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Language:
Português brasileiro
Stats:
Published:
2025-04-01
Updated:
2025-11-08
Words:
19,442
Chapters:
5/?
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1
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5
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2
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94

Forever Young

Summary:

“Eu gostava da guitarra dele.” Suguru disse, ponderando, quase dormindo com a carícia nas raízes do cabelo. “Mas acho que–. Não, tenho certeza de que ele gostava de mim.”

E então, Satoru olhou para ele, com aquele par de olhos celestiais. Deus, era tudo tão azul; não era o azul triste, era o azul belo, nostálgico e eterno. Ele se curvou, suficiente para respirar em cima da pele de Geto, “Eu gosto mais. Bem mais.”

“Ah, é?” Riu, soprando um pouco do ar que prendeu sem nem perceber. “Quanto?”

 

 

“Para sempre.”

 

 

─────────

Uma fanfic sobre a geração de 2000s fora do universo de Jujutsu Kaisen, focada no desenvolvimento entre o grupo de amigos: Gojo Satoru, Geto Suguru, Nanami Kento, Yu Haibara e Shoko Ieiri.

Narrada pela perspectiva de Suguru.

(sendo reescrita, última revisão em 07/11/2025)

Chapter 1: Primavera de 2004: “Casa”

Summary:

Geto tem uma conversa com seu padrinho.

Notes:

Olá! Este é um projeto que eu estou preparando há bastante tempo e estou muito feliz por finalmente conseguir desenvolver. Forever Young vai acompanhar não somente a dinâmica entre os satosugu, mas entre todo o grupinho de amizade deles e talvez até mais que isso.

É importante que vocês saibam que eu estou escrevendo um Slowburn aqui então se preparem para eles tendo relacionamentos paralelos ao longo dos anos (mesmo os casais mais improváveis). Tenham em mente também que isso é uma história onde os personagens mudam com o passar do tempo, o jeito, os costumes e tudo mais.

A história está sendo escrita com base nas minhas pesquisas sobre a cultura japonesa, muitas palavras/expressões comuns serão usadas (todas com seus respectivos significados nas notas finais), mas também usarei expressões em português e/ou em inglês para determinadas ocasiões.

obs: a história está na versão BETA, estou postando para analisar a satisfação dos leitores, portanto, os capítulos podem ser levemente alterados vez ou outra, assim como a sinopse. Comentários construtivos são bem-vindos sempre <33

 

CRÉDITOS

Cr¹: Gege Akutami - Autor original de Jujutsu Kaisen.

Cr²: MsKingBean89
- Inspiração na obra All The Young Dudes

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

C/W's do capítulo:

1. menção de álcool, cigarros e violência (eu não apoio o uso de drogas lícitas e/ou ilícitas por menores, muito menos sou a favor da violência. Tudo aqui é ficção);

2. palavras de baixo calão e gírias.

***

Pressure, pushing down on me
Pressing down on you
No man ask for

Under pressure
That burns a building down
Splits a family in two
Puts people on streets

─ "Under Pressure" Queen & David Bowie, 1981.

 

Quarta-feira 1 de abril, 2004

Ele sentia a brisa morna da manhã soprar contra seus fios de cabelo, bagunçando-os naturalmente.

A adrenalina começava a se dissipar de seu sangue, mas a tensão ainda pulsava nos ombros, como se seu corpo esperasse o próximo soco, a próxima chuva de vidro ao ver um dos caras quebrar uma garrafa de bebida vazia para usar como ameaça (certo de que Daiki seria esse cara), ou talvez o grito abafado de alguma garota ao testemunhar a cena entre as vielas de Tóquio.

Ele ainda parecia um bandido, tinha cortes na blusa branca que usava por baixo da jaqueta jeans preta ─ esta que escondia um arranhão recente no antebraço por baixo da manga. Agora ela estava descosturando em um bolso, ele não ficaria tão incomodado com o detalhe se essa não fosse sua favorita, com o nome dos Beatles bordado nela.

Seus nós dos dedos também estavam bastante avermelhados, quase roxos. Nada de mais. Nada que ele já não tivesse passado antes.

Mas dessa vez, alguém tinha falado demais.

Geto sabia que os garotos do Kamagasaki não eram exatamente discretos ao circular por aí. Ele mesmo admitia que não tivera cautela ao andar com eles pelas ruas da metrópole. Mas não esperava que os ouvidos de Yukio Nishimura alcançassem tão longe quanto o povo que já o vira em brigas. Aliás, todas elas ocorriam em um único bairro, e os habitantes de Sanya não eram exatamente o tipo de gente com quem Yukio costumava se relacionar.

Talvez seis meses fossem tempo bastante para seu nome se espalhar pela capital, ecoando em bocas demais, até transbordar dos subúrbios e alcançar as pessoas do Denenchofu ─ vizinhos e amigos de Nishimura, o que poderia explicar a convocação repentina que recebeu via torpedos às seis da manhã.

Quando o afilhado e herdeiro da Nishimura Textile passou pelos portões de ferro da casa, o cheiro de grama se misturou ao de cigarro barato e asfalto molhado.

“Jūnin toiro.” Disse com um bocejo.

Dez pessoas, dez cores. Um ditado sobre individualidade e diversidade. Era usado como uma espécie de 'passe' para o pavilhão que foi mantido no terreno. Qualquer um que quisesse sequer respirar ali teria que pronunciá-lo.

Aquela residência era um pedaço de tradição esculpido no coração de Tóquio. Apesar da mansão luxuosa ao fundo, que vestia requinte ocidental (o que parecia irônico para quem conhecia o patriarca da casa), a verdadeira essência do lugar estava na minka, diante da qual Suguru hesitava em entrar.

O caminho de pedrinhas não era tão longo até a porta da outra parte da moradia, mas fazia barulho demais. Suguru poderia se espreitar pela grama do jardim meticulosamente cuidado, onde árvores retorcidas pareciam esculpidas pelo próprio tempo e flores de cerejeira pendiam como promessas esquecidas. Era, talvez, sua melhor opção para esquivar-se da descompostura que o aguardava.

Isso se ainda fosse noite e, bem, se as luminárias altas espalhadas a cada metro quadrado do jardim estivessem queimadas, o que não era a realidade.

“Bem-vindo de volta, Geto.” Uma voz grave soou ao seu lado. “O senhor Nishimura o aguarda e, se me permite, pelo rosto dele nesta manhã, você está em uma saia justa.”

“Me diga algo novo, sim? O mau-humor deve ser o brinde da velhice.” Suguru disse, tentando soar baixo, sendo acompanhado de uma risada do segurança na entrada.

Ele nutria uma certa simpatia por Sho. O homem, incumbido unicamente de vigiar a minka e assegurar que o ditado fosse proferido antes de qualquer passo sobre o piso de madeira, parecia destinado à tarefa. No lugar de Sho, Geto teria sucumbido à exaustão mental há muito tempo. Quantas vezes seria necessário ouvir 'Jūnin toiro' por dia, especialmente quando até o venerável Yukio o repetia antes de adentrar aquele espaço? Uma verdadeira insanidade.

Suguru pousou um pé no primeiro degrau de madeira polida, lançando um olhar rápido para a mansão. Ainda dava tempo de evitar a lição de moral? Sho não o impediria, ele sabia, mas sair correndo agora talvez só piorasse toda a situação.

Com os olhos firmes, enfiou os punhos nos bolsos da calça no estilo cargo, como se quisesse esconder o próprio desconforto. Os dedos tocaram algo dentro do tecido ─ o formato familiar de uma caixa de Mild Seven.

Suguru quase riu. Claro que ainda estava ali. Ele tinha passado a madrugada toda com os caras arruaceiros, era óbvio que teria sobrado alguma coisa.

Por um instante, sentiu a ponta dos dedos deslizando sobre a superfície de papelão, experimentando a sensação familiar. Não era como se ele gostasse. Mas às vezes era bom ter algo entre os lábios, algo para ocupar as mãos, para preencher os silêncios que vinham com a pressão esmagadora de tudo que se esperava dele.

As coisas poderiam ser diferentes se ela estivesse aqui. Ponderou brevemente, mas tratou de desviar seus pensamentos por ora; ele já se achava um idiota, não poderia ser um idiota depressivo agora.

Suguru apertou a caixa entre os dedos, como se testasse seu próprio autocontrole, e depois soltou. Empurrou as mãos mais fundo nos bolsos, afastando a tentação e entrou de uma vez na minka.

Os corredores internos eram forrados de madeira escura e reluzente, adornados por telas shoji impecavelmente brancas e quadros que pareciam querer sussurrar histórias de eras passadas. O aroma suave de incenso parecia perseguir cada canto, misturado com o perfume delicado de chá verde recém-preparado.

O ambiente era impecável. Sofisticado. Quase intocável.

E ele o odiava.

Odiava a perfeição sufocante, o controle velado que permeava cada centímetro daquela casa. Talvez, por isso, ele fizesse questão de andar sem cuidado, os passos arrastados pelo piso que brilhava como um espelho. Não que ele esperasse uma reprimenda ─ não de verdade. O Sr. Nishimura não era o tipo de homem que se preocupava com algo tão pequeno quanto um adolescente desinteressado arranhando o chão com o all star gasto. Ele era rígido, severo, mas nunca cruel.

Quando Suguru entrou na sala principal, Yukio estava sentado em uma almofada de seda diante de uma mesa baixa, com a postura ereta. Ele parecia impassível, nem mesmo se dando ao trabalho de olhar para cima enquanto provavelmente assinava documentos praticando Shodō com um pincel folheado a ouro. Famílias tinham uma renda mensal menor do que o preço daquele pincel, não que fosse do interesse de qualquer um naquele maldito bairro, eles não se importariam com isso nem em um bom dia.

Vez ou outra, seu padrinho olhava para a xícara de chá e massageava as têmporas, como um ritual silencioso.

Ao fundo, a parede principal era decorada por uma pintura antiga que retratava uma paisagem enevoada ─ montanhas elevando-se como sombras e rios correndo como cicatrizes prateadas. Era a interpretação que Geto extraía, não sabia se tinha de fato um significado.

“Sente-se, Geto.” Disse o padrinho, com aquela voz pragmática dele. Não havia convite nela, só uma ordem disfarçada de gentileza.

“Por que eu 'tô aqui?.” Geto disse rápido, fazendo Yukio levantar o olhar por cima dos óculos de leitura por alguns segundos e os abaixar de novo.

“Sente-se e talvez eu possa responder.”

Suguru não questionou mais nada, apenas deixou o corpo cair de qualquer jeito na almofada oposta. Por um momento, o silêncio entre eles foi preenchido pelo suave sussurrar do vento lá fora e pelo ocasional estalar da madeira.

“Nem se algum dia fosse de seu interesse cinseguiria apagar o nome do meio da sua história, garoto.”

Geto fingiu não ouvir o comentário de Yukio, suspirando em tédio. Ele sempre começava seu discurso da mesma forma.

Pretendia continuar desligado pelo resto daquele 'chá convidativo-obrigatório', se amaldiçoando internamente por não estar com seu MP3 Player no momento. Mas então, o velho Nishimura arranhou a garganta de forma bastante audível. Um sinal para prestar atenção.

“Você foi matriculado em Seishin.”

Suguru piscou, o rosto congelado em descrença antes de se torcer em uma risada cínica. “Seishin? 'Tá falando sério? É a sua brincadeira do primeiro de abril?”

“Não seja idiota.” Yukio ergueu os olhos pela segunda vez, e havia algo afiado neles, algo que sempre esteve lá quando olhava para si ─ aquela mistura de reprovação e resignação, como se ele fosse uma peça fora do lugar que precisava ser corrigida.

“Eu não vou para lá,” retrucou Suguru, e sua voz estava quase calma, quase contida. Mas o sangue já fervia, borbulhando por baixo da pele. “Não 'tô interessado em me enfiar naquele antro de arrogância. Aquele lugar deve transbordar gente que se acha melhor do que os outros só porque os pais têm dinheiro.”

“Você é sortudo demais, rapaz. Seishin tem a maior nota educacional.” Foi tudo o que o homem disse antes de praticamente beber todo o chá da xícara em um único gole.

“Eu poderia ter colocado-o em um reformatório do outro lado do mundo ou coisa assim. Tem alguma ideia da proporção do problema que sua saída na madrugada poderia arranjar?” O Sr. Nishimura manteve os olhos fixos nele, o rosto inexpressivo como uma máscara de pedra.

“Você tem um lugar nobre aos quatorze anos e se mete com aqueles vagabundos mais velhos, que não vão dar em nada na vida.”

