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Atraída Pela Noite

Chapter 24: Cárcere

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As pálpebras de Adora se movimentaram com um peso incomum, de um modo não instintivo, com um esforço muito maior. Depois de abertas, focar a visão também foi difícil, continuou alguns segundos vendo tudo embaçado enquanto sentia as trilhas secas de lágrimas nas laterais de seu rosto quando passava uma corrente de ar mínima por ali.

Paralelamente à lenta recuperação da visão,  o resto da consciência corporal foi acontecendo. Sentiu o pesar da respiração subindo e descendo seu tórax, depois os pulsares de dor muscular nos membros superiores e inferiores. Por fim, um crescente zumbido agudo no ouvido e uma pressão na cabeça como se estivesse sendo comprimida. 

Desviou o olhar para uma das mãos e viu que estava tremendo, um sinal de que o corpo ainda estava em pane, provavelmente por perda de sangue.

Imaginou que essa seria a sensação de acordar depois de ter sido atropelada.

Ou depois de ter capotado com o carro em uma velocidade consideravelmente alta depois de uma aparição assustadora no banco de trás.

Daí veio a memória. 

Isto era o que havia acontecido de fato. E seu próximo questionamento foi completamente voltado a entender para onde foi levada depois disto.

Olhou em volta com o pouco movimento que as córneas ainda conseguiam manejar e captou alguns elementos. Janelas cobertas por pedaços de madeira para cobrir a luz ou a entrada de estranhos, paredes manchadas com pinturas descascadas perto dos rodapés, nenhum outro móvel a não ser a maca em que estava deitada e um ferro que segurava a bolsa de soro aplicada na veia central de seu braço direito. O mesmo que tinha marcas arroxeadas muito próximas umas das outras.

O ambiente era frio e cheirava a madeira úmida, mofo e álcool etílico. As roupas que usava não eram hospitalares, era o mesmo vestido do jantar de Ação de Graças, inclusive, com adicionais de manchas de sangue, graxa e uns rasgos. 

Isso não podia significar algo bom. Nada naquele lugar trazia conforto. Pelo contrário, sentia seus sentidos gritarem ameaçados a cada novo detalhe que reparava.

Tentou falar e o que emitiu foi um suspiro fraco, sinal de que a garganta estava seca, de que estava desidratada.

A quanto tempo estava ali? Esforçou-se para puxar o fio de raciocínio e, assim, achar pelo menos alguma pista sobre onde ou porquê estava naquele lugar. E como se o ato fosse um gatilho, voltou sem sequer querer para a sala de Catra. Reviveu cada segundo de angústia desde a recuperação das memórias até o último olhar para trás antes de bater a porta e partir. 

Em sequência,  uma coleção dos momentos em que mais se sentiu sozinha, da infância até a vida adulta. As celebrações solitárias de final do ano, aniversários, formaturas. Era como se fosse um filme em looping, um compilado de todos os momentos em que se sentiu pequena e desprezada. Era uma dor emocional que a forçava fechar os olhos. Quanto mais tentava sair, mais afundada  estava naquele cenário. Parecia um feitiço, uma maldição. Alguém estava fazendo com que revivesse suas decepções de propósito, seja para alimentar sua ira ou para cavar um buraco ainda mais fundo no seu coração.

Depois de alguns segundos, veio a realização de que não era a primeira vez que isso acontecia. Não era a primeira vez que acordava e olhava em volta. Não era a primeira vez que sentia o peso de seu corpo após o acidente. Não era a primeira vez que era arrastada para a solidão de toda uma vida e para o lapso de uma briga que fora sua última memória antes de todo o caos. Adora vinha vivendo essa mesma fração de acontecimentos há dias, e quando a repetição da memória a desesperava até a exaustão, ela apagava para depois acordar e viver tudo novamente.

Entre um lapso de consciência ou outro, que durava poucos segundos, via flashes de movimento de uma pessoa no quarto injetando alguma coisa no seu braço, ou retirando. Via sangue, sentia-se fraca e desmaiava de volta para a inconsciência.

