dança.
E desapareceu, deixando Harriet sozinha entre os corpos das fadas do Subterrâneo, o cheiro de sangue e morte, a dor na perna, e o pulso onde seu toque ainda ardia como uma marca. O coração continuava a bater descompassado, não mais apenas pelo combate, mas por aquela proximidade perigosa, por aquela promessa/predição sombria, e pelo eco elétrico de um toque que prometia mais conflitos – internos e externos – pela frente. Jude a vigiava. Cardan... Cardan a provocava. E o labirinto de Elfhame acabara de ganhar uma camada ainda mais perigosa.
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A atração entre os três era um fogo subterrâneo que ameaçava romper a superfície. Harriet a sufocava com força bruta, focando em Teddy aprendendo a transformar as orelhas em pontiagudas como as de Cardan, ou em James tentando levitar os biscoitos de mel feéricos. Jude a catalogava friamente – uma peça valiosa, instável, a ser movida no tabuleiro político de Elfhame. Cardan, por sua vez, espetava-a com olhares dourados e provocações calculadas, um desafio vivo que ele se recusava a resolver ou abandonar.
Até a noite em que o subterrâneo literalmente se levantou contra eles.
O ataque foi uma erupção de sombra e rancor. Fadas rebeldes do Subterrâneo, aquelas que nunca aceitaram uma mortal no Trono de Espinhos, invadiram os corredores superiores do palácio. Eram criaturas de membros alongados e olhos como brasas, empunhando armas de ébano que absorviam a luz e adagas untadas com veneno de estrelas cadentes – um líquido prateado e letal que fumegava ao contato com o ar. Seu alvo era claro: Jude Duarte. Matar a rainha mortal e mergulhar Elfhame no caos.
Harriet patrulhava o corredor que levava aos aposentos das crianças, Teddy adormecido em seus braços e James aconchegado contra seu peito, envolto na Capa da Invisibilidade como um hábito de segurança. A magia selvagem do reino havia se tornado um pano de fundo constante, mas naquela noite, ela sentiu a distorção – uma pressão súbita, um cheiro de terra podre e ódio antigo. Antes que pudesse reagir, as sombras ao fundo do corredor se materializaram em formas agressivas.
Ela viu a flecha de ébano, silenciosa como a morte, saindo das sombras, direcionada ao coração de Jude, que surgira na extremidade oposta, investigando um alarme silencioso. O instinto falou mais alto que o cálculo.
— Jude! O grito rasgou a quietude. A varinha apareceu em sua mão como uma extensão do braço. "Protego Maxima!" O escudo dourado e translúcido explodiu entre a rainha e a flecha, desviando-a com um clang metálico que ecoou como um sino fúnebre.
Jude girou, sua reação foi um furacão de aço. Mortem, sua espada negra, cortou o ar com um assobio mortal, decepando o braço do primeiro rebelde que se lançou sobre ela. Seus movimentos eram precisos, econômicos, letais. —Guarde as crianças, Potter! —Ela ordenou, sua voz cortante como o gume da lâmina, enquanto bloqueava um golpe de adaga com o antebraço blindado.
Cardan surgiu de uma coluna de sombra, como se materializado do nada. Ele não parecia surpreso, muito menos preocupado. Derrubou dois invasores com movimentos fluidos de sua própria espada longa, mais uma adaga de prata que apareceu em sua mão esquerda. Parecia uma dança macabra, indolente e mortal.
— Chatos,— ele murmurou, erguendo uma sobrancelha sardônica na direção de Harriet, que recuava com as crianças, mantendo-se entre os rebeldes e a porta do quarto.— Querem meu trono? Podem tentar arrancá-lo de mim. É mais pesado do que parece. —Sua piada foi cortada por um jato de energia escura que ele desviou com um movimento quase desleixado.
Harriet lutava em modo de contenção. Cada feitiço era calculado para não atingir as crianças ou Jude e Cardan em seu raio de ação. Expelliarmus! Impedimenta! Stupefy! Os corpos rebeldes caíam, mas eram muitos, e moviam-se com a ferocidade do desespero. Ela ergueu outro Protego, um escudo dourado que deteve uma saraivada de agulhas envenenadas.
Foi então que um dos líderes rebeldes, uma fada com chifres retorcidos e olhos como poços de breu, ergueu as mãos. O ar ao seu redor distorceu-se, sugando a luz e o calor. Harriet reconheceu a sensação – era como o vácuo deixado por um Dementador, mas mais visceral, mais faminto. O rebelde sibilou palavras em um dialeto feérico antigo, e um vórtice de escuridão pura se formou entre suas mãos, um feitiço de sucção de vida, raro e proibido, que lembrava o mais obscuro dos magos negros.
Teddy acordou e chorou, sentindo a escuridão. James se contorceu, invisível, contra seu peito. O medo por eles, somado ao instinto de sobrevivência, foi mais forte que qualquer cautela. Sem pensar, Harriet mergulhou a mão no bolso e agarrou o objeto frio e liso – a Pedra da Ressurreição. Girou-a três vezes em sua mente, invocando as únicas forças que poderiam enfrentar aquela escuridão consumidora.
O ar ficou gelado. Dois formas translúcidas, banhadas em uma luz prateada e fantasmagórica, materializaram-se entre Harriet e o vórtice negro. Lily Potter. Sua expressõe eram de tristeza infinita, mas seus olhos – os mesmos olhos verdes de Harry – fixaram-se no feiticeiro rebelde com uma determinação sobrenatural. Ela não disseram nada. Apenas ergueram as mãos fantasmas. A escuridão do feitiço colidiu com a luz fantasmagórica num impacto silencioso e devastador. Uma onda de força etérea explodiu, dissipando o vórtice e arremessando o líder rebelde contra a parede com um baque de ossos quebrados.
O custo foi imediato e brutal. Usar a Pedra assim, para bloquear magia tão obscura, foi como tentar conter uma erupção vulcânica com as mãos. A magia das Relíquias da Morte, combinada com o feitiço negro, retrocedeu através dela. Veias negras, como raízes de obsidiana, subiram instantaneamente de sua mão esquerda (a que segurava a Pedra) até seu cotovelo. Uma dor incandescente, pior que qualquer Cruciatus, explodiu em seu peito, queimando suas entranhas. Ela soltou um grito rouco, abafado. Viu Jude, com um rugido de fúria, decapitar o líder rebelde caído. Viu Cardan, pela primeira vez com uma expressão que não era de diversão ou tédio, mas de alarme genuíno, virando-se para ela. Depois, as luzes se apagaram, e Harriet Potter desmaiou, a Pedra escapando de seus dedos inertes e rolando silenciosamente pelo chão de mármore, antes de desaparecer de volta ao seu bolso por um instinto próprio do artefato.
A consciência voltou em ondas. O cheiro era diferente: limpo, com notas de ervas medicinais e metal polido, substituindo o fedor de sangue e morte. A luz era suave, prateada pelo luar que entrava por uma grande janela arqueada. Harriet estava deitada em uma cama macia, coberta por lençóis de seda fria. A dor no peito era uma brasa latejante, e seu braço esquerdo pesava como chumbo, as veias negras visíveis até o cotovelo sob a manga de camisola fina que alguém a vestira.
Jude Duarte estava sentada na beira da cama. Não no trono, mas em um simples banco de madeira. Em suas mãos, um pano úmido e fresco que ela pressionava com surpreendente gentileza contra a testa suada de Harriet. Os olhos castanhos da rainha, normalmente frios e calculistas, estavam sombrios, carregados de uma emoção complexa que Harriet não conseguia decifrar – raiva? Preocupação? Frustração?
— Por que?— A voz de Jude era áspera, como se tivesse engolido vidro. —Por que arriscou sua vida? Por que expôs as crianças assim? Essa não é a sua guerra, Potter. Você poderia ter fugido. Usado seu Véu. Preservado a si mesma e a eles.— O pano pressionou com um pouco mais de força, um contraponto à suavidade anterior.
Harriet tentou se sentar, um impulso de orgulho ferido. A dor no peito a esfaqueou, forçando-a a cair de volta nos travesseiros com um gemido abafado. —Eles... estavam atrás de inocentes,— ela sibilou, ofegante. —Teddy... James... Você. Eu... não tive escolha. —A cicatriz na mão direita permaneceu fria. Proteger os inocentes era sua verdade fundamental, sua espinha dorsal.
Um riso baixo e sem humor ecoou da porta. Cardan Greenbriar estava encostado no batente, braços cruzados, mas a pose habitual de desprezo estava ausente. Seu rosto estava sério, os olhos dourados fixos em Harriet com uma intensidade que a fez sentir nua. —Mentira,— ele declarou, a palavra cortando o ar como sua espada. —Você teve escolha, tempestade. Escolhas abundantes. Escolheu ficar. Escolheu lutar. Escolheu...—Seu olhar desceu para o braço envenenado dela. —... nos proteger.
A cicatriz na mão de Harriet ardeou, uma punhalada aguda e inegável. Mentira por omissão. Ele estava certo. Ela poderia ter tentado fugir com as crianças no meio do caos, arriscando o Véu novamente. Escolhera ficar. Escolhera proteger Jude. Escolhera usar a Pedra.
Jude segurou o pulso esquerdo de Harriet com firmeza, mas sem brutalidade, puxando a manga da camisola para cima. As veias negras pareciam mais escuras sob a luz da lua, rastejando como raízes venenosas sob a pele. —Isso, —disse Jude, sua voz plana, —é veneno de obsidiana. Destilado das profundezas mais negras do Subterrâneo. Toca a alma, não apenas o corpo. Matará você em dias. Horas, se atingir o coração. —Seus olhos castanhos encontraram os verdes de Harriet. —É lento. E agonizante.
Harriet olhou para as veias negras, depois para o rosto impassível, porém tenso, de Jude, e para a expressão inusitadamente grave de Cardan. O medo, frio e rastejante, tentou se apoderar dela. Ela o empurrou para longe com a mesma teimosia que a mantivera viva contra Voldemort. —Então trate, —ela sussurrou, seu olhar desafiador fixo em Jude.— Se eu sou tão útil. Trate.
Cardan soltou uma risada, mas desta vez faltou o tom de diversão habitual. Soou mais como um som rouco de admiração forçada. —Ah, corça brava, —ele murmurou, afastando-se da porta e aproximando-se da cama. —Adoro quando você rosna. Mesmo à beira da morte.— Seus olhos dourados brilhavam com uma luz perigosa, fixos nos dela.
Foi Jude quem quebrou. Não com palavras, mas com ação. Num movimento fluido, rápido como o ataque de uma serpente, ela se inclinou para frente. Uma mão agarrou o colarinho da camisola de Harriet, puxando-a para cima, enquanto a outra entrelaçou-se em seus cabelos escuros e suados. E então, seus lábios se chocaram contra os de Harriet num beijo que não tinha nada de suave. Era fúria contida, frustração, desespero e uma atração violenta e negada por muito tempo. Era um campo de batalha, não um refúgio. Jude rompeu o contato tão bruscamente quanto começou, seus lábios estavam um pouco inchados, sua respiração ofegante. Ela olhou para Harriet, seus olhos castanhos faiscando com uma emoção crua. —Odeio isso,— ela sussurrou, a voz áspera como lixa. —Odeio que você me faça querer confiar.
Cardan riu, um som baixo e rouco que morreu em sua garganta quando Harriet agiu. Impulsionada pela dor, pela raiva contra si mesma, pelo veneno queimando em suas veias e pela eletricidade brutal do beijo de Jude, ela se lançou para frente. Não para Jude. Para ele. Sua mão direita (a da cicatriz que não doera durante o beijo de Jude, notou ela distraidamente) agarrou o tecido rico do robe de Cardan na altura da garganta. Com uma força surpreendente para alguém tão ferido, ela puxou-o para baixo. Seus lábios encontraram os dele não com fúria, mas com uma necessidade desesperada, uma confissão silenciosa da atração que sempre negara. Cardan não hesitou. Respondeu com uma intensidade que a surpreendeu. Uma mão enterrou-se em seus cabelos, puxando-a mais perto, enquanto a outra envolveu sua cintura, firmando-a contra ele, ignorando seu gemido de dor. Seu beijo era profundo, possessivo, explorador, cheio da curiosidade perversa e do desejo reprimido que ele sempre exalara.
Foi Jude quem os arrancou daquele redemoinho.— Chega! —Ela os separou com força, colocando-se entre Harriet, que recuou ofegante na cama, e Cardan, que recuou um passo, seus lábios ainda úmidos, seus olhos dourados incandescentes como sóis em miniatura, fixos em Harriet com uma expressão de puro espanto e triunfo selvagem. Jude estava pálida, sua respiração também acelerada, olhando de um para o outro como se tivessem cometido uma profanação.
Cardan limpou os lábios com o dorso da mão, um sorriso lento e perigosamente encantador começando a se formar. Ele olhou para Harriet, depois para Jude, e soltou um suspiro exagerado, mas sua voz estava mais suave, mais íntima do que nunca quando murmurou, dirigindo-se a ambas, ou talvez a si mesmo:
— Que desgraça somos nós três?
O silêncio que se seguiu foi espesso, carregado com o cheiro do veneno, o gosto dos beijos roubados e o peso de uma pergunta que nenhuma delas sabia responder. A cicatriz na mão de Harriet permaneceu quieta. A única coisa que queimava agora era o veneno em seu sangue... e a terrível, inegável verdade de que ela não podia mais fingir que não via nada. O fogo subterrâneo irrompera, e Elfhame nunca mais seria o mesmo.