De repente, para Suguru, a advertência não era de fato preocupação com sua saúde, mas sim com o futuro da indústria. Ele abriu a boca para dizer algo, qualquer coisa ─ se sua raiva não fosse tão tácita. Yukio conseguia ser tão ignorante ao ponto de por para fora qualquer merda sobre seus amigos. Merda que ele nem ao menos sabia sobre.

“Sanya? Você ao menos sabe quem estava lá para ver sua cena? Quem pode ter ouvido seu nome e decidido comentá-lo em um jantar? Quem pode ter tirado uma foto?” A voz de Yukio ainda era baixa, mas carregava um peso cortante.

Suguru franziu o cenho, irritado. “ 'Tá bem, mas não aconteceu nada disso─”

“Dessa vez.” Yukio o interrompeu, deixando os óculos de leitura sobre a mesa. “E se tivesse? E se amanhã seu nome estivesse em uma coluna de escândalos? E se eu tivesse que pagar para retirar uma manchete inteira da imprensa antes que isso virasse um processo?”

A sobrancelha de Suguru tremeu, mas ele segurou a expressão. “Merda, você 'tá soando um alarme de incêndio para uma simples fumaça de incenso.”

Yukio soltou um riso seco. “Uma briga de gangues, é nisso que você tem se metido durante a primavera toda? Pelos deuses. Suguru, você herdará uma empresa e─”

“Eu sou Suguru agora?” Geto encarou Nishimura da forma mais enfurecida que conseguia. “Quando está me corrigindo, sou apenas um Chapman, 'tal pai, tal filho', mas para me enfiar nos negócios da sua família, eu sou Suguru Geto.”

Ele mordeu os lábios para evitar soltar algum palavrão para ofender diretamente o padrinho, capaz de lhe causar problemas futuros; mas não segurou o chute na mesa que fez com que a xícara de chá caísse na madeira fria do chão, ganhando uma rachadura dadaísta nas belas linhas do porcelanato.

“Você possui mais do seu pai do que gostaria de admitir, bem mais do que o sobrenome.” Ele suspirou. “Não era para ser assim, Sonin estava como herdeira antes, você sabe.” 

Suguru sentiu um gosto amargo na boca, uma mistura de frustração e indignação. Seu peito subia e descia em uma respiração pesada, como se estivesse tentando conter algo que queria explodir. Ele passou a mão pelos cabelos, desfazendo a franja lateral já bagunçada, e desviou o olhar do padrinho. Não havia sentido em continuar aquela conversa. Não ali. Não agora.

***

Assim que seu padrinho disse que sua 'reunião' tinha terminado, Suguru partiu em direção ao vestíbulo da outra casa o mais rápido que suas canelas podiam caminhar. Seus sapatos sujos batiam no chão lá fora, chutando algumas pedras de propósito e outras sem querer. Ele nem olhou para Sho quando passou por ele, estava suplicando por solitude agora.

Se o jardim, que era quase uma praça de imenso, parecia interminável enquanto suas pernas o conduziam por lá, as pessoas teriam que inventar uma palavra mais fortes para descrever a região principal da mansão Nishimura. Estabelecida em aproximadamente treze mil tsubo, ostentava uma série de cômodos luxuosos e dependentes: duas salas de estar, um salão de eventos, adegas lotadas, uma cozinha larga, sala de jantar e uma biblioteca particular que se estendia pelos dois andares, que curiosamente era usada como esconderijo para brincar na infância. Também havia quartos, dez no total (cada um com um banheiro), além da área de trás, que contava com uma piscina, uma quadra de esportes e um pomar; era como se alguém pudesse se perder ali dentro.

Praticamente correu para subir as escadas de mármore, com o passo fundo como sempre. Suguru não gostava de ver o retrato enorme da família que ficava escancarado para quem abrisse as portas da sala principal. A imagem tirada em 1995 mostrava um Suguru de cinco anos sorrindo, ao lado de Sonin, Yukio e seus próprios pais ─ que nem eram da família por ligação sanguínea, consequentemente ele também não.

Ele sempre achava que ouvia algumas vozes quando olhava demais;

“Não! Eu acabei piscando nessa, vamos fazer outra.”

E então, Yukio respondia: “Querida, já temos uma dúzia de fotos acumuladas. Em uma, você pisca, em outra, Chase ou Suguru se mexem.”

“E você já deve estar sentindo as costas se curvarem, tio.” Kuti ria alegre.

Uma memória muito complicada estava cravada ali, meses depois daquele dia, Chase e Kuti sofreram um terrível acidente de trânsito durante uma viagem à Londres, cidade onde seu pai nasceu. Sonin, de bom grado, cuidou de Suguru como irmã mais velha enquanto Yukio estava trabalhando. Foi um erro que Geto tivesse se apegado tanto a ela, pois em 2002 ela também teve o corpo velado e enterrado após uma crise de sua condição neurológica - epilepsia.

Suguru chegou no piso superior, esbarrando em duas empregadas conhecidas que se assustaram com a pressa dele e quase derrubaram os panos que usavam para tirar a poeira dos vasos no corredor. Pedindo desculpas, ele voltou a caminhar até chegar ao seu quarto. As mãos dele estavam soando, e ele teve que enxugá-las na camisa antes de abrir a porta e fechá-la, logo depois de entrar. Ele não hesitou antes de se jogar de costas contra a cama King Size.

Era surpreendente que seus pés já estivessem quase varando o colchão, seu pico de crescimento começou no verão do ano passado; meio cedo para ele. Mesmo assim, seu corpo não mostra nenhum interesse em parar de se alongar até então.

Respirando pesadamente, Suguru tentou forçar a notícia de mais cedo a sair de sua mente. Estava praticamente dividido ao meio sobre aceitar os fatos ou se rebelar mais ainda.

O Instituto Seishin poderia soar como uma ideia absurda, se não fosse pelo fato de que Suguru gostava genuinamente de aprender. Seu problema nunca foi a capacidade ─ quando queria, era brilhante, genial ─, mas sim suas escolhas. De verdade, ele conseguia controlar tudo muito bem, até que alguém viesse a forçá-lo a fazer algo ou fosse idiota demais. Desse modo, suas decisões e ações acabavam acontecendo por impulso à base de raiva. Tinha reflexo disso em todos os lugares; na vez que ficou de detenção por acertar a bola de basquete no nariz de um primeiranista que fazia bullying, por exemplo. 

Desde que Sonin se foi, Yukio praticamente enfia em sua cabeça as coisas sobre a Textile e afins. Tudo isso contribuiu para a impulsividade de Suguru. Por não ter sangue Nishimura, ele não tinha interesse algum nos negócios da família, muito menos a obrigação de tomar as rédeas.

Suguru Geto era herdeiro por escolha.

Preguiçosamente, levantou uma parte do corpo para vagar os olhos pelo quarto em busca de algo; no criado-mudo, um pequeno toca-discos permanecia fechado, acumulando poeira desde a última vez que fora usado. Os pôsteres de diversos músicos davam vida às paredes, sejam eles de artistas nacionais como L'Arc-en-Ciel, The Hiatus, Nighmare e FLOW, ou dos estrangeiros: T. Rex, Queen e é claro, The Beatles. Todos eles continuavam ali, desbotados nas bordas, imóveis há bons tempos.

Ele passou os olhos pelo rosto de John Lennon sem intenção, mas sua mente já havia feito a conexão antes que pudesse evitar. Sonin teria reclamado da falta de cuidado com o papel. Teria falado que ninguém no Japão entendia Eleanor Rigby ou Golden Slumbers tão bem quanto ela.

Geto não sabia por quanto tempo ficou ali congelado, procurando pelos discos que deveriam estar empilhados no chão ou por um aparelho reprodutor MP3. A única coisa que sabia era que, se não fechasse os olhos, a imagem dela continuaria em sua mente. E isso não era algo que queria agora.

Estava pronto para deitar de novo, e então o celular vibrou uma, duas, três vezes. Algo irritadiço dentro dele sabia bem o que era, ou melhor; quem era.

Suguru pegou o aparelho e mal encostou no ouvido quando a voz do outro lado o atingiu:

“Cara, 'cê tá vivo?” Era Daiki.

Estava cedo demais para qualquer um que tivesse um mínimo de bom senso estar acordado. Mas os garotos de Kamagasaki não sabiam o que era senso, e por isso não o tinham.

“Acho que sim, infelizmente.”

“Foi amaldiçoado? Consigo ouvir seus olhos revirando daqui!” Haruto comentou, entrando na linha com sua voz ainda carregada de sono.

“Pior, bem pior. Eu—”

“Espera, vou adicionar o VHS na chamada também. Vai ser um saco ter que contar pra ele depois.”

Suguru e Daiki riram alto. 'VHS' era um apelido, quase codinome de Kaito. Surgiu na semana passada, quando ele apostou que conseguiria chamar a garota mais bonita do Roppongi para comer um cachorro-quente ali perto. Mas, quando chegou perto dela, simplesmente travou, gaguejando como um VHS emperrado.

“Certo, pode contar. Estamos todos aqui.”

“Bem-vindo, VHS. Se precisar de ajuda para rodar direito, a gente pode te dar umas batidinhas na cabeça.”

“Vai se ferrar! Eu 'tô só dois andares acima de você, Daiki.”

A linha foi tomada por gargalhadas altas e xingamentos cruzados. Suguru afastou o telefone do ouvido, esperando a gritaria se acalmar.

“Ok, acho que mal posso ouvir minha própria cabeça agora.” Haruto resmungou, tentando recuperar o ar. “Inclusive, ela dói pra caralho. 'Tô com uma puta ressaca e vocês todos são culpados.”

“Vocês e uma vírgula. Eu tive que vazar de Sanya antes das cinco horas.”

“Ah, claro. Uh, me arrepio até os pés só de pensar no velhote!”

“Guru, conta logo sua novidade.” Daiki insistiu.

Suguru suspirou.

“Uh-hu, certo. Eu vou pra um internato. Em Yamaji, no meio do nada.”

⊱ ────── ⊰

Notes:

Aqui eu deixei algumas descrições sobre os locais citados no capítulo e as demais palavras ↓

Kamagasaki: um dos bairros mais pobres de Osaka, conhecido como a maior "favela" japonesa.

Sanya: o bairro mais marginalizado da capital, também extremamente pobre e conhecido por ter atividades de gangues por lá.

Denenchofu: um bairro de alto padrão, luxuoso e com custo de vida extremamente caro.

Minka: um tipo de casa vernácula japonesa. Era construída pelo povo e abrange uma tipologia. Na tradição, uma minka não pertence à aristocracia. Entretanto, a existência dessa construção nessa história é apenas para 'materializar' o tradicionalismo.

Mild Seven: marca de cigarros japoneses bastante popular nos anos 2000.

Shodō: é uma arte e disciplina que visa expressar emoções através da escrita. É ensinada às crianças japonesas na escola primária, sendo praticada com pincel, tinta nanquim, pisa-papel e folha de arroz.

Tsubo: é uma unidade de medida japonesa, 13 mil tsubo equivale a mais ou menos 6 campos de futebol e meio.

Roppongi: segundo bairro mais caro de Tóquio, sendo também um centro cultural assim como Ginza e Shibuya.

Chapter 2: Primavera de 2004: Os Caras do Kamagasaki

Summary:

Uma primavera suja demais pra esquecer

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

C/W's do capítulo: 

1. menção de álcool, cigarros e outras drogas.

2. palavras de baixo calão, gírias e apelidos que podem soar ofensivos!

*** 

Know that I grow my hair just to scare the teacher

My goodness gracious me ain't little Johnny a creature

And I lost count of the times when I never bathed 

I'm one of the boys

One of the boys

I don't say much but I make a big noise 

─ "One of the Boys" Mott The Hoople, 1972

 

Domingo 4 de abril, 2004 

Geto não era fã de lugares que cheiravam como uma grande garrafa de saquê. Mas gostava de estar onde sabia que ninguém com os mesmos privilégios que ele estaria.

O apartamento de Kaito era um exemplo perfeito de um desses lugares. Era projetado para apenas um, mas abrigava, inacreditavelmente, cinco pessoas por várias noites. 

Depois de contar sobre Seishin para os garotos, eles garantiram que fariam Suguru ter o melhor final de semana antes das aulas começarem naquele 'lugar onde o diabo habita' (mesmo que eles nunca tivessem escutado algo verdadeiramente ruim sobre esse lugar antes). 

Seu padrinho tinha o proibido de sair depois do incidente em Sanya? Sim. Geto deveria ignorar tudo e passar seus últimos dias de férias com os mesmos garotos que praticamente o meteram na confusão? Indiscutivelmente sim. Não havia absolutamente nada que ele pudesse fazer se seu coração batia feliz perto de cada um deles.