Até que um dia atípico chegou. Um dia em que acordou, sentiu todas aquelas dores e ainda assim resistiu. Antes que pudesse cair no ciclo de tentar forçar a mente para qualquer coisa, aceitou o vazio na esperança de não se sobrecarregar a ponto de causar desmaio. Nesse dia, fixou o olhar no teto no qual a tinta também descascava e tinha alguns pontos esverdeados de uma infiltração antiga.

Não sabia se era dia ou noite e também não queria ocupar muito sua mente, já que descobriu que mantê-la vazia a salvava da dor emocional. 

Ateve-se em contar os pontinhos de mofo no teto, depois os dos cantos da parede, depois os pregos nas madeiras. Horas passaram-se, pelo menos tinha essa impressão, até que ouviu a porta abrir e passos crescentes tomarem o ambiente.

Moveu levemente o rosto para baixo para olhar melhor para quem se aproximava.

Quem era? Não a conhecia.

— Ora, ora, — a figura de cabelos escuros e máscara cobrindo o rosto sentou-se na ponta da cama, — hoje conseguiu escapar da armadilha mental que preparei com tanto requinte para você.

A voz abafada pela máscara era grave e calma de um jeito assustador. A mulher, ou seja lá o que fosse aquela criatura, acariciou o rosto de Adora de cima para baixo, num toque que propositalmente mostrava um controle passivo agressivo.

Era suave e ameaçador, assim como a voz dela.

E era gelado também.

Provavelmente estava diante de uma vampira.

— Mas, não tem problema, — ela puxou uma caixa que Adora não havia notado por estar debaixo da cama e começou a tirar uns materiais enquanto falava casualmente, — é sinal de que estará acordada para assistir a própria boa ação.

Ela pausou os movimentos e deixou a caixa de lado. Depois de uma risada baixa, a criatura retirou a máscara e revelou um rosto marcado por uma cicatriz que percorria por toda a extensão da parte esquerda do rosto. Era como um corte profundo curado há anos, uma lembrança física do que jamais sairia daquela pele pálida.

Mesmo com uma característica que a tornava naturalmente temerosa, a expressão calma se mantinha de maneira quase insuportável, falsa.

— Como é uma ocasião especial, hoje a coleta vai ser um pouco diferente.

Adora sentiu o pulso ser envolvido pela mão da outra enquanto os caninos dela cresciam e afiavam. Os olhos, antes cor de oliva, ficaram completamente pretos. 

Sem dar tempo para reações, ela afundou os dois dentes no pulso de Adora brutalmente, perfurando o caminho de uma das veias. 

O sangue iria jorrar de tão profundo que o ferimento foi se a criatura (confirmada agora como vampira) não tivesse estancado com a própria boca ao beber.

A agonia foi quase intragável e a humana, na mesma hora, recuperou a capacidade vocal e soltou um grito cortado de dor.

Alguns segundos depois a vampira forçou-se a parar de beber e pegou uma tigela de metal e colocou abaixo do pulso cortado para captar o sangue que pingava em menor quantidade enquanto seu braço estava debruçado na cama, com a metade para fora do colchão e ainda firmemente segurado pela vampira.

À medida que o sangue deixava o seu corpo, Adora sentia calafrios e tremia incessantemente. Nunca sentiu-se tão fora do controle de seu próprio corpo antes. A aflição era tanta que não conseguia cessar a trilha de lágrima que escorria pelo rosto e nem o descompasso da respiração.

Ainda assim, mantinha o contato visual, mesmo com os olhos semicerrados de dor.

— Quem é você? — Conseguiu murmurar fracamente, na esperança pelo menos ser capaz de fazer a leitura labial.

Uma risada cortou o ar e arrepiou a nuca da humana.

— Como assim ‘quem sou eu’? — Ela a encarava com desdém e um sorriso debochado. — Eu sou o motivo pelo qual fez sua bela viagem de fantasia para a Romênia. Aquela da qual nunca deveria ter voltado.

— Weaver…

Adora ligou os pontos. 

Chegou a pensar na possibilidade de um dia ser perseguida novamente por essa vampira. Contudo, toda vez que ela e Catra cogitavam tal possibilidade, a descartavam logo em seguida porque seria uma missão de esforço suicida para o enfraquecido clã romeno. 

E ainda assim, lá estava ela, capturada por quem pensava não ser mais uma ameaça.