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O salão subterrâneo de Elfhame era como as entranhas do próprio reino. O ar pesado cheirava a terra molhada e séculos de raízes antigas se contorcendo nas paredes e teto abobadado. Runas intrincadas, gravadas em círculo sobre pedras negras como a noite sem estrelas, pulsavam com uma luz azul-frio que não aquecia, apenas iluminava as sombras mais profundas. Essa luz fria refletia nos olhos dourados de Cardan, que observava de um nicho escuro, imóvel como uma estátua de ébano. Seu olhar era o de um predador avaliando a presa antes do salto, mas a presa – Harriet – estava além de se importar.
Teddy e James estavam sentados em um banco de musgo vivo, sob o olhar impassível de um guarda feérico com chifres de cervo. James, inocente na sua magia infantil, ria alto enquanto uma folha que caíra se transformava em uma borboleta de asas prateadas em suas pequenas mãos, um reflexo inconsciente de seu poder bruxo despertando no ar carregado de magia feérica. Teddy, porém, seus cinco anos carregando o peso de uma vida já marcada por perdas, não tirava os olhos sérios da tia. Seu cabelo, normalmente uma paleta mutante, estava num vermelho profundo e preocupado, como sangue coagulado sob a luz azulada.
Harriet mal conseguia ficar em pé. Três dias. Três dias desde o ataque, desde o veneno de obsidiana começar sua obra lenta e agonizante. As veias negras agora subiam até seu ombro, uma rede sinistra sob sua pele pálida. Cada respiração era uma facada no peito, cada batida cardíaca um martelo pesado ecoando nas raízes envenenadas de sua alma. Jude a segurava pelo braço não afetado, sua força a única coisa impedindo Harriet de cair.
— O veneno está em suas veias há três dias,— Jude declarou, sua voz ecoando no salão úmido. Ela ergueu uma adaga de obsidiana tão negra que parecia sugar a luz ao redor. A ponta era afiada como um fio de pesadelo. —O ritual exige sangue dos três: seu, meu... e dele.— Ela apontou a adaga na direção de Cardan, ainda imóvel na sombra.
Cardan deslizou para frente, saiu do nicho com a fluidez de uma sombra ganhando vida. Fez uma reverência irônica, profunda e exagerada, seus olhos dourados fixos em Harriet.
— Sempre um prazer ser útil, especialmente quando envolve meu sangue precioso,— ele murmurou, o tom debochado não conseguindo esconder a tensão nos cantos de sua boca. —Considerem uma doação real.
Harriet não olhou para ele. Seu olhar estava preso nas crianças. Em James, rindo com sua borboleta. Em Teddy, seus olhos vermelhos cheios de um medo que ela conhecia muito bem – o medo de ser deixado para trás.
— E se algo der errado? —A pergunta saiu num sussurro rouco, quase engasgado pela dor e pelo medo. Não por ela. Por eles.
Cardan riu, um som seco que estalou como um galho quebrado na quietude.
— Morrerá. Mas já está morrendo, não está, pequena tempestade?—Seu sorriso era um rasgo afiado em seu rosto pálido. —Que sorte incrível temos uma voluntária tão corajosa... ou tão desesperada.
Jude ignorou-o, como sempre. Mas sua voz, quando falou, era mais baixa, mais contida do que seu habitual tom de comando.
— O sangue feérico, combinado no círculo, neutralizará o veneno. O poder ancestral das raízes o purgará.— Ela fez uma pausa, seus olhos castanhos encontrando os verdes de Harriet, turvos pela dor. —Mas o ritual... é antigo. Profundo. Ele cria... laços. Fios de percepção, de sensação. Você sentirá coisas. Nós... sentiremos coisas. É o preço.
Laços. A palavra ecoou na mente de Harriet, misturando-se com a memória recente e brutal dos beijos trocados no quarto de Jude – a fúria da rainha, a posse de Cardan. A atração que ela tentara negar, sufocar. O ritual iria amplificar isso? Tornar isso inescapável? A ideia era mais aterrorizante do que o próprio veneno.
Ela hesitou. O salão pareceu girar. As runas azuis pulsavam como batimentos cardíacos congelados. Mas então, uma crise de tosse a dobrou ao meio. Foi violenta, arrancando-lhe o fôlego, sacudindo seu corpo frágil. Quando finalmente conseguiu erguer a cabeça, sangue escuro, quase negro, manchava seus lábios e pingava no chão de terra batida, fumegando levemente.
— Tia Harry!
Teddy se soltou das mãos de James e correu até ela, ignorando o guarda que fez um movimento instintivo. Ele agarrou sua mão não envenenada, seus dedos pequenos e quentes envolvendo os dela, gelados. Seus olhos vermelhos, enormes em seu rosto pálido, enchiam-se de lágrimas não derramadas.
— Você não vai embora, certo? Promete? Como o papai e a mamãe? —A pergunta foi um golpe baixo, carregada com a perda de Remus e Tonks, com todo o medo acumulado de sua curta vida.
Harriet olhou para aquela pequena cara corajosa, para o cabelo vermelho-sangue, uma manifestação viva de seu terror. Sentiu o peso de James, ainda rindo inconscientemente no banco. A dor no peito era insuportável, mas a dor no coração ao pensar em deixá-los era infinitamente pior. Ela ajoelhou-se com dificuldade, com a ajuda de Jude, e apertou a mão de Teddy.
— Não hoje, Ted,— ela sussurrou, limpando o sangue de seus lábios com as costas da mão, tentando sorrir. "Prometo. Não hoje." A cicatriz na mão não queimou. Era uma promessa que ela pretendia manter, custasse o que custasse.
Jude ajudou-a a ficar de pé novamente e a conduziu para o centro do círculo de runas. Cardan veio até elas, seu ar de diversão dissipado, substituído por uma concentração rara. Jude pegou a adaga de obsidiana.
Sem cerimônia, com a precisão de um cirurgião de batalha, Jude cortou a palma de sua própria mão. Sangue vermelho-rubi, brilhando com um leve tom dourado por baixo, jorrou. Ela não pestanejou. Em seguida, virou-se para Harriet e pegou sua mão direita (a da cicatriz "I must not tell lies", agora silenciosa). A lâmina negra cortou a palma de Harriet. O sangue que saiu era escuro, viscoso, quase negro, misturado com o veneno. A dor foi aguda, mas ofuscada pela dor maior que a consumia por dentro.
Por fim, Jude estendeu a adaga para Cardan. Ele olhou para a lâmina, depois para sua própria palma, e soltou um suspiro dramático.
— "Que desperdício de um bom vinho— resmungou, mas pegou a adaga. O corte foi rápido, quase negligente. Seu sangue era diferente – dourado como mel espesso, brilhando com uma luz interna, fumegando levemente ao tocar o ar frio.
Jude guiou as mãos deles sobre uma rede de raízes expostas no centro exato do círculo, onde as runas brilhavam mais intensamente. Uma gota do sangue de Jude, depois de Harriet, depois de Cardan, caiu sobre as raízes negras e retorcidas.
O efeito foi imediato. As raízes estremeceram como serpentes acordadas. Movendo-se com uma vida própria, sinuosas e rápidas, elas enrolaram-se em volta dos pulsos dos três – o pulso cortado de Jude, o pulso envenenado de Harriet, o pulso dourado de Cardan. O aperto era frio e firme, como algemas de madeira viva.
Uma onda de calor irrompeu dentro de Harriet, tão intensa que ela gritou. Não era o calor do veneno, que queimava e consumia. Era um calor vivo, pulsante, inundando suas veias, expulsando a escuridão. Mas com o calor vieram as visões, flashes rápidos e intrusivos que não eram seus:
Jude, adolescente, magra e de olhos duros, escondendo uma faca curta sob o travesseiro em um quarto estranho, seus lábios apertados em uma linha de determinação feroz e medo contido.
Cardan, não muito mais velho, bêbado e solitário, reclinado em uma sacada vazia sob um céu de estrelas distorcidas, seus olhos dourados vazios, um cálice pendendo de seus dedos frouxos, uma máscara de desdém rachada por uma solidão profunda.
Ela mesma, Harriet, mais jovem, suada e exausta, segurando James Sirius pela primeira vez, embrulhado em um cobertor, seu rosto um turbilhão de lágrimas silenciosas, medo esmagador e um amor tão intenso que doía.
Ela sentiu o choque de Cardan ao ver sua memória mais vulnerável. Sentiu a reconhecimento agudo de Jude ao ver sua própria solidão refletida na de Cardan. Era uma invasão brutal, uma exposição de almas nuas e trêmulas.
As raízes contorceram-se uma última vez, apertando com força quase ossos quebrando, e então, de repente, soltaram-se, recuando para o chão como cobras assustadas. O círculo de luz azul apagou-se com um whoosh silencioso.
Harriet caiu de joelhos no chão frio, ofegante, suando, mas a dor lancinante no peito, o peso morto no braço... haviam desaparecido. Ela olhou para seu braço esquerdo. As veias negras tinham sumido. A pele estava pálida, mas limpa, apenas a marca das raízes como um bracelete vermelho ao redor do pulso. O veneno se fora.
Cardan riu, um som rouco e sem fôlego que soou mais como um suspiro de alívio disfarçado. Ele examinava seu próprio pulso, onde o sangue dourado já coagulava, e o vermelho das marcas das raízes. —Bem,— ele tossiu, evitando olhar diretamente para Harriet ou Jude. —Isso foi... vívido.—
Jude virou-se bruscamente, limpando o sangue de sua mão cortada em suas calças. Ela evitou completamente o olhar de Harriet, sua nuca rígida, seus ombros tensos. A exposição da memória da faca sob o travesseiro, da vulnerabilidade juvenil, parecia tê-la atingido como um golpe físico.
— Funcionou,— ela disse, sua voz seca como as folhas mortas no chão do salão. —O veneno se foi. O laço... é o preço pago.
Harriet ficou de pé, trêmula, mas incrivelmente mais forte. A fraqueza física havia recuado. Mas dentro dela, onde o veneno queimava antes, agora havia algo mais. Uma centelha quente, profunda em seu ventre. Não era dor. Era... uma presença. Um calor estranho, reconfortante e ao mesmo tempo perturbadoramente íntimo. Era como se um pedaço do calor de Jude, de sua determinação férrea, e um pedaço do calor dourado e volátil de Cardan, tivessem se aninhado dentro dela, entrelaçados com seu próprio núcleo. O "laço" não era uma metáfora. Era uma conexão viva, palpável. Ela podia sentir a proximidade deles, como um zumbido baixo sob sua pele, um fio de consciência compartilhada que não poderia ser cortado.
Teddy correu até ela novamente, abraçando suas pernas, seu cabelo voltando a uma cor castanha mais calma, mas ainda manchada de tons de alívio. Harriet colocou uma mão em sua cabeça, a outra instintivamente tocando seu próprio ventre, onde a centelha nova queimava. Ela olhou para Jude, que finalmente a encarou, seus olhos castanhos revelando uma tempestade de emoções – raiva, constrangimento, e algo que poderia ser... aceitação relutante. Depois, olhou para Cardan. Ele a encarava de volta, seus olhos dourados agora inescrutáveis, mas um canto de sua boca curvado em um sorriso pequeno e perigoso, como se dissesse: "Bem-vinda ao labirinto, tempestade. Agora você está realmente presa."
O veneno fora curado. Mas o ritual tecera algo novo e irrevogável entre eles. A gaiola de ouro com espinhos acabara de ganhar novas e inquietantes dimensões. E a centelha em seu ventre era o lembrete constante de que sua fuga, se alguma vez houvera uma verdadeira, chegara definitivamente ao fim.
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A aurora em Elfhame não chegava com o dourado do sol, mas com uma névoa prateada e fria que se arrastava pelo chão como dedos fantasmagóricos. Foi nessa luz fantasmagórica que ela apareceu. Não pelas portas, mas materializando-se a partir da própria névoa, envolta em farrapos de vapor e no guinchar agourento de corvos que pousavam em seus ombros ossudos e nas mangas largas de seu manto encardido. Era a vidente.
Seus olhos eram o mais perturbador – brancos como os de um cadáver, leitosos e sem pupila, mas que pareciam ver muito além do mundo visível. Nas mãos ossudas e pálidas, ela carregava James Sirius, que não demonstrava um pingo de medo. Pelo contrário, ria, seus olhos verdes brilhando de encantamento enquanto pequenas luzes prateadas, como vagalumes capturados, dançavam nos dedos esqueléticos da vidente, formando animais e estrelas.
A cena era surreal e profundamente errada. Harriet, que patrulhava o pátio interno ao nascer do dia, sentiu um frio gelado percorrer sua espinha, diferente do frio da névoa. A centelha em seu ventre, o laço tecido pelo sangue e pelas raízes, deu um pulso forte, como um aviso. Teddy, ao seu lado imediatamente, seus instintos de protetor aguçados, endureceu. Seu cabelo, normalmente mutante, fixou-se num prateado metálico, brilhando como uma armadura sob a luz fraca, seus olhos fixos na estranha com seu irmão.
A vidente virou seus olhos cegos e, no entanto, videntes, diretamente para Harriet. Um sorriso sem dentes, apenas uma fenda nos lábios finos, esticou-se em seu rosto enrugado.