As garrafas de cerveja espalhadas pelo chão, os potes de ramen instantâneo vazios, as janelas que dormiam abertas para não correr o risco de alguém morrer sufocado pela fumaça dos cigarros. Kaito dizia que ia limpar tudo ‘amanhã’, mas amanhã nunca chegava. Era milagroso que esse cara fosse legalmente emancipado.

O colchão fino em que ele estava agora era absurdamente desconfortável, o tecido áspero coçando sua pele através do lençol. Ele já teria se levantado há bons minutos se Daiki não estivesse dormindo feito pedra, com o braço jogado sobre suas costas; quase uma âncora. O calor do amigo era incômodo durante aquelas manhãs, mas não o suficiente para afastá-lo — não ainda.

Lá fora, o som distante da cidade entrava pela janela aberta, misturando-se ao farfalhar das cortinas sujas, balançando vez ou outra com o vento que, hoje, estava terrivelmente quente. O cheiro de álcool impregnado nas paredes fazia arder levemente suas vias respiratórias, e ele se perguntou por que diabos ainda ficava ali. Poderia muito bem estar em sua própria cama, num lugar onde o travesseiro não tivesse gosto de cerveja velha.

Mas ele ficava.

Especialmente durante aquela semana. 

No meio de latas amassadas e cinzeiros transbordando, era o único lugar onde ele sentia que ninguém o pressionava para nada. 

Ele suspirou, tentando mover-se sem acordar Daiki. O outro resmungou algo inaudível e apertou os braços ao redor de sua cintura por reflexo. Geto revirou os olhos.

“Cara.” Cutucou o braço dele, a voz arrastada pelo sono. “Me solta.”

“Hm… não tá na hora ainda…” veio a resposta baixa, acompanhada de um bocejo.

“Claro que tá. Vai tomar banho, você fede a fumaça.”

O outro riu baixinho, mas finalmente o soltou, se espreguiçando contra o colchão antes de enterrar o rosto no travesseiro. Geto se sentou, massageando a nuca dolorida por causa da posição que costumava dormir.

Do outro lado do cômodo, Kaito estava esparramado em uma poltrona rasgada, o cigarro apagado equilibrado entre os dedos, a cabeça caída para trás num ângulo assustador. Ele parecia morto, mas Geto sabia que não era o caso — VHS sempre dormia desse jeito e, de alguma forma, continuava respirando. Pensou por um segundo o porquê dele ter dormido na poltrona ao invés do sofá, mas estava ali a resposta: Daiki deixou Britney descansar no couro velho. Britney, a Stratocaster preta.

Ele tinha tanto ciúme daquela guitarra que tratava como uma namorada, humana. Sabia que era de segunda mão ou algo assim, cheia de arranhões perto dos captadores que com certeza não existiriam se fosse comprada direto da loja. Um dia, Suguru acordou no meio da noite com o amigo afinando as cordas, ele fazia uma melodia a cada vez que girava as tarraxas. Daiki não era nenhum mestre. Mas os dedos dele sabiam perfeitamente o caminho. E, por algum motivo, ver alguém tão perdido parecer completo enquanto tocava, grudou na memória de Suguru como se aquilo dissesse alguma coisa sobre ele também. Sabia que esse era o futuro que Daiki estava planejando; ganhar a vida com música assim que saísse do colégio e, com sinceridade, Geto acreditava nesta tese.

Ele se levantou, evitando pisar em uma pilha de roupas sujas perto do colchão. Pegou a camisa que estava jogada em uma cadeira, vestindo-a sem pressa. Olhou rapidamente para todos os lados do cômodo e se perguntou se deveria estar preocupado por não estar enxergando os fios loiros e embaraçados do cabelo de Haruto pelo local.

Foi então que a porta de entrada do apê' rangeu, e uma voz familiar preencheu o ambiente.

“Eu deveria proibir a entrada de vocês aqui, bando de Onee's”

A garota surgiu como sempre — ocupando o espaço antes mesmo de atravessar a porta. O cabelo castanho claro, ondulado e bagunçado pelo vento da rua, e a franja meio torta que ela mesma cortava. Usava uma regata branca simples, calças jeans tradicionais e um par de tênis azuis da Converse ─ meio encardidos, que, com certeza, já tinham visto dias melhores. Qualquer um que a visse poderia afirmar que era Kaito em sua versão feminina; só que com bons hábitos.

Ela trazia nas mãos uma sacola com barulhos suspeitos de recipientes de isopor batendo uns nos outros. “Oi, Prima Emma. Bom dia.” Geto respondeu, arrastando a voz e enfatizando a gentileza com um sorrisinho, enquanto abria a geladeira velha como se fosse encontrar algo novo ali dentro.

Emma era, na verdade, prima de Kaito, que se mudou para Tóquio recentemente e ocupa um espaço no apê. Eles gostavam de usar a palavra 'Prima' como parte de seu nome, foi a forma como o rapaz de cabelo igualmente claro a apresentou; “Adorável e incompetente Prima Emma!” Além de tudo, o 'm' adicional foi um erro engraçado no nome dela, a Senhora Matsuba quis registrar o nome da filha por conta própria quando estava completamente tonta pela dor do parto.

“Dia.” Ela resmungou e largou a sacola sobre o balcão com um baque. “Haruto deve ter pedido isso. Posso sentir a pimenta que há nesse lámen de longe.”

Geto ergueu uma sobrancelha. “Lámen?”

“Uh-hum. Almoço.” Emma apontou para o relógio de parede que, em algum momento durante os dias que passavam ali, perdeu um ponteiro. “Vocês perderam a manhã toda.”

Daiki, ainda afundado no colchão, levantou a cabeça com esforço e piscou devagar, como se estivesse saindo de um transe profundo. Seu cabelo castanho com mechas loiras estava praticamente de pé nesse ponto.

“Bem-vinda de volta, prima Emma.” Disse baixo, ainda meio grogue de sono e se cobrindo mais com o lençol.

“Você tá dormindo ou fugindo da luz solar?” Ela brincou, pegando uma almofada do sofá e atirando com precisão cirúrgica no meio das costas dele. “Levanta, parece um cadáver.”

“Sou um cadáver consciente, isso conta.”

“Devo dizer que sua consciência não é exatamente confiável.” Suguru expôs. Recebendo um olhar incrédulo como se ele fosse o próprio Judas após trair Jesus.

VHS, o outro corpo quase em decomposição ali, resmungou algo incompreensível da poltrona e recebeu a mesma gentileza: uma almofada voadora que ricocheteou no seu ombro e caiu no chão.

“Merda, Emma.” ele reclamou, sem nem abrir os olhos.

“Vocês que se fodam.” Ela foi até a janela, fechando uma das folhas com força. “Tá entrando fumaça do vizinho. Quero viver até os vinte e cinco, pelo menos.”

“Oh, não. Você vai morrer de qualquer forma se deixar essa janela fechada por muito tempo.” Daiki alertou. “Está sentindo esse cheiro? Aposto que tinha algo além de nicotina neste aqui.” 

“Ew,” A garota torceu o nariz com fingida repulsa. “Se é pra morrer jovem, que seja com vinho caro e escândalo, não com o pulmão parecendo um cinzeiro e sob o efeito dessas coisas.”

A conversa foi interrompida pelo som da porta do banheiro sendo destrancada. Haruto saiu de lá passando a toalha pelos cabelos loiros, usando apenas uma bermuda larga e chinelos de dedo.

“Sabia que a gente tava falando de você.” Geto comentou ao vê-lo. 

O amigo sorriu sem se incomodar, jogando a toalha no encosto da cadeira e buscando algo nos bolsos. “Pegaram meu lámen?”

“Cinco tigelas apimentadas, como o príncipe mandou.” Haruto sorriu para Emma, pronto para falar algo que ela conseguiu prever.

“Foi ironia. Eu ainda te detesto.”

“Eu ia apenas agradecer, Ems.” Disse fingindo drama com uma mão sobre o próprio peito antes de finalmente puxar o celular do bolso e ligá-lo no rádio, escolhendo a melhor FM de música.

Não que fosse alguma surpresa, mas Suguru gostava de perceber quando o garoto mais alto dali ─ Haruto ─ era o único que não acrescentava 'Prima' para se referir à Emma. Ele não a chamaria assim nem de brincadeira, soaria estranho em sua boca; ainda que VHS dissesse um milhão de vezes que Emma fazia questão de afirmar para si mesma todos os dias antes de dormir que nunca cederia aos convites de encontro dele.

Ele observava a dinâmica dos dois com um tédio divertido nos olhos, enquanto pegava um copo da estante e enchia com a água mais suspeita do universo direto da torneira.

“ 'Cês vão comer isso mesmo?” ele perguntou, apontando com o copo para a sacola.

“Não foi à toa que pedi cinco. Se fosse pra comer sozinho, compraria o de micro-ondas.” 

Geto quase se sentiu triste. Uma tigela de lámen não era barata, principalmente depois do estouro da bolha econômica na década de noventa e a crise do FMI, cinco então deveria ser muita grana para qualquer um dos caras pagar. Ele não estava duvidando de Haruto, mesmo que na maioria das vezes ele que começava com as brigas ao encontrar alguns idiotas na rua, Suguru confiava no amigo e sabia que ele não roubaria algo ou alguém. Nenhum deles faria.

Apenas esperava que eles tivessem rachado algum dinheiro juntos.

Daiki finalmente se levantou, tentando arrumar os cabelos ainda amassados, e caminhou até a cozinha com a expressão de quem viu a guerra e sobreviveu.

“Se tiver pimenta o bastante pra me matar, eu como.” 

“É bom você estar vivo quando eu voltar para as férias de verão.” 

A frase escapou dos lábios de Geto num tom casual, quase irônico, mas o silêncio que se seguiu deixou tudo mais denso. Estavam todos próximos agora, definitivamente não deveria estar tranquilo. 

Ele se apoiava na parede perto da pia, se atrapalhando um pouco ao segurar a tigela quente com a mão direita e levar os hashis até a boca com a esquerda. 

Kaito e Haruto também comiam em pé, lado a lado, apoiados no balcão como se esperassem um milagre da pimenta instantânea. Daiki tinha agarrado um dos dois bancos disponíveis, mas a postura curvada e o olhar baixo entregavam que estava longe de focar no gosto do lámen. Emma se ajeitava no pequeno vão entre a bancada e o fogão, com a tigela na mão e os pés descalços. Ninguém podia usar o sofá pra comer — regra dela, sem exceções. Era isso ou comer completamente em pé.

A garota ergueu as sobrancelhas ao ouvir Geto, mas não comentou nada de imediato. Mastigou com calma, olhos se movendo entre todos que estavam ali. Foi só quando percebeu que o clima estranho persistia — pesado, concentrado e sólido — que decidiu quebrá-lo.

“Você pegou o quê, prisão domiciliar de quatro meses?” perguntou, com um sorriso enviesado e um tom de quem não tinha certeza se era brincadeira ou previsão.

Suguru soltou um meio riso, quase sem som e Haruto se engasgou um pouco ─ numa tentativa de gargalhada.

“Algo assim.”

Kaito olhou de lado, resmungando com a boca cheia:

“Seishin é praticamente um presídio, né? Só que com uniforme caro e professores que usam terno.”

Emma piscou devagar, finalmente juntando os pontos.

“Então você vai estudar lá?”

Geto assentiu, sem tirar as costas da parede.

“Sim, fui matriculado semana passada, aparentemente. Sem minha própria consciência.”

Ela mordeu mais um pouco do macarrão, encarando-o por cima da tigela.

“Uau.” murmurou. “Tenho um conhecido que estudou lá — acho. Um desses nerds de manual. Vivia elogiando o laboratório. Disse que o colégio parecia coisa de filme. Você pode estar exagerando, sabe?”

“Talvez.”

“Eles têm alguma coisa de clãs. É engraçado, parece que você entra em um clã e precisa ser fiel a ele nos... jogos escolares e mascotes? Algo assim.” Ems comentou o que sabia. “Isso definitivamente é coisa de gente bem do bolso.”

“Sim, isso é o que mais me irrita.”

“ 'Pra você isso é de graça, seu padrinho careta nem sentiu cócegas pagando tudo. Talvez valha a pena.” Kaito disse, pela primeira vez em todo o final de semana, alguma coisa pela qual realmente pensou. 

“E com certeza vão existir alunos intercambistas! Seu nome não será estranho, meu bom senhor Suguru Chap─”

“Mano, eu poderia arremessar essa tigela na sua cabeça.” Geto brincou, levantando um pouco a tigela de lámen na direção do amigo. Ele detestava o quão grande seu nome era e a forma descombinada como soava na boca das pessoas.

Daiki ainda não disse nada. A colher mexia devagar no caldo, os olhos presos a um ponto qualquer dentro da tigela. Desde a ligação, ele falava menos. Ou melhor: desde que ouviu o que ouviu, preferia engolir o silêncio a mastigar opiniões.