— Então foi você… — A humana ainda tentava recuperar a estado normal da própria voz que ainda saía baixa, sumida. — Você que acabou com a vida da Catra?

— Não, minha cara, — a criatura agora abaixava o olhar e apertava o antebraço da outra para aumentar o fluxo de sangue que saía das veias. O sorriso debochado continuava naquele rosto marcado, — isso quem fez foi a própria. E com sua ajuda, não é mesmo?

Não iria entrar nessa discussão, não tinha nem condições para isso. Se era para gastar as forças vitais que gradativamente iam embora junto com seu sangue, tinha que ser para arrancar alguma informação útil:

— Por que veio até aqui? Não é um bom negócio para o clã, não faz sentido correr esse risco.

— Não que eu lhe deva qualquer satisfação, é até tolice de vocês acharem que eu não viria. — Ela voltou a olhar nos olhos da humana, com a expressão completamente séria desta vez. 

— Por q-

Adora foi interrompida pela voz irada de Shadow Weaver, que a segurou pelo rosto bruscamente e apertou seu maxilar ao complementar:

Nada está acima da minha sede de vingança. E eu vou fazer com que Catra pague por tudo que fez comigo e com o clã. Expulsá-la foi uma pena muito fraca para o meu gosto, eu quero que ela sofra. E depois que sofrer o suficiente, vou matá-la e fazer você sufocar nas cinzas dela para completar o serviço.

Seu coração pulava e toda a tremedeira foi substituída por uma paralisação. 

Adora estava em choque tanto pelo que acontecia quanto pelo que Shadow Weaver prometia. O ar mal estava chegando aos pulmões por consequência de tudo que ouvira quando a criatura soltou seu rosto quase deslocando o pescoço.

Ela andou pela sala num ímpeto de buscar controle. A humana podia sentir que havia uma linha tênue que a mantinha viva ali ainda. E antes que pudesse perguntar o motivo, a temerosa vampira respondeu voluntariamente, agora de volta ao tom pseudo calmo de sempre:

— Você só está viva ainda porque é a isca perfeita para atraí-la até aqui. E porque a sua morte já foi muito bem planejada, como já te antecipei.

Sabia que não podia fazer muito na situação em que estava. Sabia que, muito provavelmente, Shadow Weaver iria conseguir concretizar os planos, senão por completo, pelo menos a parte em que a mata. Afinal, já estava ali. 

Catra poderia não aparecer, principalmente depois da última interação tão… Animosa.

A vampira se aproximou novamente e voltou a acariciar seu rosto num toque que nunca fora permitido pela humana. Isso inflamava uma irritação profunda nela. Uma que se sobrepunha até mesmo ao medo e a dor que sentia.

Não tinha mais nada a perder, já estava no pior cenário possível. 

Era necessário tentar canalizar esse emaranhado de sentimentos ruins que só cresciam para sua autodefesa.

— Tira a mão de mim! — Adora grunhiu e, num impulso, estapeou a mão que estava em seu rosto e chutou o corpo da outra para fora da cama. 

Em milésimos de segundos, a vampira estava em cima dela de novo, desta vez agarrando o seu pescoço com uma das mãos fazendo-a agonizar sem ar.

— Quer saber de uma coisa? — Ela falava entre os dentes, contendo uma raiva descomunal. — Eu posso muito bem adiantar a parte em que você morre porque eu detesto ser desrespeitada.

Shadow Weaver estava furiosa e demonstrava no olhar de ira que a qualquer momento que ela usasse 1% a mais de força, poderia quebrar a cervical de Adora como quem quebra um palito de dente.

— E vai ser bem devagar, não vou te poupar de nenhuma maneira… — Ela sussurrou no ouvido da humana.

Debatia as pernas e usava as mãos para tentar tirar Shadow Weaver de seu pescoço com as últimas forças físicas restantes. Era tudo em vão, principalmente quando a cada tentativa os movimentos mostravam-se mais e mais enfraquecidos.

É isso. 

Era o fim.

Era agora que iria morrer. 

O filme de sua vida miserável e com poucas alegrias começou a passar em sua mente. 

Manchas escuras tomaram sua visão e o coração disparava como nunca antes. 