— Trouxe um presente para a Mestra da Morte,— ela sibilou, a voz como o farfalhar de folhas secas em um túmulo. Estendeu a mão livre, ossuda e trêmula, em direção a Harriet. — Uma profecia... fresca da teia do destino. Em troca de um fio de seu cabelo. Negro. Como a sombra que você carrega.
Teddy não hesitou. Pulou à frente de Harriet, pequeno mas imponente com seu cabelo-prata e postura desafiante.
— Não! —Sua voz infantil soou estranhamente adulta, ecoando a coragem de seus pais. — Não machuque ela! Devolva meu irmão!—
A vidente riu, um som seco e farfalhante que fez os corvos nos seus ombros agitarem as asas.
— Ah, pequeno metamorfomago. Sangue de guerreiro e alma de lobo sob a lua.— Seus olhos brancos pareciam perfurar Teddy. — Você será muito interessante quando crescer. Mas não tema. O presente não é para machucar. É para... esclarecer.— Ela balançou James suavemente, fazendo as luzes dançarem novamente, e ele riu, inocente do perigo.
Harriet respirou fundo. O título "Mestra da Morte" ecoou em seu íntimo, um lembrete do fardo que carregava e tentava esconder. A vidente sabia. Olhou para James, rindo naquele colo ameaçador, e para Teddy, sua pequena fortaleza prateada. A centelha em seu ventre pulsou, ansiosa ou temerosa? Sem uma palavra, ela passou a mão pela cabeça, arrancou um único fio de cabelo negro e estendeu-o para a figura sinistra.
A vidente pegou o fio com reverência. De dentro de suas vestes, tirou uma pequena tigela de bronze, antiga e gravada com símbolos que doíam aos olhos. Colocou o fio dentro. Um sussurro gutural, em uma língua que Harriet nunca ouvira mas que fez suas cicatrizes latejarem, escapou dos lábios da vidente. Ela passou a mão sobre a tigela.
O fio de cabelo incendiou-se com uma chama fria, azul-esverdeada. A fumaça que subiu não se dissipou. Em vez disso, coagulou no ar úmido da manhã, formando letras densas e fumegantes:
"A criança da morte e da coroa,
Trará o crepúsculo ou o amanhecer.
Sangue de mentira, chifres de poder,
O Véu se rasgará para ela nascer."
O silêncio que se seguiu foi quebrado por uma voz conhecida, carregada de um desdém forçado que não conseguia esconder uma ponta de inquietação.
— Que tipo de enigma patético é esse?
Cardan Greenbriar estava encostado em um arco de pedra alguns passos atrás, uma taça de vinho rubi esquecida em sua mão, meio erguida. Seus olhos dourados, normalmente cheios de diversão perversa, estavam fixos nas palavras de fumaça, estreitos e calculistas. O desprezo na voz não combinava com a leve tensão em sua mandíbula. Ele odiava o desconhecido, especialmente quando envolvia profecias e "Mestras da Morte".
A vidente virou a cabeça para ele, seu sorriso sem dentes reaparecendo, mais sinistro agora.
— Sua criança,— ela sibilou, apontando um dedo ossudo não para Cardan, mas para o ventre de Harriet, onde a centelha queimava como uma brasa sob as palavras da profecia. Harriet sentiu um calafrio, o toque invisível do dedo como um gelo na pele. — Fruto do laço forjado no sangue e na raiz... Ela será ponte entre mundos ou a ruína deles.— Os olhos brancos giraram de volta para Harriet, perfurando-a. — Escolha bem em quem confiar, Mestra da Morte. Pois até o sangue mais quente pode ser uma mentira, e os chifres mais altos podem esconder o abismo.—
Antes que Harriet pudesse reagir, antes que Cardan pudesse fazer mais que um movimento à frente, antes que Jude – que Harriet sentiu se aproximando como uma tempestade silenciosa através do laço – pudesse chegar, a vidente simplesmente desvaneceu-se. Não desapareceu na névoa; foi como se a própria névoa a engolisse. Um último guincho de corvo ecoou, e então... nada.
James, subitamente privado das luzes dançantes e do colo, caiu no chão frio de pedra, seu riso transformando-se em choro assustado num piscar de olhos.
— Jamie!
Teddy agiu primeiro. Não apenas correndo. Ele cresceu. Num instante, seu corpo infantil esticou-se, seus membros ficaram mais longos, mais fortes – uma versão adolescente de si mesmo, ainda com o cabelo prateado, mas agora com ombros mais largos e uma expressão mais madura. Foi esse Teddy adolescente que agarrou James chorando, envolvendo-o em seus braços agora maiores, transformados pelo amor e pelo instinto de proteger.
— Shhh, Jamie, estou aqui. Ela se foi. Estou aqui. Sua voz era mais grave, mas o conforto era o mesmo.
Harriet ficou paralisada, olhando para o lugar onde a vidente estivera, depois para as palavras de fumaça que começavam a se dissipar, mas cujo eco queimava em sua mente. Sua criança. A centelha em seu ventre não era apenas um laço ou um efeito colateral. Era uma criança. Dela. Deles. Fruto do ritual, do sangue compartilhado, daquela noite de veneno e beijos roubados.
"Criança da morte e da coroa..." Mestra da Morte e o Rei Feérico.
"Trará o crepúsculo ou o amanhecer..." Destruição ou esperança.
"Sangue de mentira..." O que era verdade em Elfhame? O laço? Os sentimentos? Cardan?
"Chifres de poder..." Cardan, sem dúvida. Mas também as intrigas da corte?
"O Véu se rasgará para ela nascer..." O portal entre os mundos seria aberto? Violentado?
O peso daquelas palavras era esmagador. Maior que o da Varinha das Varinhas, maior que o título de "A Menina que Sobreviveu". Era o peso de um destino ainda não nascido, amarrado ao seu, e aos destinos de dois reinos. A centelha em seu ventre queimou com uma intensidade nova, não mais apenas uma presença, mas uma promessa. Uma promessa de crepúsculo ou amanhecer. Uma criança que seria ponte... ou ruína.
Ela olhou para Teddy, seu afilhado transformado em adolescente para confortar o irmão, um vislumbre do guerreiro que ele seria. Olhou para Cardan, que agora encarava o vazio com uma expressão indecifrável, a taça de vinho esquecida, seus chifres metafóricos de poder pairando sobre ele. Sentiu Jude aproximar-se, sua presença uma onda de raiva contida e preocupação aguçada através do laço.
A escolha mencionada pela vidente ecoou: "Escolha bem em quem confiar." Mas como confiar em qualquer coisa neste labirinto de ouro e espinhos, quando até a vida que crescia dentro dela era um enigma envolto em fumaça e profecia? O Véu da Morte, sua antiga rota de fuga, agora parecia a única saída possível para o futuro de sua criança – uma saída que prometia rasgar o tecido da realidade. O amanhecer ou o crepúsculo esperavam, e Harriet Potter, mais uma vez, estava no olho do furacão. A centelha pulsou, insistente, lembrando-a de que o tempo de esconder-se, até de si mesma, havia terminado.
Chapter Text
A luz da manhã em Elfhame filtrou-se pelas cortinas de hera, revelando o que a noite tecera. Ao vestir-se, Harriet congelou. Das laterais dos tornozelos, subindo em delicados arabescos pelas suas coxas, serpenteavam vinhas douradas. Não eram tatuagens, pareciam raízes de luz sob sua pele, finas e intrincadas como filigrana, pulsando com uma suave luminescência ao toque da luz. Magia viva. O preço do ritual, ou seu legado, manifestando-se.
Jude entrou sem bater, como era seu hábito, e parou abruptamente ao ver as marcas. Seus olhos castanhos estreitaram, analisando cada curva dourada com a frieza de um general avaliando uma nova arma desconhecida.
— —São marcas do ritual,—ela declarou, a voz neutra, mas Harriet sentiu a onda de desconfiança aguda através do laço que as unia. —A magia ancestral de Elfhame... está te tecendo em seu tecido. Alterando você. Não sabemos no quê, nem até que ponto.—A implicação era clara: Harriet estava se tornando menos humana, mais feérica. Uma incógnita perigosa.
Cardan espreitou pela porta, recostado na moldura com uma graça indolente. Mastigava uvas escuras, o suvo rubro como sangue em seus lábios. Seus olhos dourados percorreram as vinhas expostas nas coxas de Harriet, e um sorriso lento, deliberadamente provocador, surgiu.
— Parece arte, querida,— ele murmurou, engolindo uma uva. —Arte viva. Deveria mostrar mais, talvez? O reino apreciaria.— Seu olhar encontrou o de Jude, desafiador, brincando com fogo.
No tapete, James Sirius, sentado entre blocos de madeira flutuantes (sua magia bruxa despertando), apontou um dedinho para as vinhas nas pernas de Harriet.
— Preta! Brilha! —Ele balbuciou, rindo com um som cristalino, e engatinhou em sua direção, tentando agarrar as linhas luminosas. Quando sua pequena mão tocou a pele de Harriet próximo a uma vinha, o desenho brilhou suavemente, como um vaga-lume respondendo ao toque. James riu mais alto, encantado.
Teddy, porém, estava escondido atrás das pernas de Harriet, seu rosto pressionado contra ela. Seus cabelos, normalmente uma paleta de emoções, estavam negros como carvão, lisos e opacos, refletindo medo e confusão. Ele espiou as vinhas com olhos arregalados.
— Estão feias? —ele perguntou, sua voz pequena e contida.— A tia Harry está doente?
Harriet ajoelhou-se, ignorando a dor fantasma no peito e o olhar ardente de Cardan. Ela envolveu Teddy com um braço, puxando-o para perto. Com a outra mão, acariciou seus cabelos escuros, tentando transmitir calma.
— "Não, Ted,— ela sussurrou, seu coração apertando ao sentir o tremor dele. —Não estão feias. São só... diferentes. Como o seu cabelo que muda, ou as orelhas pontudas que você faz às vezes. São parte de mim agora. Parte da magia deste lugar.— A cicatriz na mão não queimou. Era a verdade mais pura que ela poderia oferecer naquele momento. Ela estava mudando. Elfhame a marcara, por dentro e por fora.
Jude não se convenceu. Com um movimento brusco, ela agarrou Cardan pelo braço e o puxou para fora do quarto, fechando a porta com um clique seco. Harriet ouviu os sussurros furiosos do lado de fora, mesmo através da madeira grossa.
— "Isto é perigoso além da medida, Cardan!" A voz de Jude era um silvo abafado. "Se o Subterrâneo a vir assim... marcada pela magia ancestral, grávida de uma criança profetizada... Eles a verão como um símbolo. Um alvo. Ou pior, um troféu. Podem tentar arrancá-la de nós, ou matá-la para impedir o que quer que essa criança represente!"
Cardan respondeu, sua voz mais baixa, mas a tensão palpável mesmo assim:
— —Ah, Jude. Sempre tão dramática,— ele começou, mas faltou a costumeira leviana. —Elas são parte dela agora. Irrevogavelmente. Como o laço é parte de nós três. Escondê-las é inútil. Negá-las é tolice.— Uma pausa.— Ela não é mais apenas a fugitiva, a mortal. Ela é... de Elfhame. Por sangue, por magia, e agora por marca.
O silêncio que se seguiu foi pesado. Harriet imaginou Jude cerrando os punhos, Cardan encarando-a com aquela intensidade dourada que desarmava. A realidade das palavras dele ecoou dentro dela. A gaiola – a bela, perigosa gaiola de espinhos dourados que era Elfhame – fechara-se em volta dela de forma definitiva. Não havia Véu da Morte que a levasse embora agora. Ela estava enraizada. Marcada. Grávida de um destino desconhecido.
A noite caiu, trazendo o brilho prateado da lua gigante de Elfhame. Harriet encontrou Teddy acordado, sentado no chão frio da varanda de seus aposentos. Na mão, ele segurava um giz de luz – um presente enigmático de Cardan semanas antes, que traçava linhas prateadas e persistentes no ar. Teddy desenhava figuras no chão de pedra: um lobo, uma coruja, uma mulher com linhas brilhantes subindo pelas pernas. Sua expressão era distante, séria.
Harriet sentou-se silenciosamente ao lado dele, encostando-se à parede fria. A centelha em seu ventre, a criança da profecia, pulsava suavemente, como uma segunda lua interna. As vinhas douradas nas coxas pareciam aquecê-la contra o frio da noite.
Teddy não olhou para ela. Continuou a desenhar, sua voz saiu baixa, carregada de uma maturidade que doía:
— Vamos ter que fugir de novo?—Ele perguntou, traçando a asa da coruja com mão firme. —Como antes? Quando atravessamos o pano frio?
A pergunta foi uma facada. Harriet olhou para o perfil do afilhado, para os cabelos que agora eram um castanho-escuro e liso, refletindo sua ansiedade contida. Ele lembrava. Lembrava do terror da fuga, do Véu sussurrante, do mundo desconhecido. Ele estava se preparando, mentalmente, para outra retirada.
Ela colocou um braço em volta de seus ombros, puxando-o para perto. Ele não resistiu, encostando a cabeça nela.
— Não, Ted,— ela respondeu, a voz firme, mais firme do que se sentia por dentro. —Não desta vez. Este... este é o nosso lugar agora.— Ela olhou para os jardins suspensos banhados de luar, para as torres do palácio que se perdiam na escuridão. —Para o bem ou para o mal. Nós pertencemos aqui.—Era uma aceitação, não uma escolha. A gaiola era sua casa.