“Cara, 'cê vai ser obrigado a cortar o cabelo?” perguntou Haruto, rompendo o clima como sempre fazia. “Tipo alistamento militar?”

“Ou andar com uma pasta de couro e sapato engraxado?” VHS completou. “Você vai começar a usar palavras como ‘cordialmente’ e ‘em anexo’?”

Eles riram.

A verdade era que nem Suguru sabia o que precisaria fazer quando fosse para o colégio. Se implicassem com o cabelo, seria um problemão, ele estava deixando crescer há muito tempo; não passava dos ombros, nem encostava, na verdade. Mas o objetivo era que em algum momento estivesse longo o suficiente para se parecer com um rockstar dos anos oitenta.

“Se começar a falar com vírgulas, eu jogo suas jaquetas estúpidas de bandas pela janela.” Emma entrou na onda.

“Não me dá ideias.” Proferiu Geto, com um canto de riso escapando, o tipo que não dura tempo suficiente pra deixar qualquer coisa leve de verdade.

Houve um momento — breve, mas inteiro — em que ele quis pedir em orações pra ficar. Não com palavras, mas com qualquer coisa que não parecesse desesperada. Um toque no braço. Um ‘e se a gente fingisse que essa merda nunca aconteceu?’. Um segundo a mais olhando para aquele cenário tão pequeno e tão confortável que parecia parte do corpo dele.

A melodia de Tennage Dream, do T. Rex, começou a tocar no celular de Haruto, e foi quase suspeito o quanto ela se encaixava ali, no meio do silêncio meio risonho, meio desconcertado. Era como se o mundo soubesse o que estava acontecendo e quisesse anotar em trilha sonora. Suguru sempre funcionou melhor quando havia música nas coisas.

Surprise surprise, the boys are home...” murmurou sozinho um trecho da música.

Daiki suspirou, largando a tigela no balcão com um leve estrondo abafado e passou a mão pelo rosto, como se quisesse limpar um pensamento antes que ele fixasse.

“Só quero que volte menos metido do que já é.” Disse, finalmente. Suguru não soube distinguir se ele ainda estava tão tenso quanto antes. “Talvez eu até te convide para ser o vocalista da minha futura banda... mas aprenda a cantar antes disso.” Riu de canto.

“Isso é impossível.” Kaito comentou, sem hesitar, apontando os hashis como se eles selassem uma profecia. “Ele canta igual Britney quando as cordas enferrujam.”

“Eu ficaria mais feliz se fosse uma comparação com a Spears... I'm addicted to you, don't you know that you're toxic?

“Britney Spears na minha banda é um sonho distante no momento, e com esse vocal você só deixa mais longe.”

“Certo, todos já entendemos que você é louco para pegar uma mulher como a Britney Spears, cara. Agora, por favor, vamos nos concentrar com nosso amigo que irá ficar longe por meses.” Haruto disse, e no início parecia uma brincadeira, mas aos poucos ele soube que havia algo no tom — uma gravidade ensaiada, um tipo de verdade que ele normalmente escondia sob piadas. “Não pense que vamos deixar você se esquecer da gente quando se misturar com os imbecis da classe alta, sem ofensa.”

Geto assentiu de novo, devagar. “Eu volto. Com certeza. E não estou indo para o abate, como uma vaca.”

Acho.

“Você devia. E leve meu primo junto, por favor.” Emma rebateu, revirando os olhos antes que um hashi voador a atingisse de leve no cabelo, arrancando dela uma gargalhada que fez o cômodo parecer maior por dois segundos inteiros.

 

Quando eles acabaram, Suguru largou a tigela de isopor vazia na lata de lixo, junto com as outras. Ele estava enrolando para terminar de comer, porque isso significava encarar a verdade. Voltar para casa. E casa, há algum tempo, não era exatamente um lugar — era a ausência daquele espaço ali, do improviso com cheiro de cigarro, sal e riso abafado. Cada garfada a menos era um passo mais perto da quarta-feira.

Suguru escolheu curtir as músicas memorizando a vista que tinha da janela, na sala. Ele estava tão acostumado a acordar e ver a rua há dois andares de altura que estranhava quando via a piscina após acordar das poucas noites que dormia em seu próprio quarto. Como seria em Seishin, então?

“Achei embaixo do sofá, junto com um pacote de biscoito vencido.” Daiki surgiu ao lado dele, soltando a fumaça de um cigarro enquanto se apoiava na pedra da janela com uma Polaroid na mão. “Do seu aniversário.”

Ele inclinou a imagem num ângulo em que os dois pudessem vê-la juntos. Suguru reconheceu na hora. Lembrou do dia. Ele teve a brilhante ideia de levar sua Instax para lá, se arrependendo um pouco quando os garotos gastaram quase todos os filmes sem critério nenhum — mas agora, até que estava feliz pelo que fizeram.

A foto tinha saído meio torta, com o dedo de Haruto tampando parte da lente, VHS piscando forte demais enquanto fazia careta e Emma ao fundo, aparecendo de última hora, sorrindo e fazendo um ‘V’ com os dedos. Tinha essência. Tinha verdade. Uma prova de que eles tinham existido ali, naquele lugar tão desorganizado que costumava ter mais álcool e nicotina do que comida.

“É pra você levar. Pega.” Daiki estendeu a mão, simples, sem solenidade.

Geto segurou a imagem entre os dedos, e a quietude que veio depois foi mais leve. Ele não tinha nada pra falar, e talvez fosse melhor assim. Apenas puxou o amigo pelo braço e o prendeu num abraço demorado, onde coube mais gratidão do que palavras.

Definitivamente seria amargo ter que deixar tudo isso para trás em  dois dias. A cena, os rostos, as vozes. As piadas que já vinham meio prontas, os poucos sossegos confortáveis e as músicas que ouviam sempre. Tudo fazia parte de uma rotina, do tipo que todo mundo se acostuma e deixa de considerar especial, até ter que encaixar tudo em uma mala.

“Eu não gosto da ideia de Seishin. Nem um pouco. Você sabe, não é?” falou mais baixo que o normal. “Vou viver mais ou menos nos lugares que Sonin viveu. E metade das minhas bagagens já foram para lá, porcaria.”

“Que merda. Você nem tem opção, mano.” Seu amigo riu, zombando um pouco com a situação. Ele puxou do bolso um maço e ofereceu para Suguru, que pegou na mesma hora; ele sabia que não usaria tão cedo, mas vinha de Daiki.

“Supostamente para me sentir melhor?”

“Você pode transformar isso em algo bom. Como se fosse uma forma de entender a mente dela.” Daiki respondeu no mesmo tom contido, ignorando a pergunta carregada de sarcasmo de Geto. Entre todos ali, ele era o único com quem Suguru já havia falado sobre Sonin. Talvez só a tivesse conhecido de longe, mas isso bastava. “Memórias são para sempre.”

“Não são. A gente esquece, com o tempo.” Geto rebateu, sem encará-lo.

“Esquecer não apaga o que foi real.”

Suguru ficou em silêncio por alguns segundos. Ele tinha razão. Sonin, por exemplo, ele poderia esquecê-la algum dia— talvez como o próprio pai dela estava. Mas ainda assim, tinha sido real.

“Eu vou sentir sua falta. De todos vocês.”

Maldito seja Yukio Nishimura. E maldito duas vezes o informante de merda que esteve por Sanya. 

“Não se esqueça de nos avisar sobre o tal mascote de Clã. Vamos todos olhar para o céu e gritar um 'Vai Ursos!' ”

“Ursos?” Suguru riu.

“Eles são comuns nessas coisas de escola.”

“Ok, definitivamente não irei entrar em um Clã que tenha a porra de um urso como representante.”

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Notes:

A expressão “Onee” era usada para se referir a homens gays ou pessoas queer com jeito mais feminino, geralmente de modo mais pejorativo. 

Chapter 3: Nono Ano: Tudo, Menos Tóquio

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

C/W's do capítulo:

1. palavras de baixo calão, gírias e apelidos que podem soar ofensivos!

***

The history we were taught, a profile of war

“Now believe in miracles”

Hopes are burned to ashes

In a world of endless ruin, ah...who should we pray to?

Devil's walk in the strawberry fields

Have some fresh-squeezed tears

─ “Promised land” L'Arc-en-Ciel, 1998

 

Quarta-feira 7 de abril, 2004

Suguru puxou a mala para dentro do vagão, sentindo o impacto sutil das rodas cruzando o desnível entre o piso da plataforma de número vinte e cinco e o chão de madeira encerada.

Não fez questão de olhar para trás, não tinha ninguém para se despedir ali mesmo. Sho tinha dirigido até a estação de Tóquio por ordem de Yukio. Geto havia dito que podia ir sozinho no metrô mas o velho acreditava que ele pegaria outro caminho para se livrar de Seishin. Não era difícil de acreditar, mas Suguru realmente refletiu sobre o lugar e, após o último domingo, Daiki e Emma conseguiram convencê-lo de que poderia ser até 'divertido' se conhecesse as pessoas certas; a garota quase lhe ralhou quando admitiu não dar a mínima para quanto dinheiro seu tio havia gastado pois, segundo ela: não era gasto, e sim investimento. No fim, ele concordou e passou seus dias imaginando sobre a biblioteca que deve existir lá, cheia de clássicos para ele mergulhar ao longo das semanas.

O trajeto até a estação foi silencioso. Sr. Nishimura, fiel ao próprio estilo, dispensou a companhia na despedida para, ainda naquela manhã, entregar-lhe uma lista meticulosa de recomendações ― acompanhada, é claro, de um sermão pelas últimas escapadas do fim de semana. “Evite confusões desnecessárias. Seja respeitoso com os professores, mantenha o foco nos estudos. Não há de ser muito diferente das escolas pelas quais já passou.” Mais do que conselhos, suas palavras soaram como um testamento cansado, como se soubesse que, dali em diante, pouco poderia controlar; o distrito de Yamaji tinha acesso à Internet há mais de uma década, mas, por alguma negligência ao moderno, Seishin não tinha roteadores ─ não até onde ele se lembra de ter lido nas reclamações do 2channel, então, a única forma era usar todo o seu crédito para mandar mensagens. Quase conseguiu sentir a satisfação de Yukio quando o carro acelerou para longe de sua casa. Era como se estivesse indo para um maldito manicômio. 

Por um tempo, ele até tentou acreditar que seria igual todos os colégios que já frequentou durante toda a sua vida, que inclusive, eram todos um saco de lidar: Colégio Elementar de Waseda, Taimei, Colégio Americano no Japão e o mais recente, O Colégio Britânico em Tóquio. Ele pulava de escola quase todos os anos por aparentemente nenhuma razão, só Yukio procurando onde gastar toda a grana que tinha acumulada. Mas, de qualquer forma, ficou claro que não ia ser dessa forma tão comum e costumeira assim que abriu a porta do primeiro vagão. O ar-condicionado estava ligado no menor número possível, desnecessário para o clima daquela noite, mas era o tipo de luxo mal calibrado que até fazia sentido vindo de um trem Blue Symphony exclusivo para o Instituto Seishin.

Ele não esperava que o trem fosse um desses vagões enferrujados das linhas JR, com bancos duros e anúncios pendurados balançando ao vento. Mas também não contava com algo tão pomposo quanto os trens das fotos antigas dos seus pais em Londres — com cabines privadas, veludo, couro e pretensão. No fim, era como se tivessem juntado a estética dos dois e transformado em um só.

E por dentro, esse equilíbrio improvável ganhava forma com detalhes calculados. A faixa de circulação era larga, a iluminação lá dentro era suave e as janelas eram enormes, sem comentar sobre as cortinas que milagrosamente não tinham estampas ridículas, mas eram de cor neutra. De um lado, bancos acolchoados em pares, virados uns para os outros, separados por mesas polidas com acabamento claro. Do outro, agrupamentos de quatro assentos organizados em torno de mesas maiores, que logo pareciam dominadas por pequenos grupos de alunos. As mochilas deles pareciam, de forma muito irritante, perfeitamente organizadas por cor, os perfumes das melhores marcas praticamente brigavam entre si dentro do vagão.

Assim como ele, alguns usavam suas próprias roupas; e outros já vestiam o uniforme escolar ─ eles tinham aquela pretensão discreta de parecer mais elegantes do que realmente eram. Camisa branca de colarinho rígido, gravatas com cerca de três cores diferentes distribuídas tanto para meninas quanto para meninos (a sua, inclusive, viera a ser de cor azul). A calça escura possuía um corte tão alinhado que fazia qualquer moleque de treze anos parecer que já trabalhava no Banco do Japão. Tinha também o blazer azul-marinho, o famoso, com gola alta e botões do lado esquerdo, que não era obrigatório no começo do semestre por conta da primavera, mas que muita gente usava mesmo assim, só pra completar o figurino. Vaidade ou frio, difícil saber. O conjunto todo tinha um quê de “filho de político” — arrumadinho demais, sério demais; pouco importava já que ele daria um jeito de customizar o próprio uniforme em algum dia atoa.