Talvez estivesse infartando.

Era melhor que infartasse ou morresse por falta de ar?

Pensou em como essa pergunta era inútil agora.

“Inútil e aleatória”, Catra iria fazer questão de pontuar isso se estivesse ali, com certeza.

“No final das contas você acaba do mesmo jeito: morta”

Óbvio que nos seus momentos finais iria ter espaço para simular a voz dela lhe falando isso.

Espaço também para relembrar as vezes em que fez, de fato, perguntas inúteis e aleatórias à ela, porém,  em momentos mais agradáveis, enquanto tocavam os projetos profissionais juntas na galeria.

De todas as ‘Catras’ criadas em sua mente, essa era a que mais gostava de recordar.

A que menos gostava era a que manipulou, a que mentiu.

Honestamente, queria ter tido mais tempo para entender melhor o que foi e o que teria sido de toda essa história. 

Queria ter explorado mais os possíveis cenários, possíveis soluções.

Queria poder vê-la uma última vez.

Ver seus amigos uma última vez.

Será que Glimmer e Bow sentiriam sua falta?

E seus colegas de trabalho?

E Catra?

Será que foi verdade o que ela disse sobre estar pronta para salvá-la independente de qualquer coisa?

Mais uma monte de perguntas inúteis e aleatórias.

Pelos seus cálculos, não havia mais tempo para a resposta de nenhuma delas.

Seu corpo já estava nos espasmos finais, aparentemente. Sentia uma dormência generalizada, sentia uma vontade de fechar os olhos e acabar logo com isso.

Adora…

Aquela voz familiar invadiu a sua mente mais uma vez. Literalmente dentro da sua mente, porque por fora ainda sentia o golpe lento e fatal de Shadow Weaver. Ela ainda a esganava, por mais distante que tudo parecesse.

Adora! Seus sinais vitais estão-

A voz novamente. Um pouco mais alta desta vez, e um pouco exasperada também.

— Não se entrega! Continua acordada, eu estou chegando!

Nessa hora Adora quis rir. 

Rir da coincidência, rir da pegadinha que sua mente estava pregando nela. 

Alucinar a voz de Catra dizendo que iria salvá-la logo depois de ter pensando nisso? 

Numa escala de 0 a 10, seu cérebro merecia 11 no quesito sadomasoquismo.

E mesmo assim, quis acreditar no que ouvia. Esforçou-se para não se entregar à morte. Manteve os olhos abertos mesmo quando não conseguia enxergar mais nada. 

Estava tentando, mas estava por um fio.

Quase não conseguia mais raciocinar quando, repentinamente, o oxigênio invadiu seus pulmões de uma forma tão brusca que a fez tossir descontrolada.

A pressão da mão de Weaver no seu pescoço sumiu e gradativamente foi recuperando o que era possível recuperar no estado de quase morte que chegara.

Os olhos, ainda que embaçados, viam borrões movendo-se pela sala. Eram mais duas pessoas ali? Vampiros?

Moviam-se rapidamente e pareciam atacar Shadow Weaver.

Ouvia num estéreo mal equalizado e por baixo de um forte zumbido umas vozes no fundo:

— Pega a Adora e leva para um hospital agora! Eu vou atrás da Shadow Weaver.

— Não vai, é muito arriscado! Ela fugiu de propósito, para te atrair para alguma armadilha! Não posso te deixar sozinha-

— Cada segundo é importante para que ela sobreviva!

— …

— Vai logo!

Droga! Tá!

— E leva todas aquelas bolsas de sangue da outra sala! Ela vai precisar.

A volta do ar circulando em seu organismo foi um alívio e um peso, pois agora era impossível resistir à vontade de simplesmente fechar os olhos e dormir, talvez para sempre.

Sentiu alguém pegá-la no colo e correr. Correr numa velocidade sobrehumana.

Estava sendo levada para algum outro lugar. 

Desta vez, não sentia ameaça em nada, nem no toque, nem nas circunstâncias.

Sentiu-se orgulhosa por acreditar naquela voz. 

Ou estava morta e vivendo um resgate pós vida, ou aquilo não foi só uma ilusão.

De qualquer maneira, não conseguiu ficar acordada para saber aonde iria parar desta vez.