Teddy ficou quieto por um momento, absorvendo as palavras. Então, ele se virou ligeiramente dentro de seu abraço, seus grandes olhos – hoje de um azul profundo – encontrando os dela. Ele apontou o giz de luz, não para seus desenhos, mas para sua barriga.
— E o bebê?— Ele perguntou, simples, direto. —O que brilha dentro de você. Eu vi. Quando a senhora esquisita veio... ele brilhava mais forte.
Harriet engoliu seco. O ar pareceu sair de seus pulmões. Ela não tinha contado. Jude e Cardan sabiam, através do laço e da profecia, mas Teddy... Teddy tinha visto. Com a percepção crua de uma criança sensível à magia, ou com o dom metamorfomago que o ligava às energias ao redor, ele percebera o segredo mais profundo.
— Que... que bebê?—Ela tentou, o instinto de proteger, de esconder o perigo que a criança representava, falando mais alto.
Teddy apenas olhou para ela, seus olhos azuis sérios, perscrutadores. Não houve acusação, apenas uma triste compreensão. Ele sabia que ela estava tentando protegê-lo, mesmo mentindo.
Harriet não respondeu com palavras. Não poderia. Em vez disso, puxou-o com mais força contra si, abraçando-o com toda a força que tinha, enterrando o rosto em seus cabelos escuros. Ele cheirava a giz de luz e a algo indefinivelmente dele – coragem e vulnerabilidade misturadas. Teddy se aconchegou, envolvendo-a com seus bracinhos, aceitando o silêncio, o abraço, a verdade não dita.
Sob o luar, as vinhas douradas nas pernas de Harriet pulsaram suavemente, como um coração secreto batendo em uníssono com a centelha em seu ventre e com o pequeno guerreiro em seus braços. A fuga terminara. O caminho adiante era labiríntico, perigoso e desconhecido, pavimentado com profecias e raízes de luz. Mas naquele momento, enraizada pela magia, pelo sangue e pelo amor, Harriet Potter não estava sozinha. A gaiola fechara-se, mas dentro dela, talvez, pudesse crescer algo além do medo. Algo que brilhava.
+
A noite em Elfhame era um manto pesado, tecido com sussurros de magia ancestral e o peso das profecias. Harriet adormeceu exausta, mas o sono não trouxe refúgio.
O sonho foi uma facada na mente:
Ela estava em um campo de batalha apocalíptico, um lugar onde mundos colidiam. De um lado, bruxos e bruxas com varinhas erguidas, lançando feitiços que rasgavam o céu em cores de morte – verdes Avadas, vermelhos de estupor, azuis de desarmes. Do outro, hostes de fadas do Subterrâneo e da Corte, suas armaduras de ébano e ossos retorcidos brilhando sob um sol sanguíneo, brandindo espadas negras que cuspiam veneno de estrelas cadentes e garras que distorciam o ar. O chão tremia sob o impacto de magias brutais e golpes feéricos. O cheiro era de sangue, ozônio e terra queimada.
E no centro do inferno, isolada em um círculo de destruição, estava uma criança. Não mais que três ou quatro anos. Seus cabelos eram negros como os de Harriet, desgrenhados. Mas eram seus olhos que prendiam – verdes brilhantes, iguais aos dela, porém inundados de lágrimas prateadas que corriam em rios silenciosos. E, curvando-se graciosamente para trás de sua testa pequena, chifres delicados e translúcidos, como cristais de geada, que brilhavam com uma luz interna. A criança chorava sem som, seu pequeno corpo tremendo de terror absoluto.
E cada lágrima que caía de seus olhos verdes não molhava o solo. Em vez disso, ao tocar o ar, rasgava-o. Cada gota prateada abria um portal minúsculo, instável, mostrando cenas fugazes e aterrorizantes: a sala de estar dos Dursley implodindo; o Salão Principal de Hogwarts em chamas; o palácio de Elfhame desmoronando em raízes mortas; o Vácuo além do Véu, cheio de vozes famintas. Os portais cintilavam e se fechavam, mas novos surgiam a cada lágrima, transformando o ar ao redor da criança em um queijo suíço de realidades despedaçadas.
A criança chorava. Os mundos sangravam através de suas lágrimas.
Harriet acordou com um grito abafado, sentando-se na cama num movimento brusco. O suor frio encharcava sua camisola, seus cabelos colados ao rosto. Suas mãos tremiam incontrolavelmente, pressionadas contra sua barriga ainda plana, como se pudesse proteger a centelha que crescia lá dentro do terror do sonho. A imagem dos olhos verdes e chifres de cristal, das lágrimas rasgando a realidade, estava gravada em sua retina. Sua criança. A ponte ou a ruína.
O ar no quarto estava gelado, pesaroso. As vinhas douradas em suas pernas pareciam pulsar com uma luz fraca e ansiosa, reagindo ao seu pânico.
— Sonhos em Elfhame raramente são apenas fantasias, Harriet Potter.
A voz surgiu da escuridão mais profunda, ao lado da cama. Harriet agarrou a varinha sob o travesseiro num reflexo, apontando-a para a sombra, seu coração batendo como um tambor de guerra. Mas não havia necessidade. A sombra se materializou em Cardan Greenbriar, sentado na beirada de sua cama com a postura descontraída de um gato satisfeito. A lua prateada que entrava pela janela iluminava metade de seu rosto, fazendo seus olhos dourados brilharem como os de um predador noturno, fixos nela com intensidade hipnótica.
— Você não deveria estar aqui,—ela sussurrou, a voz rouca do sono e do terror. O laço entre eles vibrava, transmitindo uma mistura de sua própria agitação e... algo mais? Uma curiosidade profunda, uma inquietação contida vinda dele.
Cardan ignorou a reprimenda. Seu sorriso era um fio de prata no escuro.
— Coincidência curiosa,— ele murmurou, seu olhar baixando por um instante para suas mãos ainda tremendo sobre o ventre. —Esta noite, também sonhei. Sonhei com uma corça magnífica, ferida mas feroz, seus cascos cravados na terra, cercada por lobos de sombra com dentes de obsidiana.— Ele ergueu a mão lentamente, não para sua varinha, mas para sua barriga. Seu dedo indicador tocou o tecido fino da camisola, bem acima do umbigo. O toque foi leve como uma teia de aranha, mas queimou como um ferro em brasa na pele de Harriet. —E sonhei,— ele continuou, sua voz um sussurro sedutor e perigoso, "com um filhote trêmulo, escondido sob sua barriga... com pequenos chifres de cristal brotando de sua testa. Como geada sob o luar.—
Harriet empalideceu, todo o sangue drenando de seu rosto. O ar faltou em seus pulmões. A imagem do sonho dele era demasiado precisa. Era sua visão. O laço... o ritual... estava compartilhando sonhos agora?
— Não... não sabe do que fala,— ela forçou as palavras, tentando desviar o olhar, tentando negar a realidade que queimava em seu ventre e agora ecoava em seus pesadelos compartilhados. —São apenas sonhos estranhos. Deste lugar.
A resposta foi imediata e dolorosa. A cicatriz na palma de sua mão esquerda – queimou com uma dor aguda e punitiva, como se Umbridge estivesse lá, gravando a mentira em sua carne com a pena mágica mais uma vez. Ela conteve um gemido.
Cardan viu. Seus olhos dourados estreitaram, cativados pela dor que ela não conseguiu esconder totalmente. Ele se inclinou para frente, tão perto que seu hálito quente acariciou sua orelha, carregado do cheiro doce e embriagante de vinho de ameixa selvagem e algo mais profundo, selvagem – sua essência feérica.
— Mentir para um rei, minha corça brava,— ele sibilou, a voz uma mistura de reprovação e puro deleite perverso, —é um pecado capital em qualquer corte que se preze. Punível com coisas... desagradáveis.— Seus lábios quase tocaram sua têmpora. —Mas que delícia indizível é ver você tentar. A cada tremor, a cada centelha de dor naquela marca fascinante... é como assistir a um fogo dançar.
Antes que Harriet pudesse reagir – antes que pudesse empurrá-lo, gritar, ou pior, ceder à vertigem perigosa que sua proximidade e suas palavras provocavam –, Cardan recuou. Não se levantou, não fez nenhum movimento brusco. Ele simplesmente... desvaneceu-se. Como se sua forma sólida se dissolvesse na própria escuridão que o trouxera. Um instante ele estava ali, sua presença quente e opressiva preenchendo o espaço, no instante seguinte, apenas o cheiro residual de floresta úmida e vinho doce permanecia, e o vazio onde ele estivera.
Harriet ficou sentada na cama, imóvel, a varinha ainda apontada para o nada, as mãos agora não mais tremendo, mas congeladas sobre o ventre. A queimação da cicatriz diminuía, deixando uma dor latejante. As vinhas douradas em suas pernas pulsavam em um ritmo lento e constante, como se sintonizadas com a pequena vida dentro dela – a criança de olhos verdes e chifres de cristal, cujas lágrimas podiam rasgar o mundo.
O silêncio da noite a envolveu, mas era um silêncio carregado. Carregado com o eco da profecia, o peso do sonho compartilhado, o sabor perigoso da verdade quase confessada e a inescapável presença dos laços que a prendiam a Elfhame, a Cardan, a Jude, e ao destino que crescia dentro dela. A gaiola não apenas se fechara; suas grades agora eram feitas de sonhos proféticos, sangue compartilhado e raízes douradas sob sua pele. E Harriet Potter sabia, com uma certeza gelada, que não havia mais voltar atrás. O jogo final começara, e sua criança era a peça central. ela sussurrou, a voz rouca do sono e do terror. O laço entre eles vibrava, transmitindo uma mistura de sua própria agitação e... algo mais? Uma curiosidade profunda, uma inquietação contida vinda dele.
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O Jardim das Rosas de Espinhos era um lugar de beleza perigosa. Flores rubras, maiores que punhos fechados, desabrochavam entre espinhos negros e afiados como punhais. Foi aqui que Jude Duarte encontrou Harriet Potter, ajoelhada na terra úmida, tentando guiar as mãos pequenas de Teddy Lupin. O menino franzia a testa, concentrado, enquanto seus cabelos passavam de um rosa choque para um verde-limão brilhante.
— Mais escuro, Ted, — Harriet instruía, suave. — Como a cor da terra depois da chuva. Ou castanho, como os galhos velhos. Algo que não grite 'olhem para mim' em uma corte cheia de... curiosos.
Teddy tentou novamente, os fios tremeluzendo e assumindo um tom de âmbar escuro, quase marrom. Não era perfeito, mas era um progresso.
Jude apareceu como uma sombra projetada pelo sol alto, seu rosto impassível, mas os olhos castanhos escaneando o jardim com habitual desconfiança. Sem preâmbulo, ela falou:
— Preciso de sua ajuda.— Sua voz era um fio de aço. — Há um traidor na Corte. Alguém envenenou meu vinho ontem à noite. Não o suficiente para matar – apenas para avisar."
Harriet levantou-se, limpando as mãos na saia. Teddy imitou-a, ficando ao seu lado, seu cabelo agora um castanho discreto, mas seus olhos arregalados.
— Por que confiaria em mim para isso?— Harriet perguntou, a desconfiança antiga pairando no ar. Jude sempre via utilitário, não confiança.
Em vez de responder, Jude fez algo inesperado. Ela puxou a manga da própria blusa de couro fino, expondo o antebraço esquerdo. Lá, gravada na carne pálida com a mesma precisão cruel da marca de Harriet, havia uma cicatriz. Não eram palavras em inglês, mas em uma língua feérica antiga, que Harriet, por algum instinto do laço ou da magia de Elfhame, compreendeu perfeitamente: "Eu Devo Ser Forte". As letras eram rígidas, angulares, uma sentença autoimposta.
— Somos marcadas, você e eu— Jude disse, sua voz mais baixa, sem perder a dureza, mas com um traço de reconhecimento amargo. — Marcadas por verdades que nos doem, que nos moldaram em armas. Você carrega um detector de mentiras na carne. Eu carrego o imperativo da força.— Seu olhar encontrou o de Harriet, intenso.— Use sua maldição, Potter. Descubra quem mente. Descubra quem ousa tentar enfraquecer a Coroa.
O pedido era uma faca de dois gumes. Confiança e manipulação. Mas a cicatriz de Jude, tão parecida e tão diferente da sua, falou mais alto que as dúvidas. Harriet acenou com a cabeça, uma vez, curta. — Mostre-me os suspeitos.
O Banquete da Lua de Prata foi um espetáculo de máscaras brilhantes e palavras afiadas. Harriet circulou entre os cortesãos, vestida com um robe de seda verde-escuro que escondia as curvas iniciais de sua gravidez e as vinhas douradas nas pernas. Teddy e James estavam sob os cuidados vigilantes de uma serva fada confiável de Jude. A cicatriz em sua mão esquerda era um carvão em brasa sob a luva fina que usava. Cada sorriso falso, cada elogio vazio, cada sussurro malicioso fazia a marca arder como um farol de dor.
Jude estava sentada no alto estrado com Cardan, observando Harriet com olhos de falcão. Cardan, por sua vez, parecia entediado, brincando com uma uva dourada, mas seus olhos dourados seguiam cada movimento de Harriet com interesse aguçado.
Foi quando Lady Lyra, uma fada de cabelos prateados como cascata e olhos violeta, se aproximou de Harriet com um sorriso de serpente. Seu perfume era doce demais, enjoativo.