Geto via a avareza explodindo na postura de cada um ali dentro, o jeito como falavam alto e incomodamente correto, como olhavam por cima dos ombros, como se o mundo estivesse no bolso de suas calças perfeitamente passadas. O cheiro de dinheiro era quase literal. Ele já sentia saudade do cheiro de cachaça da casa de Kaito.

Ele seguiu pelo corredor, ignorando os olhares curiosos ou julgadores. Nenhum rosto lhe interessava. Nenhum nome que escapava entre conversas paralelas parecia importante de se saber. A única coisa que queria era um lugar onde pudesse sentar e esquecer que estava a caminho de um internato rústico-chique recheado de grana até o topo no norte do país. Consolava-se com a ideia de que, ao menos, teria o que aprender por lá, e, para ele, isso ainda valia alguma coisa. Com esse pensamento martelando na cabeça, continuou pelos primeiros vagões com passos firmes, a mala rolando atrás de si num som abafado contra o piso revestido em madeira. Procurava um espaço vazio — não por misantropia, mas por cansaço. Queria ao menos um tipo de presença que não exigia esforço. Mas o trem já estava quase cheio, e cada fileira que passava parecia mais insuportável que a anterior. Riam alto, falavam sobre viagens internacionais, sobre os novos celulares flip que os pais tinham trazido da última visita a Osaka. Como se o mundo todo coubesse numa sacola da Louis Vuitton.

Depois de várias portas, finalmente ele se viu no vagão final; felizmente ainda não havia quase ninguém, apenas duas garotas nos bancos da frente, então escolheu uma poltrona qualquer na última fileira do lado esquerdo e acomodou a mala abaixo da mesa assim que o veículo começou a tomar velocidade.

Ele quase agradeceu silenciosamente aos céus pela paz, mas logo percebeu que era impossível ter tanta sorte assim. Dois estudantes uniformizados entraram no mesmo vagão, correndo com mochilas nas costas. Um era loiro e se sentou de frente para as meninas, o outro parou abruptamente de frente para si. Ele parecia um pouco mais baixo e tinha cabelo castanho bem alinhado. “Você o viu?” Ele perguntou frenético, tentando respirar. “Ele é alto, deveria estar por aqui...”

Suguru ficou confuso. Não sabia de quem o garoto estava falando e claramente não havia mais ninguém exatamente alto naquela parte do trem. “Acho que não.” Acenou, negando com a cabeça também. “Ou depende da sua conclusão sobre alguém alto.”

“Definitivamente você saberia se o visse.” garoto bufou, frustrado. “Droga. Eu sou praticamente um homem morto agora.” Disse jogando a mochila por cima da mesa e se sentando na frente de Suguru.

“Obrigado.” A voz veio do rapaz que se afastava das poltronas adianteiras e agora seguia em sua direção. Ele não tinha dito nada diretamente a Suguru quando chegou; ficou de pé, lhe examinando de cima a baixo com a cabeça erguida e os sombrancelhas unidas. Seu maxilar era marcado, com o queixo perfeitamente desenhado. Usava os óculos retangulares de armação fina que só reforçavam a seriedade do rosto. “Yu...”

“Oh, por favor, diga que você conseguiu algo.” O mais baixo bardou.

“Mei Mei disse que Satoru vai se atrasar por... vontade.”

“Vontade? De ver meu corpo no túmulo?” O menino nomeado 'Yu' quase gritou, estalando os dedos nervosamente; “É uma merda quando seus amigos furam com você, não é?” Ele disse. Suguru não tinha certeza se era apenas um pensamento alto ou se estava falando consigo.

“Supostamente?” Respondeu, cruzando os braços e desviando os olhos para a janela. 

Geto não conseguiu pensar em nada melhor para dizer depois que o silêncio se instalou, e ele não precisou. A porta do vagão se abriu de novo, revelando uma garota de cabelo curto e castanho ─ bem  mais escuro do que se acostumou a ver nas férias, como o de Emma. Atrás dela vinha um outro rapaz, alto, mas não tanto quanto Suguru. Ele tinha um cabelo cheio de personalidade e chamativo, uma tinta rosa bem sutil parece ter sido usada nas pontas, deixando a raiz natural do cabelo aparecer.

“Ei, vocês dois!” a menina chamou, se aproximando de onde estavam, para variar. “Não podem sair correndo e me deixar com─” Ela mesma se interrompeu na fala, mas apontou de forma discreta para trás.

O garoto que a seguia não pareceu perceber que ela falou dele, ocupado mostrando o dedo do meio para uma das meninas; uma de cabelo platinado. “Vá se foder VOCÊ!” 

“Depois de você.” se sentou na poltrona do lado direito, largando só uma mala de mão por cima da mesa. Ele passou os olhos rápidos por Suguru e, pelos deuses, foi a encarada mais desinteressada que já recebera. 

Embora ele tenha falado baixo demais para ser escutado, conseguiu ler em seus lábios um “Bicha.” Era uma ótima forma de criar conexões em uma gaiola elitista, com certeza.

“Shoko! Desculpe, o trem já havia começado a andar e ainda não tínhamos avistado Satoru.”

“E nem vamos, hoje.” O loiro reafirmou, tocando nos ombros da garota de pé e direcionando-a à poltrona ao lado de Yu. 

“Oh. Quem é você, bonitinho?” Foi uma surpresa espontânea quando ela se acomodou no assento e olhou para sua frente. “Seu cabelo é legal.” Acrescentou remexendo nos bolsos do uniforme e, puxando de algum deles um celular flip lilás com chaveiro de borboleta. 

Geto ponderou sobre acenar por educação, responder a primeira ou segunda coisa, e não fazer nada. Do seu lado esquerdo, o garoto loiro permanecia em pé, com receio de pedir para sentar ali ─ suspeitou. “Mm?” arranhou a garganta em um sinal de passagem para o rapaz se acomodar.

“Você não fala? Desculpa! Bem, eu sou Ieiri Shoko. Esse é o Haibara Yu e─”

“Você é enorme!” Alguém lhe gritou, notando que era uma aluna do grupo da frente ─ agora tinha mais uma garota, rindo e olhando para si de forma extremamente sugestiva. 

“Eu falo.” Respondeu veloz; não dando atenção à menina; já havia conhecido muitas desse mesmo tipo nos seus meses em Sanya. Por curiosidade, era sempre Haruto quem as levava para beber e fumar durante uma noite, mas sempre se culpava por estar "traindo" Ems; que pouco se importava com as bocas que ele metia a língua. De alguma forma e, quase sempre, Suguru ficava com elas depois do amigo se lamentar e espanta-las; todas com a pele macia e glosses doces demais, como cereja. Era uma pena que Geto sempre gostou mais de frutas cítricas, e soube disso imediatamente após o primeiro beijo com uma menina quando estavam na quinta série.

“É para você se sentar aqui, se quiser.” 

O rapaz pareceu meio surpreso, aceitando o espaço e se sentando, somente depois de ajeitar os óculos no nariz “Valeu, cara.”

“Suguru Geto.” Ele finalmente fitou os olhos dele, eram de um tom que viajava do verde ao dourado; jade ou âmbar. 

“Pode me chamar de Nanami.” Proferiu, com rosto perfeitamente neutro para alguém que há poucos minutos tinha uma veia saltando da testa.

“Nah, chame-o de Kento. Ele detesta~” Yu sugeriu, espalhando os braços pela mesa. “Se tirar a última sílaba, ele vira o Ken, como o boneco!” Ele começou a rir baixo, Shoko parecia estar muito interessada na zoação com Nanami e fez sua sugestão: “O cabelo ele já tem.”

“Mas o cabelo do Ken original é castanho, imbecis.” Nanami ─ Kento ─ refutou áspero, quase cuspindo as palavras boca a fora.

“O quê?! O boneco Ken de Lola é tão loiro quanto você... Não, espere, você deve ser mais loiro que ele.”

“Lola?” 

“É a irmã dele,” Shoko disse “de sete anos. Ela é uma gracinha!”

“Oh.” Geto não diria que amava crianças, elas sempre o olhavam estranho como se andasse por aí cheirando a sapo morto. Seu desapego surgiu quando conheceu Netsuko, o pestinha mimado que mora no mesmo quarteirão e vive lhe chamando de viciado (em drogas), sabe-se lá onde ele aprendeu o que é um viciado com tão pouca idade. Ele definitivamente não diria isso de Suguru se trombasse com VHS ou Haruto e suas substâncias do dia-a-dia.

“Você tem irmãos, Geto?” Haibara falou, se dobrando sobre a peça de madeira entre eles de repente e com um grande sorriso no rosto. 

“Hum, eu... tive.” 

Kento desferiu um tapa estalado no antebraço do amigo quase que automaticamente. “Para de falar besteira, Yu.” Murmurou meio sério, desviando o olhar quando foi cortado por um “Eu não sabia!”. Então voltou-se a Suguru. “Desculpa por ele. E pelo seu irmão também.”

“Não há nada, eu nem me lembro direito.” 

Ieiri se revirou na cadeira, soprando algum ar por entre os dentes sem encontrar palavras. “Mm... Vejam, parece que Ryo dormiu!” Ela entusiasmou-se vendo o garoto do outro lado do vagão com metade da face amassada pela grande janela. A minúscula gota de suor no pescoço dela denunciava seu comentário como um nervoso desvio de assunto, mas era bom. Geto mal compartilhava coisas sobre si mesmo com pessoas além dos caras; estar conversando tão pacificamente com esses três era surpreendentemente dado seu histórico de relacionamentos na escola. “Vocês não acham que seria, sei lá, legal ir para alguns assentos à frente?”

“Você tem medo do seu amigo?” Ele não pode deixar de perguntar, os trejeitos dela a todo momento perto do rapaz ─ chamado pela mesma de Ryo ─ eram ansiosos.

“Sim!?” Uau. Não era algo que alguém pudesse esperar, talvez. “Ah, deuses. Eu esqueci que você é novato em Seishin... Ele é o Ryomen Sukuna, tipo o governador malvado do colégio.”

Ryomen, não era um nome comum no Japão, mas nas vezes que o leu foi nos anúncios de empresas nas revistas e naqueles noticiários que apenas adultos se importam. Vasculhando na própria mente, ele lembrou da manchete: “Lucro de Ryomen Asagi tem aumento 87,3% após afiliações no Oriente Médio” O dono de uma companhia petrolífera esteve nos holofotes da Nikkei recentemente, o amigo dela era de uma família tão poderosa assim? Devia ser comum encontrar num internato tão estimado.

“E por favor, não somos amigos, nem colegas, nem nada.”

***

Quinta-feira 8 de abril, 2004

O barulho irritante do apito ainda ecoava na cabeça de Suguru, que mal o deixou dormir durante as oito horas de viagem. Depois, o mesmo som repetiu-se — só que agora estava junto com o chiado dos freios do trem diante dos muros de Seishin, e, desde que os avistara, ele estava preso num ciclo de “Isso é Seishin mesmo?” e “Nem fodendo.”

Ainda nos arredores de Tóquio, ele já suspeitava que o terreno do internato seria ridiculamente grande. Mas, quando abriu os olhos por volta das seis da manhã, o trem já cortava Yamaji. A cidade surgia à distância, pequena e contida, enquanto os trilhos atravessavam o rio Kawatare direto rumo ao instituto. Ele tentou não comparar com os prédios cinzas e barulhentos de Shibuya, mas seu cérebro era automático demais para obedecer.

Ao menos ele pontuou algo novo depois da péssima madrugada: Shoko era, quase insuportavelmente, tagarela.

A menina não calava a boca, mesmo enquanto lia suas HQ's. Ela ficou em seu ouvido fazendo o favor de comentar coisas, às vezes inúteis, às vezes boas de se saber. O que ouvira até agora era que o colégio fazia excursões pela área mais movimentada, um exemplo era a Ilha de Shiranomura, bem no meio do rio. Também lhe disse que os alunos com bastante 'pontos de comportamento' ─ sabe-se lá o que é isso ─ frequentemente passeavam pelas lojinhas da cidade; os que não tinham, iam mesmo assim, de uma forma ou outra. Não parecia ter tanta coisa interessante vendo de longe, nada de fliperamas ou karaokês.