— Querida fugitiva,— ela cantou, tocando o braço de Harriet com dedos gelados. — Como é maravilhoso ver a Rainha tão... generosa. Aceitando uma mortal, grávida ainda por cima, em nosso meio tão sagrado. Uma verdadeira mostra de compaixão, não acha?
A palavra "grávida" foi sibilada como um segredo, mas o veneno por trás do elogio foi como um golpe. E a dor na mão de Harriet explodiu. Não era um formigamento, não era um latejar. Foi uma agonia branca e aguda, como se sua mão estivesse sendo esmagada em um torno em brasa. Ela conteve um grito, recuando um passo, o rosto contraído.
Sem hesitar, Harriet virou-se e caminhou até o estrado. Inclinando-se como se fosse ajustar a toalha da rainha, ela sussurrou, sua voz trêmula de dor contida:
— Ela mentiu. Sabe sobre o veneno. Sabe sobre... a criança. E o elogio à sua 'generosidade' foi uma punhalada.
Jude não moveu um músculo, mas seus olhos castanhos escureceram como tempestade. Um leve aceno.
No dia seguinte, Lady Lyra foi encontrada exilada nas fronteiras gélidas de Elfhame. Suas propriedades, suas joias, seus servos – tudo foi absorvido pela Coroa. A mensagem foi clara e brutal.
Cardan observou a execução do julgamento de sua varanda, um sorriso de lado brincando em seus lábios. Quando Jude passou por ele, ele murmurou, baixo o suficiente para só ela ouvir:
— Cuidado, minha feroz rainha. Nossa pequena detectora de mentiras pode ser mais útil... e mais perigosa... do que você pensa. Ela não apenas encontra traidores. Ela os expõe com a própria dor. E dor, em Elfhame, é uma arma que atrai mais do que moscas.
semana depois ao ritual...
As semanas se passaram, trazendo mudanças mais profundas do que a política da corte. As vinhas douradas de Harriet subiram mais alto, agora entrelaçando seus quadris e a parte inferior das costas, pulsando com uma luz quente e constante que parecia emanar de seu centro. Sob as roupas largas e os encantamentos fracos de dissimulação que ela ainda tentava usar, sua barriga começou a arredondar-se, uma curva suave mas inegável. A centelha havia se tornado uma chama constante, um pequeno sol de vida e magia entrelaçada que queimava dentro dela.
Foi durante uma inspeção às defesas do palácio que Jude a encostou em um corredor vazio. A rainha estava vestida para combate, couro e metal, e seu olhar foi direto ao ventre de Harriet, agora mais perceptível sob a túnica de linho.
— Está doente, Potter?— Jude perguntou, sua voz áspera, mas um traço raro de algo que poderia ser preocupação crua na sobrancelha franzida. Sem esperar resposta, ela agarrou o pulso de Harriet com a força de uma guerreira, seus dedos buscando um pulso, avaliando a temperatura da pele. O laço entre elas vibrou, transmitindo a inquietação de Jude, sua avaliação clínica.
Harriet manteve a respiração estável. — Não,— ela respondeu, simples, direta. A cicatriz na mão permaneceu silenciosa. Não era doença. Era vida. Uma verdade fundamental.
Jude soltou seu pulso, seu olhar ainda penetrante, mas sem pressionar mais. Ela sabia. Sabia desde a profecia, desde o laço. Mas ver o crescimento físico era diferente. Ela acenou com a cabeça, uma vez, e seguiu seu caminho, deixando Harriet com o coração batendo forte, mas intacta.
Cardan, porém, nunca fora um tolo, e sua perspicácia era alimentada pela conexão do laço e por uma obsessão perversa. Ele a encontrou na Biblioteca , um labirinto de estantes vivas e pergaminhos sussurrantes. Harriet estava tentando decifrar um texto sobre magia de barreira quando ele apareceu, silencioso como um gato. De repente, ele estava lá, seu corpo bloqueando a única saída do nicho onde ela estava.
— Sua magia,— ele murmurou, avançando um passo, forçando-a a recuar contra a estante de madeira viva que parecia respirar. — Cheira diferente. Mais doce. Mais densa. Mais... viva.— Seus olhos dourados não estavam brincando. Eram sérios, intensos, quase vulneráveis por um instante. Ele ergueu a mão, não com violência, mas com uma determinação que a paralisou. — Quantos meses, Harry? — Sua voz era um sussurro áspero enquanto sua mão grande e quente pressionava-se contra o tecido fino de sua túnica, sobre a curva inconfundível de seu ventre.
Harriet tentou empurrá-lo, mas ele era imóvel como uma montanha. O pânico, o instinto feroz de proteger a criança dentro dela, a fez agarrar-se à mentira como um escudo.
— Não é seu!— A mentira saiu como um latido, carregada de desespero.
A reação foi instantânea e brutal. A cicatriz em sua mão QUEIMOU com uma violência que ela nunca experimentara. Foi como ser espetada por uma adaga em brasa, uma dor tão aguda e profunda que arrancou um grito sufocado dela. As pernas falharam. Ela caiu de joelhos no chão de raízes entrelaçadas, lágrimas quentes e involuntárias escorrendo pelo seu rosto, sua mão esquerda agarrada à direita como se pudesse sufocar o fogo.
Cardan não hesitou. Ele ajoelhou-se diante dela, seus olhos dourados arregalados não com triunfo, mas com algo parecido com alarme genuíno. Suas mãos, surpreendentemente gentis, envolveram seus ombros, impedindo-a de cair completamente.
— Por quê?— A pergunta saiu áspera, confusa. — Por que esconder isso de mim?— Não era a voz do rei caprichoso, mas de um homem confrontado com uma dor que não entendia.
Harriet ergueu o rosto encharcado de lágrimas, sua visão embaçada pela dor e pelo medo. A verdade, a verdade terrível e protetora, jorrou:
— Porque seu filho... — ela engasgou, — sua herdeira... ela será um trunfo para seus inimigos assim que souberem. Um alvo. Um pedaço de você exposto. E eu... eu não posso perdê-lo. Não posso perdê-la.— A admissão do medo, da vulnerabilidade, foi tão avassaladora quanto a dor da cicatriz.
Cardan ficou imóvel por um longo momento, olhando para ela, para suas lágrimas, para sua mão ainda tremendo de dor, para a curva de seu ventre onde sua mão ainda repousava, agora com uma leveza diferente. Então, ele riu. Mas foi um som vazio, sem humor, ecoando na biblioteca silenciosa. Uma risada de amarga compreensão.
— Ah, Harry, —ele murmurou, seu polegar limpando uma lágrima de sua bochecha com um gesto que era estranhamente terno. —Minha corça brava. Você já o perdeu. Você já a perdeu para Elfhame no momento em que a centelha acendeu. Nada aqui, nada tão precioso, tão poderoso, fica escondido nas sombras por muito tempo.—Seus olhos dourados refletiam a luz fraca, sérios como a própria profecia. —A única escolha que nos resta é como protegê-la. E por quem.
A gaiola não apenas se fechara em volta de Harriet; agora envolvia a vida que crescia dentro dela. As sombras de Elfhame se alongavam, e o jogo pelo futuro da criança de morte e coroa, de olhos verdes e chifres de cristal, começara para valer. E a única certeza era que o preço da proteção seria pago em sangue e verdades reveladas.
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O crepúsculo em Elfhame tingia os jardins de tons de ametista e âmbar, quando Harriet encontrou Jude sozinha no Bosque– um recanto onde flores de cristal brotavam entre ervas dançantes, iluminadas por vaga-lumes mágicos. A rainha estava sentada em um banco de raízes entrelaçadas, a postura rígida, mas os ombros ligeiramente curvados sob o peso invisível da coroa. Nas mãos, ela segurava Lily, a pequena coruja de estimação de Harriet, que piava suavemente, bicando seus dedos com confiança inesperada.
— Ela fugiu da gaiola de novo, — Harriet explicou, aproximando-se com passos silenciosos. — Parece que gosta mais de você do que de mim.
Jude não se virou, mas seus dedos – calejados por espadas e intrigas – afagaram as penas macias da coruja com uma delicadeza que Harriet nunca vira.
— Animais... são mais simples que cortesãos, — Jude murmurou, sua voz menos afiada na penumbra. Ela não mente. Não conspira.
Harriet sentou-se ao seu lado, a distância entre elas carregada de meses de alianças forjadas em sangue, verdades dolorosas e o laço inquieto que agora as unia. O ar cheirava a orvalho e flores noturnas. As vinhas douradas nas pernas de Harriet pulsavam suavemente, reagindo à calma do lugar e à presença tranquila de Jude.
— Teddy desenhou você hoje,— Harriet quebrou o silêncio, um sorriso pequeno tocando seus lábios.— Com chifres de rainha e uma espada de luz. Disse que você protege como a 'muralha de estrelas'.
Jude soltou um som baixo, quase um riso abafado. Lily a bicou no dedo, exigindo mais carinho.
— Crianças veem heróis onde há apenas sobreviventes,— ela respondeu, mas Harriet viu o canto de sua boca suavizar. Um raro sinal de paz.
Foi então que James apareceu, correndo desequilibrado entre as flores de cristal, seu cabelo escuro em desalinho. Ele segurava uma borboleta luminosa que Teddy criara com o giz de luz de Cardan. Ao ver Jude, seus olhos verdes arregalaram-se, e ele cambaleou em direção a ela, estendendo o presente frágil.
— Pra Ju!— ele balbuciou, esparramando-se nos pés dela.
Jude congelou por um instante, a rainha de gelo diante da tempestade desastrada de uma criança. Lentamente, ela se inclinou, pegou James com uma mão hábil sob seu bracinho, e o acomodou no colo, ao lado de Lily. A borboleta de luz pousou no joelho dela, tremeluzindo.
— Obrigada, pequeno aventureiro, — Jude sussurrou, tão baixo que só Harriet ouviu. Seu dedo tocou o narizinho de James, que riu, um som puro que ecoou entre as árvores.
Harriet observou a cena: a guerreira impenetrável segurando o filho dela com a mesma destreza com que empunhava uma espada, a coruja pousando em seu ombro, a luz dourada da borboleta iluminando seu perfil severo com tons quentes. Algo dentro de Harriet se desfez – uma muralha de medo, de desconfiança. O laço entre elas vibrou, não com dor ou alerta, mas com uma calorosa ressonância, como um acorde musical perfeito.
Sem pensar, Harriet estendeu a mão. Não para James, não para Lily. Seus dedos tocaram suavemente o rosto de Jude, desviando um fio de cabelo castanho que caíra sobre sua testa. O toque foi leve como a asa da borboleta, mas Jude estremeceu como se fosse um choque, seus olhos castanhos – sempre tão calculistas – encontrando os de Harriet com uma vulnerabilidade crua.
— Você... brilha aqui, — Harriet sussurrou, seu polegar acariciando a cicatriz oculta sob a manga de Jude,— Quando cuida deles. Não é força, Jude. É luz.
Jude não recuou. Não puxou a manga para cobrir a marca. Permaneceu imóvel, a respiração suspensa, os olhos mergulhados nos olhos verdes de Harriet como um náufrago em águas desconhecidas. O ar entre elas ficou carregado, doce e pesado como o perfume das flores de cristal.
Foi Jude quem fechou a distância. Não com a fúria do primeiro beijo, mas com uma lentidão solene, como quem atravessa um limiar sagrado. Seus lábios encontraram os de Harriet com uma suavidade que arrancou um suspiro abafado de ambas. Não era fogo, não era desespero. Era um reconhecimento. A rendição à atração que negavam, ao laço que as unia, à confiança que florescia entre espinhos. O beijo foi curto, profundo, e carregado de uma promessa silenciosa: Estou aqui. Vejo você.
Quando se separaram, um rubor raro subiu pelas maçãs do rosto de Jude. Lily piava, agitando as asas. James, esquecido no colo, batia palmas para a borboleta de luz, rindo.
— Isso... não pode acontecer de novo, — Jude murmurou, sua voz rouca, mas sem a força habitual. Era uma mentira frágil, e ambas sabiam. A cicatriz de Harriet permaneceu silenciosa.
— Não, — Harriet concordou, suavemente, seus dedos ainda tocando levemente o pulso de Jude, onde o laço pulsava em sintonia com as vinhas douradas e a pequena vida em seu ventre. — Mas aconteceu.
Jude não respondeu. Apenas segurou James mais perto, seu olhar perdido nas flores de cristal que refletiam a luz do crepúsculo – e o reflexo de Harriet ao seu lado. O jardim, por um momento, não foi uma gaiola, mas um refúgio. E no silêncio entre elas, apenas quebrado pelo riso de James e o pio de Lily, uma nova verdade nasceu, tão delicada e luminosa quanto as asas da borboleta de luz pousada no joelho da rainha.
Chapter Text
O quarto de Harriet no palácio de Elfhame parecia um reflexo de sua nova realidade: raízes vivas entrelaçadas nas paredes formavam estantes naturais, flores noturnas desabrochavam em vasos de cristal e a luz era filtrada por folhas translúcidas. Mas o foco era Harriet diante do espelho de água prateada. As vinhas douradas que agora subiam até suas costelas, entrelaçando-se em padrões complexos sobre a pele, pulsavam com uma luz suave e constante, em perfeita sincronia com sua respiração. E abaixo delas, sua barriga arredondada era uma curva inegável, um planeta em miniatura orbitando sob sua pele. Três semanas. Apenas três semanas desde a confissão na biblioteca, mas em Elfhame, onde o tempo se dobrava como origami enfeitiçado sob a magia selvagem, o desenvolvimento da criança era vertiginoso. Não era humano. Nem totalmente feérico. Era algo novo, alimentado pelo ritual, pelo laço, e pela própria essência do reino.
—É a magia do ritual, querida, —a voz de Cardan surgiu, preguiçosa, do divan de musgo e seda onde ele estava recostado, observando-a com olhos dourados semicerrados enquanto ela tentava, em vão, ajustar um vestido de tecido fluido que já não disfarçava nada. Ele mordiscava uma uva dourada, o suco como néctar em seus lábios. —Sua criança... nossa criança... anseia pelo mundo. Quer nascer. Quem sou eu, um mero rei, para negar um desejo tão veemente? —Havia uma faísca de orgulho perverso em sua voz, mas também uma sombra de preocupação que ele nunca admitiria.
A porta abriu-se sem cerimônia. Jude Duarte entrou, seu rosto uma máscara de foco pragmático, mas Harriet sentiu a leve hesitação através do laço antes que ela desviasse os olhos do ventre evidente. Sob o braço, ela trazia um livro antigo, encadernado em couro de criatura desconhecida, com páginas que pareciam feitas de casca de árvore.
— Encontrei isto nos Arquivos Abissais,—ela anunciou, sua voz mais contida do que o habitual. Ela abriu o livro com cuidado, revelando ilustrações de figuras humanoides com padrões luminosos similares a vinhas brotando de sua pele. —Uma referência obscura às marcas. Não são apenas cicatrizes ou decoração. São 'Sementes de Elfhame'.— Seus olhos castanhos finalmente encontraram os de Harriet, sérios, implacáveis. —A terra, a magia ancestral... está te tecendo em seu próprio tecido. Transformando-te. Se continuar...— Ela fez uma pausa, o peso das palavras pairando no ar como uma espada. —... você não será mais capaz de voltar ao seu mundo mortal. O Véu rejeitará o que Elfhame reivindicou.
Harriet deixou o vestido inútil cair sobre uma cadeira. Seu coração acelerou, mas não de medo. Ela caminhou até a janela, olhando para os jardins suspensos onde Teddy tentava ensinar James a fazer flores mágicas brotarem de suas palmas. Sua mão repousou sobre o ventre arredondado, sentindo imediatamente um pontapé vigoroso de resposta, como se a criança soubesse que era o centro da conversa. Uma onda de proteção feroz, mais forte que qualquer encantamento, inundou-a.
— Eu não quero voltar,— ela declarou, a voz clara e firme, ecoando no quarto silencioso. —Meu lugar é aqui. Com eles. Com... esta criança.— A cicatriz em sua mão permaneceu fria e silenciosa. Era a verdade mais pura que possuía.
Cardan sentou-se um pouco mais ereto no divã, seus olhos dourados fixos nela, uma emoção indecifrável brilhando em suas profundezas. Jude apenas assentiu, uma vez, fechando o livro com um estrondo suave. A aceitação, embora não dita, pairou no ar.
Foi então que James Sirius, sempre atraído pela luz e pelo movimento, escapou da vigilância de Teddy e correu para dentro do quarto. Seus olhos verdes, tão parecidos com os de Harriet, brilharam ao ver a barriga luminosa da mãe. Com um grunhido de esforço, ele escalou suas pernas e se acomodou em seu colo. Sem hesitar, sua mãozinha quente pressionou-se contra o ponto onde o pontapé havia acontecido.
— Bebê!— ele anunciou, feliz.
As vinhas douradas ao redor do ponto de contato brilharam intensamente, como estrelas minúsculas sendo acesas. E então, algo mágico aconteceu: nos tornozelos de Harriet, onde as primeiras marcas haviam surgido, flores minúsculas desabrocharam instantaneamente. Não eram flores reais, mas feitas de pura luz dourada, efêmeras e perfeitas, pulsando em sintonia com as vinhas.
— Bebê brilha!— James riu, encantado, tocando as flores luminosas que desapareciam quase tão rápido quanto surgiam.
Teddy apareceu na porta, ofegante, seu rosto marcado por preocupação ao ver James no colo de Harriet. Seus olhos foram direto para a barriga, depois para as vinhas ainda brilhando fracamente. Seus cabelos, normalmente mutantes, tornaram-se de uma cor cinza pesada e ondulante, como nuvens de tempestade antes do raio. Ele se aproximou, cauteloso.
— Tia Harry...— sua voz estava carregada de uma ansiedade que ia além de seus anos.— E se... e se o bebê machucar você? Quando nascer? As marcas, a magia... é muito forte.—Seu olhar foi para Cardan, depois para Jude, buscando garantias que eles não podiam dar.
Harriet envolveu James com um braço e estendeu a outra para Teddy, puxando-o para perto. O coração apertou-se com o amor e o medo no rosto do afilhado.
— Não vai, Ted, —ela disse, sua voz suave, acalmadora. —O bebê não vai me machucar. Ele... ela... é parte de mim. Como você e o Jamie.
A mentira saiu fácil, um escudo erguido para proteger o pequeno coração preocupado. E a resposta foi imediata e brutal. A cicatriz em sua mão QUEIMOU com uma dor aguda e penetrante, como uma adaga de gelo mergulhada em sua carne. Ela conteve um suspiro, seus dedos se contraindo involuntariamente no ombro de Teddy.
Cardan riu baixinho, um som que ecoou como vidro quebrando na quietude. Ele se levantou do divã, sua figura alta pairando sobre o grupo.
— Ah, pequeno lobo,— ele murmurou, seu olhar dourado passando de Teddy para Harriet, onde repousou com uma intensidade que não era mais de diversão. —A coragem dela é tão admirável quanto sua tolice. Mentir para te proteger... tão maternal.— Ele se aproximou, parando ao lado de Harriet. Seu dedo esticou-se, não para sua barriga, mas para tocar suavemente as flores de luz já desaparecidas em seu tornozelo. —Mas lembre-se, Harry,— ele sussurrou, sua voz um fio de seda cortante, apenas para ela ouvir, —até as flores mais belas de Elfhame têm espinhos. E esta criança... nossa criança... já é a mais rara e perigosa delas.
Seu sorriso permaneceu, mas seus olhos dourados eram sérios como a noite eterna, refletindo o brilho das vinhas e o medo não dito que pairava sobre todos. A promessa do amanhecer ou do crepúsculo estava crescendo dentro dela, marcando sua pele, acelerando o tempo. E ninguém, nem mesmo a Mestra da Morte, poderia prever quais espinhos a flor desabrochando em seu ventre traria consigo.
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A tensão no gabinete privado de Jude era palpável como o cheiro de tempestade antes do raio. Jude Duarte interrompeu a reunião estratégica com um gesto brusco, jogando um pergaminho de pele de serpente sobre a mesa de ébano. O selo de cera negra, quebrado, mostrava uma serpente engolindo a própria cauda – o símbolo do Subterrâneo.
— Sabem da gravidez, —ela anunciou, a voz cortante como o aço de Mortem. —Inteligência confirmada. Planejam sequestrá-la durante a Lua Negra, quando as sombras são mais profundas e os portais mais fracos. Querem a criança antes do nascimento.
Harriet instintivamente cobriu a barriga, agora arredondada como uma pequena melancia sob o vestido solto. A centelha dentro dela deu um salto de alarme, fazendo as vinhas douradas pulsarem mais rápido, iluminando brevemente o tecido.
— Como?— A pergunta saiu rouca. Os aposentos dela eram fortificados, as crianças vigiadas. O laço com Jude e Cardan deveria alertá-las.
Cardan, recostado em uma poltrona com aparente desdém, ergueu uma mão. Garras longas, negras e afiadas haviam surgido nas pontas de seus dedos, um reflexo involuntário de sua inquietação e raiva. Ele examinou-as com um olhar crítico, como se fossem uma obra de arte inconveniente.
— Alguém na corte, claro,— ele respondeu, sua voz um zumbido perigoso. —Alguém com acesso, com motivação... e com uma língua solta demais ou ambição grande demais.— Seus olhos dourados pousaram em Harriet, pesados com significado. O beijo no canto escuro, a exposição... tudo fora combustível.
No tapete próximo, Teddy brincava de construir torres com blocos mágicos para James, que batia palmas a cada queda estrondosa. Ao ouvir as palavras, o cabelo de Teddy incendiou-se num vermelho fúria, um reflexo visceral de seu medo e fúria. Ele se levantou, seu pequeno corpo tenso.
—Eu protejo você, Tia Harry,— ele declarou, sua voz trêmula mas cheia de uma determinação que ultrapassava seus anos. —Eu e o Jamie. Ninguém vai te tocar.— Para provar seu ponto, ou impulsionado pela emoção intensa, seu corpo estalou. Ossos alongaram-se, músculos se definiram sob a roupa que esticou perigosamente. Por um instante ofegante, um Teddy adolescente, magro e alto, com olhos azuis ardentes e cabelo vermelho como brasa, ficou diante deles. Foi apenas um piscar de olhos – um surto de poder ligado ao seu terror – antes que ele encolhesse de volta à forma de criança, ofegante e pálido, mas com o olhar ainda desafiador.
Jude observou a transformação não com surpresa, mas com um olhar calculista aguçado, como um general avistando uma nova arma.
— Seu afilhado,— ela disse para Harriet, sua voz neutra, —tem mais coragem e utilidade inata do que metade dos soldados treinados em meu exército. Essa... habilidade será valiosa.—O reconhecimento era frio, mas genuíno.
O ataque não esperou pela Lua Negra. Veio no momento de maior vulnerabilidade: durante o banho de Harriet.
As fadas do Subterrâneo – três delas, com pele de cogumelo seco e olhos de carvão incandescente – materializaram-se das sombras úmidas do banheiro adornado com azulejos vivos. Estavam armadas com adagas de gelo eterno, que fumegavam frio e deixavam rastros de geada no ar quente. Seu alvo era claro: Harriet, nua e indefesa na banheira de mármore.
Teddy, que guardava a porta como um pequeno sentinela (James dormia em um berço próximo), gritou um alerta agudo que foi mais um rosnado. E então, seu corpo expandiu-se. Não foi uma transformação controlada como antes, mas uma explosão de pânico e proteção. Ossos estalaram, pêlo cinza-escuro irrompeu da pele, o rosto alongou-se em um focinho. Em menos de um segundo, um lobo adolescente, magro mas ágil, com olhos azuis humanos cheios de fúria, lançou-se contra os invasores.
A batalha foi curta e brutal. Teddy, o lobo, atacou com garras e dentes, rasgando a perna de uma fada e fazendo-a gritar com um som de vidro quebrando. Mas ele era jovem, inexperiente. Uma das adagas de gelo cravou-se em seu flanco, e um chute poderoso de outra fada o arremessou contra a parede.
Enquanto isso, Harriet agira. Nua, escorregadia, mas com a frieza da guerra pulsando em suas veias, ela não alcançou a varinha comum. Invocou a Varinha das Varinhas com um pensamento e um movimento rápido dos dedos. O artefato supremo apareceu em sua mão, pulsando com poder negro e tempestuoso. Um único feixe de luz verde-escura, não o Avada Kedavra, mas uma força bruta de repulsão (Depulso! amplificado ao extremo), arremessou as duas fadas restantes contra a parede oposta com um baque de ossos esmagados. O banheiro ficou em silêncio, exceto pelo som da água escorrendo e do choro histérico de James, acordado pelo barulho e agarrado a uma cortina de vapor rasgada.
Jude chegou tarde demais, sua espada desembainhada, seu rosto uma máscara de culpa e fúria impotente. Ela viu o cenário: as fadas mortas, Harriet ajoelhada no chão molhado, nua e trêmula mas ilesa, segurando a Varinha das Varinhas; James chorando; e Teddy, de volta à forma humana, encolhido no chão frio, um ferimento profundo e gelado no lado esquerdo do torso, sangrando profusamente. Ele estava pálido, ofegante, os olhos fechados de dor – ele havia mantido a forma lobuna além de seus limites para protegê-la.
— "Eles sabiam exatamente onde você estava," Jude rosnou, a acusação dirigida ao universo, mas principalmente à própria falha de segurança.— O momento, o local... Há um traidor. Alguém muito próximo.—Seu olhar encontrou o de Cardan, que entrara atrás dela, seu rosto inexpressivo, mas as garras totalmente estendidas.
Cardan ignorou a acusação tácita. Ele se agachou ao lado de um dos invasores mortos, virando-o com o pé com desdém. O cadáver usava um broche prateado com o símbolo de uma onda congelada.
— Este é um emissário menor de Orlagh,— ele declarou, seu tom desdenhoso. —Rainha do Subterrâneo costeiro. Sempre teve ambições tão chatas quanto previsíveis. Quer acesso, não a terras, mas a rotas.
Harriet, pressionando uma toalha contra o ferimento gelado de Teddy (o frio do gelo eterno impedia a coagulação), ergueu os olhos, verdes como a magia que acabara de lançar.
— Orlagh... quer minha criança?—A pergunta era um fio de voz, carregada de horror.
Cardan soltou um riso curto e sem humor.
— Quer o Véu, Harry,— ele corrigiu, seus olhos dourados encontrando os dela, sérios. —O poder de rasgar realidades. Sua criança... nossa criança... é apenas a chave viva que ela acredita poder usar para controlá-lo. Ou destruí-lo.