“Não estamos mas em Tóquio, amigo.” Foi o que ela disse, enquanto virava mais uma página de Full House. E eles realmente não estavam. Isso era o que mais odiava no nome de Seishin, podia ser qualquer coisa menos na capital. Ele até se permitiu imaginar que voltaria para as férias de verão, não que ajudasse muito esperar por isso preso no meio de Yamaji. A ausência de infraestrutura nas casas ao longe reforçava a ideia de isolamento. 

O que se destacava era o colégio, o Instituto Seishin era de elite, praticamente impossível de determinar a dimensão. Ele podia ver que haviam muitos prédios por trás dos muros, pareciam intermináveis; talvez se perder nos corredores dele fosse a coisa mais reconfortante que poderia acontecer.

Quando desembarcou, teve a sorte de quebrar uma rodinha da mala ao atropelar uma pedra. Ele xingou, mas não era esse seu maior problema. Estavam, se não todos, a maioria dos alunos lhe fitando. Principalmente as crianças, do trem que veio atrás. 

Falavam descaradamente alto sobre sua aparência. “Seu cabelo parece de menina!” Um pirralho com menos de um metro e meio gritou para ele. Geto não respondeu nada, não se incomodava sobre isso, mas era um pouco chato ter que aturar.

“Ao menos não disseram que você está como um vovô.” Shoko riu ao seu lado, e seus ombros dançaram num leve sobressalto.

Ele lembra de como o mesmo gesto se repetia em Haibara, que parece viver rindo de tudo. Suguru percebeu esses pequenos movimentos sem intenção. Talvez fosse apenas o tédio tomando as rédeas de seus olhos. Ou talvez fosse o velho traquejo de pensar mais do que era necessário nas pequenas coisas que aconteciam.

Não que ele admitisse, mas reparava demais em todas as pessoas ao redor, sendo possível descrever hábitos que nem mesmo os próprios saberiam dizer que têm. Em casa; a forma como Haruto passava a línguas sobre o lábio inferior todas as vezes que ficava em dúvida, como Kaito girava os pulsos antes de iniciar uma refeição, ou Daiki sempre parecia analisar cada cantinho de seu rosto quando estavam conversando sozinhos.

Geto se sentia quase que em abstinência por Tóquio e ainda não se passou nem um dia. Ele sentia sua identidade presa nos ruídos da cidade, e longe dela, tudo que restava era uma versão muda de si mesmo. 

Susprirou, voltando os olhos para a garota ao lado: “Nanami?” Ele arriscou, julgando a postura do rapaz que agora estava um pouco distante, subindo os degraus baixos para a torre do meio.

“Nah.” A menina piscou, negando com a cabeça. “Satoru. As crianças não estão familiarizadas com albinos na maioria do tempo, falam que parece estúpido ter cabelo branco tão jovem.” 

Satoru. Suguru se perguntava a quem diabos esse nome esquisito pertencia desde a primeira menção no trem. Ele estava começando a enjoar de ouvir.

“Hm, eu vou até meu quarto agora. Te vejo no almoço?”

Ela nem tempo para uma resposta, acenou com os dedos e sumiu entre os grupos de alunos com tanta naturalidade que ele nem teve tempo de perguntar onde seria esse tal almoço. Ficou ali por um segundo, parado, com a brisa bagunçando as mechas escuras da franja e o uniforme um pouco desalinhado no colarinho. Girou nos calcanhares, pronto para escolher um caminho qualquer, provavelmente o que tivesse mais estudantes, quando ouviu uma voz animada demais para o horário.

Estavam armando com sua cara por acaso? Não podia ter um segundo com a própria mente?

“Você é o Geto Suguru, certo?”

A voz pertencia a uma garota de cabelos escuros presos num rabo de cavalo firme, uniforme bem passado, gravata preta e uma postura ereta como se estivesse sempre pronta para corrigir alguém. O sorriso dela era receptivo, mas o olhar ─ ainda que gentil ─ carregava uma intensidade típica de quem assumia responsabilidades por escolha própria.

“É, sou eu.”

“Imaginei isso, de acordo com seu cabelo na foto... Mm, suas informações estavam na mesma lista dos pequenos, e você não parece estar na quinta série.”

“Você acha?” 

Ela parecia estar brincando com ele, mas não tanto. Talvez fosse apenas meio burra, pois seu rosto continuava simpático.

“É apenas um modo de falar, desculpe.” 

“Tanto faz. Você sabe pra' onde eu devo ir? Sou novo.”

“Eu sei, os dois” Ela disse, olhando para ele por um longo período, talvez pensando que Suguru fosse perguntar algo a mais, mas tudo que ele fez foi levantar uma sobrancelha de questionamento. Então, ela prosseguiu; “Sou Utahime Iori, representante do Grêmio.” Disse apontando para o broche dourado preso na borda aberta do blazer. “Posso te levar para o seu dormitório se você quiser.”

Suguru apenas assentiu com a cabeça, sem energia para participar da encenação social.

Ela sorriu e o puxou pelo braço para a acompanhasse. A menina andava confiante, como se fosse dona de cada um dos paralelepípedos que formavam as calçadas.

À medida que avançavam, grandes prédios de tijolos iam os cercando. Iori apontava para cada um; “Aquele é o Shizen, e lá está o laboratório experimental ─ Shakō e Keisan seguem ao lado, onde o ensino médio passa a maior parte do tempo. Por esse caminho você vai encontrar o prédio Hakucho, nele está o maior salão do colégio ─ onde acontece a maior parte dos eventos ─ deve estar cheio de crianças agora. Também tem nosso refeitório, e a ala hospitalar. O Kaedehara Garden é o jardim principal, também usado para as lições de botânica. Há uma entrada para a floresta por lá ─ mas não seria bom ter alunos no meio do mato... O Bloco Hajime tem as salas de aula do fundamental, onde você vai estudar este ano, e logo atrás está o Bloco Hotai, para os clubes de arte como; Vue vers l'horizon de teatro e...” 

E assim ela foi. Suguru esqueceu a maior parte instantaneamente, muito consciente de quanto tempo tinha para se acostumar com tudo isso. A única parte importante para ele foram as falas sobre os horários de aula e itinerários, que, felizmente, não haveriam no primeiro dia.

Geto também estava reparando em todas as vezes que Iori se aproximava para que seus braços se tocassem, ou no modo como ela ajeitava os fios do cabelo atrás da orelha sempre que virava o rosto pra falar com ele - uma repetição involuntária.

Ela era bem simpática, sempre acenando para os alunos que passavam.

“Vi que você estava com a Ieiri. Ela é minha amiga também, queria que fôssemos colegas de quarto...” 

“Ela fala bastante, igual você.”

“Oh.” A menina suspirou surpresa. “É... Por aqui,” meio sem jeito, ela continuou o caminho, subindo a escadaria à frente dele.

Aquele lado da escola parecia muito mais grandioso de perto, olhando entre os blocos, ele podia avistar colinas de um lado e uma variedade de árvores ao longo do outro. 

“Este é seu prédio; ” Utahime explicou. “Genji Yuukan. Vamos entrando─”

“Tudo bem, eu sigo daqui. ” Suguru interrompeu, rudemente. “Você deve procurar os outros recém-chegados, sim?”

“Sim, verdade.” Iori respondeu, ainda com um sorriso em seu rosto, era tão delicado que parecia porcelana. “Bem, esta é sua chave com o número do quarto... Te vejo por aí, Geto!” 

“Quem sabe.” Ele sorriu de volta, sendo o mínimo que precisava fazer.

Jogando a chave dentro de um dos bolsos da calça, ele entrou no prédio. 

Deuses.

Os anônimos do 2channel não poderiam se mais sinceros quando comentavam sobre o luxo de Seishin tinha. Apenas o lounge já era magnífico.

O espaço era amplo, com pé-direito alto e janelas arqueadas que filtravam a luz da manhã, espalhando tons dourados preguiçosos sobre os estofados. As tapeçarias em azul e branco cobriam quase toda a parede do fundo, bordadas à mão com cenas que, segundo Haibara, narravam a história do Clã Yuukan e seu fundador. 

No centro, estavam os sofás, gastos nas bordas, tinham um aspecto de ‘casa dos avós’ — velhos, mas acolhedores o suficiente pra apagar qualquer incômodo deixado por um dia ruim. Ou pelo menos era o que ele ouviu nos últimos meses. Suguru não tinha muito direito de afirmar nada: os avós maternos eram verdadeiros babacas e os paternos estavam em outro continente.

Também tinha uma lareira de pedra, embora apagada naquele dia, que deixava no ar um cheiro sutil de carvão misturado ao perfume doce e quase nostálgico da madeira antiga. Num dos cantos, uma TV de tubo repousava ao lado de uma caixa de som moderna, aparentemente funcional. Aquela era provavelmente a única coisa — além dos dispositivos móveis de cada estudante — que lembrava que não estavam mais no início do século vinte.

E por fim, tinham as escadarias. Monumentais. Com colunas que pareciam sustentar não só o teto alto e rendado por molduras antigas, mas também toda a ideia de tradição e prestígio que a escola se esforçava tanto pra manter. As laterais formavam um semicírculo delicado, envoltas por grades de ferro trabalhado, e os degraus, divididos em dois lances simétricos, davam a sensação de estar diante de algo teatral.

A madeira do piso era escura e polida, refletindo discretamente a luz amarelada de um lustre, pendurado no alto, que lançava sombras elegantes pelos corrimões antigos. Mesmo com a iluminação acesa, o ambiente mantinha uma penumbra leve, quase solene. Era bonito, de um jeito austero, antigo. Mas também um pouco assombrado — não no sentido literal.

Não é tããão péssimo. Ele pensou. Na verdade, não é nada péssimo.

⊱ ────── ⊰

Notes:

Blue Symphony é um trem japonês que opera entre as estações de Osaka-Abenobashi e Yoshino. Eu adaptei ele para a história, então além dele já existir aqui em 2004 (na vida real sendo inaugurado apenas em 2016), ele faz parte de uma rede exclusiva que fornece transportes para instituições privadas, como é o caso de Seishin.

As Linhas JR são as linhas de metrô mais utilizadas em Tóquio.

O 2channel era um fórum anônimo bastante popular entre os jovens japoneses no contexto dos anos 2000.

Nikkei era a revista de negócios mais popular.

Chapter 4: Nono Ano: Bowie e Beatles

Notes:

¹ Este e os capítulos seguintes passaram a ter cortes mais longos; podendo ir de horas até dias omitido. O objetivo é evitar a repetição das rotinas e o tédio de ler.

² O capítulo a seguir é mais curto, visando demonstrar a passagem de Suguru para ser realmente alguém dentro do grupinho.

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

C/W's do capítulo:

1. palavras de baixo calão e gírias.

***

They put you down, they say I'm wrong
You tacky thing, you put them on

Rebel rebel, you've torn your dress
Rebel rebel, your face is a mess
Rebel rebel, how could they know?

─ “Rebel Rebel” David Bowie, 1974

 

Quinta-feira 8 de abril, 2004
(no mesmo dia)

Se Suguru Geto fosse um adolescente mais difícil de se agradar, ele diria que seu primeiro dia em um internato estava sendo o pior de todos os tempos. Mas, felizmente ele era sortudo pra' caralho.

Depois que encontrou a porta do alojamento, ele abriu e nem se surpreendeu tanto com o ambiente, dado tudo o que viu até agora em Seishin. Era enorme e azul. O teto era levemente inclinado para o lado denunciando o último andar da torre e a janela era daquele tipo que se projetava para fora, tendo um nicho embutido com um sofá e cortinas brancas.

As duas camas ficavam uma de frente para a outra, a que ficava na mesma parede que a porta do banheiro estava completamente lotada de trecos, indo de um frasco de shampoo pela metade até um violão profissional Yamaha, um modelo praticamente premium. Além disso, como se não fosse inacreditável o suficiente, também havia pôsteres na parede, do mesmo lado; eles eram, em maioria, do Nightmare, o que já era perfeito, mas seus olhos brilharam mesmo quando ele se aproximou de uma cômoda para acomodar seus pertences. Havia uma fotografia do David Bowie que dizia “Para Satoru Gojo.”

Certo, Suguru achava que estava vendo coisas. Seu colega de quarto apenas conhecia um dos maiores nomes do rock ou o quê? Ele piscava descrente. Chegou mais perto, quase prendendo a respiração, como se o ar pudesse borrar a tinta azulada que se destacava no canto da imagem.

Era real. Não tinha como não ser. Bowie estava no palco, em algum de seus Shows, com seu violão e a roupa que usou na primeira apresentação de 'Space Oddity'. As letras tremidas, a caneta quase falhando no final, era a pressa de um astro que não podia perder mais que dez segundos.