Foi então que Jude se aproximou. Em suas mãos, ela segurava um pequeno frasco de vidro contendo um líquido prateado e espesso que parecia absorver a luz. Ela o estendeu para Harriet, seu rosto um composto de pragmatismo feroz e uma dor não dita.
— O antídoto,— ela disse, a voz rouca. —Contra as Sementes de Elfhame. Preparado pelos alquimistas do Subterrâneo, ironicamente. Se tomado agora... ainda pode reverter o processo. Destruirá as vinhas, purgará a magia invasora do seu corpo...— Ela fez uma pausa infinitesimal, seu olhar baixando para a barriga de Harriet. —.. e talvez destrua a criança. Ou a torne... mortal. Comum.— Era uma escolha de Sofia: salvar a mãe, arriscando a criança única, ou continuar rumo ao destino incerto.
O ar saiu dos pulmões de Harriet. Ela olhou para Teddy, pálido e tremendo sob suas mãos. Olhou para James, ainda chorando, assustado. Sentiu a pequena vida dentro dela, poderosa, estranha, pulsando em uníssono com as vinhas douradas. O caminho seguro era o frasco. O caminho conhecido.
— Não.
A palavra saiu clara, firme, sem hesitação. A cicatriz em sua mão permaneceu fria e silenciosa. Era a verdade mais profunda de sua alma. Ela não sacrificaria seu filho, sua filha, por segurança. Não depois de Teddy quase morrer para protegê-los.
Antes que Jude pudesse argumentar, antes que Harriet pudesse dizer mais, Cardan se moveu. Com um movimento rápido como o ataque de uma serpente, ele arrancou o frasco da mão de Jude.
— Pare de oferecer veneno, Jude,— ele ordenou, sua voz carregada de uma autoridade fria e final que fez até a rainha estremecer. Seus olhos dourados queimavam como sóis em miniatura. —Ela já escolheu. Escolheu Elfhame. Escolheu a criança. Escolheu nosso lado.
E, com um gesto deliberado e definitivo, ele atirou o frasco contra a parede de mármore. O vidro estilhaçou-se com um som agudo. O líquido prateado espirrou como sangue de estrela, fumegou por um instante onde tocou a pedra, corroendo-a levemente, e depois se dissipou em fumaça inócua. O antídoto, a saída, estava destruído.
Cardan olhou para Harriet, ajoelhada no chão entre sangue, água e vidro quebrado, protegendo Teddy e seu ventre. Seu olhar não era mais de curiosidade perversa ou posse. Era de reconhecimento. Ela não era mais a fugitiva. Era a mãe da futura ponte ou ruína de Elfhame. E ela escolhera ficar. A gaiola de espinhos dourados era sua casa, seu refúgio e seu campo de batalha. E o preço dessa escolha, todos sentiram, seria pago em sangue antes do fim.
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O tempo em Elfhame não corria – corroía. As semanas seguintes foram um turbilhão de dor e transformação. As vinhas douradas agora cobriam o torso de Harriet, entrelaçando-se sobre seu ventre enorme e pulsante como um sol aprisionado. A criança, alimentada pela magia selvagem do reino e pelo sangue do ritual, exigia nascimento com a urgência de uma profecia prestes a se cumprir. Seis semanas. Era tudo o que seu corpo mortal conseguira suportar.
A dor começou como uma maré baixa ao amanhecer, enquanto Harriet tentava ajudar Teddy a dominar uma transformação facial simples – nariz mais arrebitado, menos chamativo. De repente, uma contração a dobrou ao meio, tão violenta que suas mãos se cravaram na borda da mesa de carvalho vivo, as juntas brancas. As vinhas em seu ventre brilharam como um farol, projetando padrões de luz dourada nas paredes.
— Tia Harry?— Teddy parou, seu rosto voltando ao normal, os olhos arregalados de pânico.— Você tá... quebrada?
— Não, Ted,—ela forçou, ofegante. —É só o bebê... querendo sair.— A cicatriz na mão latejou, mas não queimou – era a verdade, por mais assustadora que fosse. Outra onda de dor a atingiu, mais forte, e um jato de água quente rompeu-se entre suas pernas, manchando o chão de raízes.— Merda.
A notícia voou mais rápido que os corvos da vidente. Quando a segunda onda de contrações arrancou um gemido de Harriet, apoiada na cama com Teddy tentando segurar sua mão (seus próprios dedos pequenos tremendo), a porta dos aposentos se abriu violentamente.
Cardan entrou como uma tempestade vestida de seda negra. Seu rosto estava pálido, os olhos dourados dilatados, sem a habitual indolência. Ele parou no umbral, olhando para Harriet contorcendo-se na cama, para as vinhas que pulsavam com luz frenética, para Teddy aterrorizado. Um estranho reflexo cruzou seu rosto – algo entre fascínio e horror primal.
— Ela vem,—Harriet sibilou entre dentes cerrados, suando frio. —Tão rápido... como tudo aqui.
Cardan não se aproximou. Ficou parado, uma estátua de rei em um drama que talvez não pudesse controlar. Sua voz, quando saiu, estava estranhamente rouca:
— Por que você insiste em segurar tão firmemente... nesta corda de sofrimento, Harry?— A pergunta ecoou estranhamente a melodia sombria que agora parecia tocar no fundo da mente de Harriet.
Harriet riu, um som amargo e quebrado entre duas contrações.
— Segurar a... onde? Nas ondas da sua indiferença? Cardan!— Ela gritou a última parte quando a dor atingiu o ápice.— Cronometrado... para quando eu não aguentasse mais essa gaiola dourada! Então me solte!
Ele deu um passo atrás, como se as palavras fossem físicas.
Foi então que Jude chegou. Não correndo, mas com passos firmes e rápidos, vestindo roupas práticas de linho, as mangas arregaçadas. Seu olhar varreu a cena: Harriet em agonia, Cardan paralisado, Teddy aterrorizado, o chão molhado. Sem uma palavra, ela empurrou Cardan para o lado – não com violência, mas com autoridade inquestionável – e ajoelhou-se ao lado da cama.
— —Onde dói mais?— Jude perguntou, suas mãos práticas já examinando a barriga de Harriet, sentindo a próxima contração se avizinhar como uma onda subterrânea. Seu toque era firme, mas não cruel. Profissional. A inquietação que Harriet sentira através do laço se transformara em foco absoluto.
— Por... por toda parte, Harriet gemeu. — Como se... estivesse sendo rasgada por dentro.— Ela olhou para Jude, suando, seus cabelos colados ao rosto. Quem... quem cuida dos pomares, Jude? Quem conserta os telhados... enquanto eu sangro aqui? A tortura emocional... vem da cabeceira da sua mesa alta também? —As palavras saíram carregadas da raiva da dor e da música fantasma que martelava em seu crânio.
Jude não flinchou. Seus olhos castanhos encontraram os de Harriet.
— —Eu cuido dos pomares agora, Potter. Eu conserto este telhado," ela respondeu, a voz clara e cortante.— Segure-se em mim, não nele.—Ela pegou a mão livre de Harriet ( e apertou com força. —E pare de falar em cordas e mergulhos. Você não está se soltando de lugar nenhum. Você está trazendo alguém para cá. Foco.
A próxima contração foi uma montanha russa de agonia. Harriet gritou, arqueando as costas, as vinhas brilhando como um sol em miniatura. Através do laço, uma onda de dor nauseante atingiu Jude, que apenas cerrou os dentes, sua cicatriz "Eu Devo Ser Forte" pulsando sob a manga. Cardan viu, e algo como culpa ou consternação cruzou seu rosto.
— Quem busca a água da nascente da montanha rochosa?— Harriet gritou, delirando, os capilares em seus olhos verdes estourando em pequenos pontos vermelhos de esforço.—Quem caminha a volta... para sentir suas palavras e seu ferrão afiado? Eu estou... tão cansada, Jude. Tão cansada.
— Eu busco a água, Harry," Jude respondeu, sem perder o ritmo. Com um gesto rápido, ela molhou um pano em uma bacia que um servo fada trouxera silenciosamente e limpou a testa de Harriet.— E você não está sozinha. Empurre.
Harriet empurrou. O mundo se estreitou a um túnel de dor e luz dourada. Viu flashes: Cardan bebendo vinho, distante, enquanto ela sangrava; Jude lutando contra sombras que só ela parecia ver; uma pequena menina com chifres de cristal olhando para ela com olhos verdes cheios de um conhecimento antigo. "Se tivéssemos uma filha... Eu assistiria e não poderia salvá-la... Da cabeceira da sua mesa alta..."
— NÃO! — O grito saiu dos pulmões de Harriet, misturado a um impulso final, desesperado. —Eu não deixarei! Eu correrei! Eu desfarei esse erro!
Houve um momento de silêncio cortante. E então, um choro. Frágil, agudo, mas vibrante.
Uma menina.
Ela era minúscula, perfeita, e envolta em um brilho suave. Seus cabelos, úmidos, pareciam ser da cor da noite de Elfhame. E curvando-se graciosamente para trás de sua pequena testa enrugada, dois minúsculos botões translúcidos, como cristal bruto – os primeiros indícios de chifres.
Jude colocou a bebê no peito de Harriet, que tremia incontrolavelmente. O contato foi um choque de amor tão intenso que tirou o fôlego. As vinhas douradas na pele de Harriet suavizaram seu brilho, como se sussurrassem 'missão cumprida'.
Cardan finalmente se moveu. Aproximou-se lentamente, seus olhos dourados fixos na filha, uma emoção crua e indefesa estampada em seu rosto pela primeira vez. Ele estendeu um dedo hesitante para tocar a cabecinha da bebê.
— Ela é... ele começou, sem fôlego.
— Perigosa,— Harriet terminou, sua voz rouca, mas cheia de uma ferocidade nova. Seus olhos, injetados de sangue, encontraram os dele. —Como o pai. Como a profecia. Como este maldito lugar.— Ela apertou a filha contra seu peito, sentindo o calor minúsculo, o coração batendo rápido como asas de beija-flor. —Mas não será uma máquina de bebês. Não será um apêndice. Não será obrigada a nada. —O desafio era claro, dirigido a Cardan, a Jude, ao próprio destino.
A cicatriz em sua mão permaneceu silenciosa. Verdade.
Jude limpava as mãos com um pano, observando a cena: Harriet exausta mas radiante de um amor feroz, a bebê minúscula com seus botões de cristal, Cardan paralisado por uma emoção que talvez não soubesse nomear, e Teddy, aliviado, acariciando o pé minúsculo da prima.
— O trabalho,— disse Jude, secamente, quebrando o silêncio,— só começou, Potter. Vinte e quatro horas por dia. Todos os dias.— Mas seu olhar, quando pousou na bebê, teve um lampejo de algo que não era dever, nem estratégia. Era algo mais simples. Mais humano.
O silêncio que se seguiu não foi o de um quarto vazio, mas o de um mundo que havia acabado de mudar. E a pequena vida nos braços de Harriet, com seus botões de chifres e seu choro frágil, era o centro de tudo. O amanhecer ou o crepúsculo começava ali, com uma única, exausta e determinada respiração de mãe. O verdadeiro trabalho, Harriet percebeu, não era apenas o parto. Era o que vinha depois. E ela estava pronta para trabalhar demais. Por ela.
Chapter Text
A atmosfera na Sala do Trono de Elfhame era pesada como um véu úmido antes da tempestade. Estella Aurora Greenbriar, envolta em um manto de teias de lua tecidas por aranhas feéricas, repousava no colo de Cardan, seu pequeno rosto franzido em um sono inquieto. Não era uma criança comum. Desde seu nascimento sob uma lua de sangue duas luas antes, seu choro não emitia sons, mas vibrações mágicas que faziam o vidro das janelas tilintar e as flores murcharem. Cardan a segurava não com a ternura de um pai, mas com a fascinação perversa de um colecionador por sua aquisição mais rara – um "brinquedo" perigosamente vivo.
Jude, em seu trono de espinhos entrelaçados, debatia impostos sobre o néctar lunar com o Conselho. A voz era cortante, lógica, impiedosa. De repente, Estella soltou um grito silencioso. Não um som, mas uma onda de pressão mágica que fez as velas tremeluzirem. Uma única lágrima prateada, luminosa como uma estrela caída, rolou por sua face. E quando a gota tocou o ar atrás de Jude...
RASG!
O espaço atrás da rainha distorceu-se violentamente, rasgando-se como um tecido podre. Por um segundo aterrorizante, o que se viu não foi a parede de raízes do salão, mas as ruínas fumegantes do Salão Principal do Ministério da Magia britânico: colunas despedaçadas, brasas ardendo, o emblema do Ministério rachado ao meio. O cheiro de cinzas e magia corrompida invadiu Elfhame.
Os cortesãos congelaram. O ar parou. Até Jude se voltou, sua expressão de ferro rachando em puro espanto.
— A criança é uma aberração!— O grito veio de Falaise, um Duque do Subterrâneo com pele de musgo seco e olhos de carvão, erguendo-se com dedo trêmulo apontado para Estella. —Um câncer na carne de Elfhame! Ela rasga nosso mundo sagrado como papel úmido! Destrói barreiras que nem os Reis Antigos ousaram tocar!— Sua voz era um guincho de ódio e medo primitivo.