Quando achou que estava aceitando a realidade, seu silêncio foi tomado pelo bater da porta atrás de si; “Ei, irmão.” Era Haibara, entrando no quarto com seus All Stars fazendo barulho. Normalmente ele não gostava quando o chamavam assim, de forma tão casual. Ele não era sua família para chamá-lo de irmão, afinal. Mas se era assim que iria viver pelo próximo trimestre, estava disposto. “Você divide quarto com o Satoru, então.”

“É o que parece.” respondeu, se afastando de onde estava e indo em direção ao guarda-roupas enorme e, aqui estava uma nova anotação mental de Suguru; os ricos têm algum fetiche por gastar em inutilidade. Quem precisa de um espaço de nove por dezesseis pés para roupas?

“Ele é o seu amigo que vai, hum, 'se atrasar propositalmente'?” Estava se esforçando para não perguntar sobre aquela foto, deuses, ele queria muito.

“É. Ele é um idiota. Tínhamos um combinado, eu iria fazer companhia para ele pela punição de alojar todos aqueles miudinhos lá fora; e ele apareceu? Não.” Era essa sua preocupação, Geto entendeu. “Eu fiquei três horas com Ryo, você não imagina quão desgastado estou.”

“Ele é assim tão horrível?” Questionou, começando a tirar suas roupas da mala para organizá-las. 

“Ele é. Parece que anda com uns manos daquele bairro meio perigoso; Kamagasaki.”

Oh.

“Ele é de Osaka?”

“Uh-hum. Eu e Satoru também. Nós apenas vamos para Tóquio porque o trem do colégio não passa por lá.” Haibara disse, se aproximando da cama de Suguru e observando enquanto ele suspendia suas jaquetas nos cabides. Eles ficaram calados por um tempo, o que Geto poderia falar? Que seus amigos ─ quase família ─ nasceram e cresceram no Kamagasaki e depois foram agitar as ruas da metrópole? Parecia ridículo. Ele não queria que Haibara o visse como um dos garotos que se metia em brigas de gangues por aí, mesmo que, sem dúvida alguma, ele fosse um.

O rapaz mais baixo, porém, parecia que ia dizer algo, mas os olhos focaram em um detalhe qualquer que o fez levantar um pouco. “Isso é dos Beatles?”

Suguru demorou um segundo pra entender. Haibara apontava com o queixo pra estampa quase desbotada na parte de trás da jaqueta. Ele olhou por cima do ombro e assentiu com um resmungo, “Era do meu pai” e, no entanto, não sabia bem. A jaqueta podia ter sido dele, podia ter sido de Sonin. Mas colocar um nome naquela peça — dizer que era 'da Sonin' — parecia pedir demais. Era mais fácil escolher um substantivo. 

“Caramba. Curto muito eles. Tipo... muito. Só não arrisco com o Satoru. Ele é lunático. Já levou uma detenção por ‘tocar Hey Dude repetidamente no violão’.”

“Hey Jude, você quer dizer?”

“É, qual foi? Você quer exibir seu inglês, senhor Geto?” Haibara engrossou a voz, fazendo drama como se tivesse o ego ferido.

Suguru riu. Ele não sabia que o garoto tinha outra voz além daquela animada quase cômica. Ele desistiu de guardar tudo por enquanto e puxou o celular de dentro do bolso interno do blazer, que, em um perfeito timing, vibrou com uma mensagem.

[10:21]

Emma: Daiki não para de me cutucar >:[

Emma: Pelos deuses, eu irei matá-lo.

Emma: Diga que chegou vivo e bem, acho que ele irá parar.

Suguru: Olá Emma (e daiki, provavelmente espionando nossa conversa).

Suguru: Cheguei vivo e muito bem. 

“Ele disse uma vez que queria ser músico. Acho que ainda quer.”

“Mm? Músico? É um em um milhão, eu acho.”

“Ele deve saber, mas desde o verão passado, isso não o incomoda mais.” Ele deu alguns passos pelo quarto; “Você viu isto, não é? Por favor me diga que viu.” Era a foto autografada, Geto sorriu, não precisando de mais nada para afirmar. “Ele esteve cara-a-cara com David Bowie e simplesmente decidiu que cantaria com ele um dia. Não, não somente decidiu, ele falou isso, e que seria maior que ele também.”

“E então vai me dizer que Bowie disse que ele esperaria seu amigo e autografou essa foto como promessa?” Suguru brincou, pensando se era uma brincadeira de mau gosto, mas Haibara não respondeu, o que o assustou um pouco. “...Ele não fez isso, fez?”

“E Bowie lá entende japonês? Satoru não iria falar para um astro do rock que um dia derrubaria era do topo.” Yu riu antes de continuar: “O autógrafo foi luxo, pela pista VIP.”

“Ok, com certeza é o que mais faz sentido...”

Suguru: Mas uma foto de Bowie autografada me deu esperanças ;)

Emma: CARA. O. QUE.

“Você vai para o almoço mais tarde?” Haibara chamou, já na beirada da porta de seu quarto. “É servido ao meio dia e quarenta.”

“Oh, sim. Talvez. Irei terminar com isso e vou.”

“É bom você silenciar o celular. Se alguém descobrir que você tem créditos de sinal, vão ficar no seu pé implorando para fazer uma ligação ou usar o navegador.” O rapaz falou, saindo e fechando a porta depois.

Seu celular continuou vibrando quando o largou sobre a cama, ele imaginava que a reação dos seus amigos fosse espalhafatosa desse jeito. Nem mesmo ele havia visto um autógrafo verdadeiro tão de perto.

***

“É a sua jogada.” Shoko insinuou. A menina estava do lado dele na mesa do refeitório, a qual em frente estavam Nanami e Haibara. Eles estavam jogando uma espécie de Verdade ou Desafio, só que com o baralho francês. Suguru fingiu que o jogo fazia sentido para não sentir aquele deslocamento mais uma vez, quase no fim do dia.

“O que exatamente eu tenho que fazer?” 

“Pega uma carta; se tirar Copas ou Espadas, você escolhe um de nós para te perguntar uma verdade. se vierem Paus ou Ouros, escolhe alguém para te desafiar.” Nanami explicou, ajustando, de novo, aqueles óculos no nariz. “E se tirar um Coringa, Ás de Ouros ou a Rainha de Copas, você pode desafiar ou perguntar uma verdade para qualquer um.”

“E não pode escolher a mesma pessoa em sequência!” Haibara diz, coçando a bochecha direita.

Geto asentiu e, hesitante, ele retirou a carta de cima do baralho. Era legal quando brincava de Verdade ou Desafio tradicional com os caras no apartamento, ele sempre se sentava de um lado específico onde o chão era mais alto para que a garrafa nunca apontasse com a boca apontada para si, dessa forma nunca tinha que responder coisas constrangedoras ou cumprir desafios arriscados. Respirando pesado e suando nas mãos, virou a carta. Era um Seis de Espadas.

“Nanami,” proferiu, mostrando a carta no centro ds mesa; “Você parece menos cruel para perguntar a verdade.”

O loiro citado sorri um pouco, “Utahime e Yuki não diriam isso.” 

“Bem, isso porque você as questionou sobre seus relacionamentos passados e, vamos lá, que garota gosta de comentar isso?” Shoko responde, jogando os braços finos para trás e entrelaçando os próprios na nuca. 

“Não tem restrição de perguntas no jogo, não é?”

“Mas existe senso comum!” Ela grita, sem querer atraindo mais atenção do que preferia para onde estavam.

Nanami respirou fundo e virou-se para Suguru. A expressão dele não era de quem ia torturar com a pergunta, mas de quem queria, de fato, conhecer. “Tudo bem então…” ele começou, num tom mais neutro. “Geto, quais são os seus hobbies?”

Não foi como se a mesa tivesse se agitado com a pergunta, mas Suguru sentiu um peso cair dos ombros. Era simples, quase bobo, mas tão melhor do que qualquer coisa sobre ex-namoradas, família ou segredos debaixo do travesseiro.

“Eu ouço música.” Soltou, simples e sem entoação desnecessária na voz.

“Só isso?” O loiro questionou, arqueando de leve a fina sombrancelha.

“Vamos lá... 'Cê tem cara de quem toca algum instrumento. Guitarra?” O garoto mais baixo dali diz, olhando atentamente para os olhos de Suguru como se fosse encontrar todas as respostas neles. 

“Por que?”

“Fala sério, você tem uma coleção de jaquetas pretas. É como se fosse o próprio Takeshi.”

“Do FLOW? Nah.”

Shoko deu uma risada curta. “Achei que você ia mandar um ‘yeah, claro, eu até sei tocar de olhos fechados’.”

“Eu não sou esse tipo de... Poser.” Suguru rebateu, mas o canto da boca dele denunciava que estava se divertindo. 

Haibara inclinou o corpo pra frente, animado. “Então qual é, vai. Cê toca alguma coisa ou só escuta rock e finge que é diferente?”

Ele bufou, “Eu sei tocar um pouquinho de guitarra também, mas nada de outro mundo.” Pegando a carta o centro e colocou-a um pouco afastada. “Quem pega agora?”

“Sabia!” Haibara bateu na mesa, triunfante. “Olha a cara dele, Shoko, eu disse que ele não enganava ninguém.”

“Sim Yu, percebemos que você estava certo.” Kento, com sua melhor cara de tédio (a de sempre), finalizou.

Nenhum deles estava conseguindo cessar as risadas, e nem queriam. Era apenas o primeiro dia naquele lugar, e ele até poderia estar sendo iludido, ou poderia estar dentro de um sonho, mas mesmo assim estava feliz. Não via a hora de mandar todas as fotos de Seishin para Daiki, ele provavelmente diria que o refeitório em que está é idêntico à uma catedral no Vaticano que viu nos livros de geografia do colégio; e realmente, é; com o teto abobadado que parecia tão distante quanto o céu, e bandeiras representando as cores dos três clãs pendidas em todas as colunas de mármore branco. Sem comentar sobre o brasão dourado do Instituto Seishin — um cervo portador de uma bela galhada dentro de um escudo ou algo assim — ocupava o centro da porta de entrada, obrigando quem quer que fosse entrar a ver aquilo.

“É o Kento, não?” A garota diz, referindo-se à de quem seria a vez. Quando ninguém respondeu; “Vocês enrolam demais!” ela afirmou e puxou uma carta do baralho. “Rainha de Copas. Ken, com quem foi e por que você terminou seu último relacionamento romântico?”

“O que!? Eu não vou responder isso, não era sua vez.”

“Não é como se eu soubesse que iria vir, ande logo.”

Kento bufa, massageando sua têmporas pela quinta vez desde que o conheceu; “Kirara... e foi por culpa de Hanizilla.” foi tudo que ele disse.

“Uhhh, visitas noturnas pela praça? Que safadinho você, Ken.” Haibara zomba, tentando apertar as bochechas do amigo que se esquiva agilmente com um “Sai fora.”

“Pfft...” Suguru tossiu, segurando um riso pelo nome. 

“Ei, não ria! Você ainda não sabe como aquele guarda nos faz suar frio, mas vai chegar sua vez.” Kento lhe assegura ─ se é que pode dizer assim. 

Shoko não falava nada, ela parecia chocada com a nova informação enquando seu indicador circulava a superfície da carta; “Você? Com uma Dork como a Kirara? Uau.”

Suguru recostou os braços atrás do corpo, esticando levemente os ombros. “Ah, coitados dos Dorks. Tenho a sensação de que estou cercado por vários deles...” disse, olhando para ela, como quem não queria admitir o duplo sentido na própria fala.

“DE FORMA ALGUMA!” Shoko gritou, parando de brincar com a poeira acumulada no papel e se desencostando da mesa. Ela recolheu as pernas e as cruzou em cima do banco. “Eu tenho certeza desde pequena que sou totalmente uma Misato Girl, de Evangelion,” e então, rapidamente ela puxou o celular de um bolso o qual Geto nem sabia da existência na saia, pressionando algumas teclas antes de virar a tela e mostar uma captura de tela com os resultados de um teste de personalidade com resultado de '100% Misato Katsuragi'. “Somos praticamente a mesma pessoa. Como você pode nos insultar?”

“Eu não fiz. Tudo é interpretação.” Riu baixo, evitando contato visual. “E quais são seus argumentos contra os nerds? Alguns são legais... talvez.”

Ah, não! Entre eu e a Utahime, quem você escolhe?”

Suguru franziu a testa. Olhou torto pra ela.

“Não 'tô dizendo nesse sentido!” completou rápido, como se lesse a mente dele. “'Tô falando de... sei lá. Acho que somos bem diferentes, não? Tipo, ela seria a nerd. Você não acha ela exatamente... legal, acha?”

“Às vezes eu me pergunto se vocês são mesmo amigas.” Kento soltou, batendo o dedo na testa dela.