Jude reagiu como um raio. Mortem, sua espada negra, apareceu em sua mão, apontada para Falaise, os olhos castanhos incendiados. Mas foi a voz de Cardan, preguiçosa e mortal como o deslizar de uma víbora, que preencheu o salão gelado.
Ele não se levantou. Apenas ajustou Estella no colo, acariciando os minúsculos chifres translúcidos que curvavam-se em sua testinha com um dedo possessivo.
— Aberração, Falaise?— Cardan sorriu, mostrando dentes afiados. —Que visão tacanha. Não vê? Ela não rasga nosso mundo. Ela o expande. Ela é Elfhame feito carne, sangue e lágrima. A manifestação viva de toda a magia selvagem e antiga que você tanto venera e tão pouco compreende.—Seu olhar dourado percorreu a sala, desafiador. —E se algum de vocês,— sua voz baixou para um sussurro cortante, —ousar chamar minha filha de monstro novamente, arrancarei sua língua insipiente e a usarei como pingente nos chifres que ela herdará de seu pai. Entendido?
O silêncio que se seguiu foi absoluto. Até Falaise recuou, empalidecendo sob sua pele musgosa. Harriet, ao lado de Teddy que segurava James com força, sentiu o chão tremer literalmente sob seus pés – não por magia, mas pela onda de poder e ameaça que Cardan emanava. Política feérica. Ela odiava. Cada palavra era uma faca, cada silêncio uma armadilha, e sua filha, o centro involuntário do furacão.
A tempestade não demorou. No mesmo dia, antes que o sol de prata de Elfhame atingisse o zênite, o desafio chegou.
Orlagh, ex-Rainha do Subterrâneo, deposta por Jude anos antes, entrou no Grande Salão como um vendaval de ódio. Ela era alta, com pele de granito cinzento que rangia a cada movimento, e cabelos como líquenes negros. Atrás dela, uma comitiva de guerreiros de pele de pedra, suas armaduras feitas de lascas de obsidiana, emanavam uma frieza mortal. O ar ficou pesado com o cheiro de terra úmida e metal oxidado.
Orlagh parou diante do estrado real, ignorando Cardan que balançava Estella adormecida em um berço de teias douradas próximo ao trono. Seus olhos, fendas luminosas em seu rosto de pedra, fixaram-se em Jude.
— Jude Duarte— sua voz soava como pedras se esfregando. —Sua fraqueza apodrece o Trono de Espinhos. Você protege uma mortal que envenenou nosso sangue sagrado com sua cria humana.— Ela apontou uma garra de basalto para o berço de Estella. —Essa coisa que rasga o tecido do mundo não merece respirar o ar de Elfhame! Renuncie. Entregue a criança. Ou seu trono será tomado hoje, banhado no sangue que você tanto protege.
Jude não pestanejou. Não consultou Cardan. Seu olhar encontrou o de Orlagh com o gelo de uma geleira milenar. A resposta foi uma navalha:
— Mate-a.
Os soldados de Jude, vestidos em armaduras de escamas de dragão, avançaram. Mas Orlagh soltou uma risada que ecoou como um desmoronamento.
— Tarde demais, rainha caduca,—ela cuspiu. —Sua ordem é inútil. Metade de seu precioso exército já marcha sob meu estandarte. O Subterrâneo acordou. E ele tem fome.
O salão explodiu em caos. Lâminas de obsidiana cruzaram-se com espadas de aço feérico em um cacofonia de golpes e gritos. Os guerreiros de pedra eram lentos, mas duráveis, suas peles rangendo e desviando golpes que derrubariam um homem. Os soldados de Jude lutavam com ferocidade, mas a surpresa e a traição pesavam.
Teddy Lupin não hesitou. Enquanto Harriet se lançava em direção a Estella, seu instinto de protetor disparou. James estava paralisado pelo barulho, stella chorava no berço. Os dedos de Teddy, que já terminavam em garras negras e permanentes há dias, fecharam-se com força. Pequenos chifres curvos e pontiagudos, como os de um cabrito jovem, brotavam de sua testa, marcas indeléveis da magia de Elfhame que o transformava. Ele agarrou James com um braço e stella com o outro, seu corpo adolescente (uma forma que mantinha agora por força de vontade) encontrando uma força sobrenatural.
— Vamos!— Ele rosnou, arrastando-os para uma fenda escondida atrás de uma tapeçaria de raízes vivas – o esconderijo secreto que Harriet lhe ensinara. Enquanto mergulhavam na escuridão, os cabelos de Teddy transformaram-se em um manto de sombras espessas, envolvendo-os como um véu protetor. —Não tenham medo,— sua voz saiu rouca, não mais totalmente humana. —Eu protejo vocês.
Teddy Lupin não era mais apenas um menino. As transformações constantes, a exposição à magia selvagem de Elfhame e o estresse perpétuo cobraram seu preço. Suas garras não recuavam. Seus olhos, quando assustado ou zangado, tornavam-se amendoados e dourados como os de um lobo sob a lua cheia. Sua força, mesmo sem querer, quebrava taças de cristal ou torcia barras de metal. Ele era um híbrido instável, preso entre dois mundos, pertencente a nenhum.
Numa tarde aparentemente calma, enquanto brincava de perseguir James nos jardins suspensos, o irmão mais novo, rindo, puxou um de seus pequenos chifres.
— Feio! Bode!— James riu, a inocência crua de suas palavras.
Teddy congelou. O riso morreu em sua garganta. Ele não disse uma palavra. Apenas virou-se e correu. Harriet o encontrou no quarto mais escuro dos aposentos, diante de um grande espelho de prata. Ele estava arranhando os chifres com as próprias garras, com força suficiente para deixar sulcos vermelhos na pele ao redor. Lágrimas silenciosas escorriam por seu rosto, misturando-se ao sangue.
— Eu pareço um monstro,— ele soluçou, sua voz rouca de angústia, quando viu Harriet no reflexo. —Um... bicho.
Harriet cruzou o quarto num instante. Ela mesma estava irreconhecível: as vinhas douradas agora subiam até seu pescoço, entrelaçando-se como um colar vivo, e sua barriga mantinha a curva da gravidez que parecia ter estabilizado, mas nunca regredido. Ela envolveu Teddy, segurando suas mãos com garras para afastá-las dos chifres.
— Teddy Lupin,— ela disse, firme, seu olhar verde encontrando o dele no espelho. —Monstros não protegem irmãos com suas próprias vidas. Monstros não choram por parecerem diferentes. Você é mais humano – mais corajoso, mais leal, mais bom – do que qualquer alma nesta corte traiçoeira.
Ele enterrou o rosto em seu ombro, tremendo. Harriet acreditava nas palavras. Mas uma semente de dúvida, plantada pelo reino implacável, permanecia.
Dias depois, a dúvida encontrou seu terrível regador. Um assassino do Subterrâneo, uma criatura com pele de sombra líquida e garras de obsidiana, infiltrou-se nos aposentos, visando o berço de Estella enquanto Harriet dormia exausta nas proximidades. Teddy estava lá, lendo sob uma luz fraca, seus sentidos aguçados pela magia lobuna que corria em seu sangue.
Ele viu a sombra se mover. Cheirou a intenção assassina. E reagiu.
Não houve pensamento. Apenas um instinto feroz, alimentado pelo medo e pelo amor incondicional pela família que lhe restara. Ele se lançou, mais rápido que qualquer humano, suas garras encontrando o peito do intruso com um ruído horrível de rasgar e estilhaçar. O assassino de sombra mal teve tempo de esboçar surpresa antes de se desfazer em cinzas negras e frias.
Teddy ficou parado, coberto por um fino pó de sangue frio e negro que não era seu. Ele olhou para as próprias garras, depois para o monte de cinzas, e para Harriet que acordara sobressaltada. Seu rosto estava pálido, seus olhos dourados arregalados de horror.
— —Eu... eu não quis,— ele gaguejou, a voz um gemido de desespero. —Ele ia... ele ia pegar a Stellinha... Eu só...—
Das sombras mais profundas do aposento, Cardan Greenbriar materializou-se. Ele não olhou para as cinzas. Seus olhos dourados, frios e calculistas, estavam fixos em Teddy, na força brutal que ele demonstrara, nas garras e chifres que eram agora sua verdade.
— —Parabéns, mãe coruja,—ele sussurrou para Harriet, sua voz um fio de veneno e uma verdade cruel. —Você finalmente o transformou em um verdadeiro filho de Elfhame. Bem-vindo ao jogo, pequeno lobo. As regras são escritas em sangue.
Ele desapareceu, deixando Harriet envolver o afilhado trêmulo, suas vinhas douradas pulsando em sintonia com o coração despedaçado de Teddy. Elfhame não dava presentes. Só transformações. E algumas marcas, tanto na pele quanto na alma, eram para sempre. A inocência de Teddy, como a dela, estava enterrada nas cinzas do assassino. O preço da proteção, em Elfhame, era a própria essência.
+
Jude venceu a batalha, mas perdeu a guerra.
Orlagh estava morta, mas o Subterrâneo agora se recusava a obedecer a um trono que abrigava "a criança do Véu". Jude, sentada no salão vazio após o massacre, bebia vinho de uma taça quebrada.
— Precisamos de uma aliança maior, —ela disse a Harriet, que amamentava Stella perto da lareira. —Case-se com Cardan. Torne-se rainha consorte. Isso daria legitimidade à Stella.
Cardan riu de onde estava deitado no chão, brincando com James.
— Case-se comigo? Jude, você finalmente admitiu que me quer por perto?
Harriet olhou para Teddy, agora adormecido em um canto com suas garras encolhidas.
— Não posso. Não serei mais uma peça no seu jogo, Jude.
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Com a guerra encerrada, Cardan propôs algo radical: um conselho com líderes do Subterrâneo.
— Insubordinados controlados são mais úteis que inimigos mortos,— ele argumentou, deitado na cama com Stella dormindo em seu colo. —E talvez assim parem de chamar minha filha de 'aberração'.
Jude relutou, mas Harriet apoiou a ideia. —Stella será parte deste reino, ele precisa mudar. Até para monstros como você.
O primeiro ato do novo conselho foi declarar Stella como Herdeira do Véu, um título vazio, mas simbólico. Teddy, agora oficialmente Guardião da Coroa, ficou encarregado de protegê-la – suas garras e chifres finalmente reconhecidos como honra, não deformidade.
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Num ritual sob a Lua de Mel, Harriet queimou a Capa da Invisibilidade.
— Elfhame é meu lar agora, — disse, as chamas consumindo o tecido ancestral. — Não preciso mais me esconder.
As cinzas formaram uma nova marca em seu braço: uma espiral de raízes, entrelaçando-se às vinhas douradas. Cardan a observou, orgulhoso.
— Finalmente aceitou que é nossa,— ele sussurrou.
—Não de vocês— ela corrigiu, segurando sua mão com força. — Com vocês.
Jude, ao longe, permitiu-se um sorriso raro.
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O crepúsculo em Elfhame tingia o céu de violeta e âmbar, enquanto Harriet caminhava pelas margens do Rio dos Sussurros. Estella corria à frente, seus pequenos chifres curvados brilhando com orvalho, e James a seguia, transformando pedras em vagalumes sob o olhar atento de Teddy – agora com asas de corvo semifechadas nas costas, uma lembrança permanente de seu juramento.
No palácio, Jude e Cardan discutiam em voz alta sobre a nova lei de comércio com o Subterrâneo, mas até suas brigas soavam como um ritual familiar.
— Você vai arruinar a economia com seu hedonismo irresponsável,— Jude rosnava, segurando um pergaminho cheio de números.
— E você vai asfixiar todos com regras, como sempre,— Cardan retrucava, jogando uvas ao ar e pegando-as com a boca.
Harriet sorriu, deixando que o vento carregasse seus risos. A paz era assim: frágil, barulhenta, cheia de arestas não lixadas.
De repente, Estella parou. Uma lágrima escapou de seu olho esverdeado e, onde caiu, o ar tremeu. Por um instante, Harriet viu algo – um rosto familiar no reflexo, cabelos ruivos e olhos cansados. Ginny? Mas a imagem se dissipou antes que pudesse ter certeza.
— Mamãe, olha!— Estella apontou para o céu, onde as duas luas de Elfhame começavam a se alinhar. Entre elas, um risco de luz pulsante surgiu, como uma costura no próprio firmamento.
Teddy chegou voando, pousando com um baque desajeitado.
— Isso... isso é novo?— perguntou, suas garras cravando-se no solo instintivamente.
Harriet olhou para o palácio. Jude e Cardan haviam parado de brigar, observando o fenômeno através da janela. A expressão de Cardan era de puro deleite; a de Jude, de cálculo imediato.
— Voltamos, —Harriet disse, segurando a mão de Stella. —Hora de descobrir o que sua filha aprontou dessa vez, Cardan.
Ele abriu a janela e gritou, enquanto o céu continuava a se transformar:
—Ah, mas que tragédia maravilhosa seria se Elfhame finalmente se cansasse de paz?
Jude puxou-o para dentro pelo colarinho, mas Harriet jurou vê-la esboçar um sorriso.
Quanto ao Véu lá em cima? Bem...
Ele poderia ser um portal.
Ou um presságio.
Ou apenas um truque de luz.
Em Elfhame, até o fim poderia ser um começo.
fim.

moonblueberrie on Chapter 4 Thu 04 Sep 2025 05:39AM UTC
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MahSkywalker on Chapter 4 Thu 11 Sep 2025 01:32PM UTC
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