“Nossa amizade se deve aos volumes de Full House que compartilhamos para ver o lindo rosto do Young-jae.”

Eles continuaram virando cartas, rindo alto, inventando regras novas só pra dificultar a vida do próximo. Entre perguntas que não levavam a lugar algum e desafios que iam desde cantar trechos desafinados de músicas até equilibrar talheres no nariz, o tempo correu. O barulho ao redor foi rareando, até que só restavam eles e algumas bandejas esquecidas em outras mesas. O refeitório parecia outro — menos movimentado, mais íntimo, como se tivesse sido reservado só para os quatro.

Quando o céu atrás das enormes janelas já se confundia entre o roxo e o preto, um dos monitores do grêmio apareceu. O broche dourado em sua lapela refletia a luz fraca das lâmpadas, o mesmo símbolo que Suguru lembrava ter visto mais cedo preso ao blazer de Utahime. Ele precisou praticamente escoltá-los até o lado das torres de seus dormitórios, como se fosse perder todo seu crédito se não o fizesse; seu motivo era o toque de recolher adiantado devido à ausência de aulas do primeiro dia, mas parecia só algo que ele inventou para não precisar voltar ao salão.

Kento se despediu deles e seguiu para seu prédio, enquanto Suguru, Shoko e Haibara adentraram o Yuukan. Eles planejavam conversar mais um pouco antes de finalmente irem se deitar, pois os outros dois fizeram questão de seguir Geto até o quarto de número noventa e sete.

Ao entrarem, Suguru pensou em terminar de desempacotar tudo daquela mala desprovida de uma rodinha, mas ele imaginou que não seria confortável ter suas roupas íntimas expostas a dois rostos novos, ainda mais quando um deles era de uma garota. 

O pensamento o remeteu à Ems e as centenas de vezes que ela brigou com Haruto por ele não ter vergonha na cara e guardar as cuecas no guarda-roupa, ao invés de jogá-las na cama. Isso definitivamente deixaria qualquer outro cara constrangido por anos.

Shoko havia aberto a janela e se acomodado no parapeito, fingindo que não tinha um banco bem ali. Olhava para algum lugar lá fora, respondendo de vez em quando as provocações de Haibara; este que, sem um pingo de audácia deitou na cama vazia. Suguru então, só pôde amontoar as tralhas de seu colega de quarto em um canto do chão e deitar na cama dele.

“Que cruel...” começou Ieiri. “Vai deixar a cama desarrumada para seu pobre colega?”

Geto olhou para ela com deboche, se recusando a mudar de lugar. “De acordo com essas coisas aqui, ele com certeza é algo mais do que pobre. E não acho que a mão dele cairia por arrumar lençóis.”

Haibara soltou um assobio breve antes de se levantar parcialmente e rir da cara da amiga. “A da Shoko sim, com certeza! Ela tem um mordomo que faz tudo, sabia? Quando eu fui visitar na primavera do sétimo ano, o homem perguntou se eu queria ajuda pra desamarrar os cadarços!”

Ambos olharam para a garota. Suguru não sabia se confiava cem por cento na informação, mas parecia tudo verdade ao notar as bochechas dela tomando uma cor rosada. “Ele ajustava suas meias também? Como em Princess Sara?”

“Vocês são horríveis!” Shoko disse com a mão sobre o peito, segurando um sorriso que Suguru viu tentar sair. “Espero que Satoru seja tão insuportável com você quanto ele é com a gente...”

Eventualmente, ele ouviu um pouco mais sobre seus novos amigos (sim, ele acha que já pode chamá-los dessa forma): Haibara não pagava absolutamente nada para estar onde está, sua bolsa de estudos cobre tudo e por esse motivo Ryomen acha que tem algum direito de difamá-lo. Kento era tão fissurado por música alternativa quando ele mesmo, algo que surpreendeu muito Geto ─ achava que o loiro devia ouvir Beethoven ou, pior ainda, country; a música favorita dele, segundo Haibara, era Everybody's Fool, do álbum de maior sucesso do Evanescence. As coisas no chão não eram nem metade do que Satoru geralmente trazia durante do ano letivo e ele precisava de todas as prateleiras de baixo do armário apenas para sua coleção de sapatos caros. A cada fala ele sentia que menos suportaria dividir um espaço com Satoru Gojo.

E, além de tudo ele aprendeu que era proibido que garotas estivessem em qualquer quarto masculino e vice-versa, garantir que a regra fosse cumprida era o principal papel dos monitores do Grêmio. Ieiri teve sorte de não terem visto um monitor se quer quando subiram. Porém, ao ir embora se despedindo com acenos e puxando Yu, trombaram com Momo; ele não ouviu muito sobre o encontro, mas jurou que, pela primeira vez, escutou Haibara xingar algo; “Porra, porra, não!” Felizmente não era a pobre monitora, estava mais para um auto-xingamento.

Honestamente, não teria problema se o rapaz ficasse, ele quase dormiu no 'travesseiro ridiculamente fofo' ─ mas ele tinha razão, o algodão do travesseiro era bom demais, e foi nele que Geto deitou a cabeça e desperdiçou bons momentos analisando as paredes. Por mais que fossem revestidas em um azul bonito, não as impedia de parecerem sem graça comparadas ao outro lado. Se pudesse arranjar um jeito de imprimir fotos de algumas bandas ─ talvez o grêmio tenha alguma máquina impressora, eles têm um jornal. Daria um trabalhão, mas seria apenas até o verão, após isso Geto se certificaria de trazer seus próprios pôsteres de casa.

Ele mal percebeu quando passou a se misturar com a atmosfera do lugar, imaginando como faria para deixar tudo mais familiar. 

Suguru Geto não se encaixa em qualquer lugar. Mas os lugares por onde ele passa parecem querer se adaptar para ele.

⊱ ────── ⊰

 

Notes:

Poser: uma pessoa que finge um interesse/ identidade para parecer parte de uma sub ou grupo específico, sem ter uma conexão genuína ou compreensão dos valores e da cultura do grupo.

Hanizilla: trocadilho de hana (鼻, nariz) + Godzilla — Nariz Grande.

Dork: praticamente o mesmo que Nerd, só que socialmente mais desajeitado e excêntrico.

Chapter 5: Satoru Gojo

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

C/W's do capítulo:

1. palavras de baixo calão e gírias.

***

There's a starman waiting in the sky

He's told us not to blow it

'Cause he knows it's all worthwhile

He told me

Let the children lose it

Let the children use it

Let all the children boogie

“Starman” David Bowie, 1972.

 

Sexta-feira 9 de abril, 2004

A manhã do primeiro dia de aulas regulares seria bastante complicada para Suguru. Difícil para se manter de olhos abertos até pelo menos o almoço, disso ele tinha certeza.

Ele até tentou dormir no instante em que ficou sozinho. Tendo mais do que nove horas livres para descansar. Porém, a inquietude engoliu sua mente com perturbações sobre seus amigos de Tóquio; tinha se esquecido completamente de respondê-los durante a tarde.

Certo, talvez durante o dia inteiro, para ser sincero.

Portanto, ele teve que pegar seu celular. Sua pior escolha. Leu em algum jornal os efeitos que a tela azul tem no sono, mas nem ligou de verdade; não era como se ele fosse repetir todas as noites.

[10:22]

Emma: ONDE VOCÊ ESTÁ!? 

Emma: Eu declarei guerra contra você.

[10:30]

Suguru Cuzão (grupo)

Emma criou o grupo “Suguru Cuzão”.

Emma adicionou Você e mais três contatos.

Haruto: O que há, minha rainha?

VHS: Pare, ou eu irei vomitar no seu cabelo.

Haruto: Imagine que estou na sua frente lhe mostrando o dedo do meio agora

VHS: Oh, não! Eu quebrei seu dedo do meio e ele está no chão sob uma poça de sangue!

Daiki: Vou matar os dois.

Emma: O Suguru viu um autógrafo do Bowie.

Emma: ELE PODE TOCÁ-LO A QUALQUER SEGUNDO !!!!!!

Daiki: O QUÊ!?

Haruto alterou o nome do grupo para “Haruto e seus seguidores”.

Haruto: Melhor.

Haruto: Espere, O QUÊ EMMA DISSE?

Emma: Você pode ler, e que nome é esse?

VHS: Onde está o Suguru?

Daiki: Em Yamaji.

VHS: Oh, é mesmo? Obrigado pela informação útil, cara.

VHS: Irei alertar às autoridades.

[00:12]

Suguru: Oi

Suguru: Que nome é esse?

Suguru: Eu não posso tocar na foto, e se a tinta da caneta sair?

Suguru: Mas é tão real, eu juro que irei morrer.

Suguru: Certo, vocês não sofrem de insônia.

Ele fechou o aplicativo de conversas, procurando por outra coisa para distrair sua atenção. Por fim, acabou por iniciar a versão adaptada de 'Final Fantasy II.' Mas, de repente, a porta fez barulho ─ sim, a porta. 

Suguru levantou o torso, assustado com a ideia de alguma emergência do tipo incêndio ou terremoto; o que ele descartou logo, teriam alarmes se fosse um desastre natural. Talvez fosse o tão falado Hanizilla, farejando seu cheiro até ali para finalmente atormenta-lo como Ken disse mais cedo? Era tudo válido naquele momento. Ele se revirou na cama, deitando de volta e escondendo o celular debaixo do travesseiro, fechou os olhos quase que por completo, fingindo dormir tranquilamente.

Só soltou o ar que nem percebeu prender quando um menino de rosto tão assustado quanto o dele entrou rápido com uma mochila nas costas, não dando tempo para uma mosca passar pela porta junto. O estranho acendeu a luz na menor intensidade possível, mas não impediu de doer nos olhos. E então, Suguru respirou fundo, mas não totalmente relaxado.

Olhando no claro, ele tinha uma aparência bem única, e óbvia; cabelo platinado, desigual ─ como se já tivesse sido buzz cut algum dia, que desistiram de aparar. A pele dele era a mais clara que já havia visto, mais do que Utahime; parecia ser da exata mesma cor que a lua, mas não era perfeita para se parecer com porcelana ─ ainda haviam tons febris em certos lugares. O rosto se iluminava com pequenas contradições: cílios longos e tão brancos quanto o cabelo, uma boca rosada viva e bochechas aquecidas, denunciando que o corpo não acompanhava a calma que ele fingia. 

Sua roupa não entregava muito, era uma calça jeans clara, camisa de botões branca, um óculos de armação fina redonda e uma gravata, a gravata do Yuukan ─ frouxa no colarinho. Ele poderia se fazer de sonso se quisesse, mas com tantas evidências chegaria a algo perto do ridículo. 

“Bom dia.” O estranho (não tão estranho) disse, sorrindo com os lábios. Seus olhos foram para Geto, eram tão azuis quanto o mar. “Eu esperava que meu colega de quarto estivesse dormindo quando chegasse, sabe?” 

Ele era bastante atrevido. Foi essa a primeira impressão que Suguru teve dele. Sabia que seu companheiro de quarto tinha uma fama irritante e, honestamente, estava curioso sobre o quão irritante ele poderia ser.

“Era o que eu estava tentando fazer, antes de você ficar dez segundos tentando destrancar a porta.” respondeu, tentando imitar o mesmo tom casual — e falhando completamente.

“Ah, cara. Você viu como essa fechadura é quebrada não? Devemos reclamar com a coordenação.” O garoto fez uma pausa, finalmente se movendo para alcançar a mochila e ir ao guarda-roupas. “E eu me sentiria culpado de verdade por atrapalhar seu sono,” De novo, ele virou o rosto para si e sorriu, dessa vez mais aberto, mostrando uns quadradinhos metálicos nos dentes com borrachinhas azuis. E, cacete, que sorriso. “Se seu cabelo estivesse bagunçado o suficiente e minhas coisas em cima da cama, ao invés desse chão frio.”

Suguru não pôde dizer muita coisa, murmurando sons desconexos que somente ameaçavam ser palavras. Ele não fez certo quando desocupou a cama, mas não jogou tudo no chão como se fosse lixo, afinal, aquele violão feito de abeto e jacarandá estava muito longe de ser lixo. 

“Não estou com raiva de você, mano. Não se preocupe.”

“Eu não 'tô preocupado...”

Por um instante, o rapaz albino pareceu não saber onde enfiar as mãos, seu riso pronto morreu um pouco ao tentar responder um “Oh” surpreso, e só sobrou aquele silêncio incômodo entre um piscar e outro. Mas foi rápido, quase imperceptível, quando ele ajeitou os óculos com um dedo e deixou escapar um sopro de ar.

“Ok, tudo certo.” Ele deu de ombros, recuperando o tom brincalhão. “Satoru Gojo. Prazer em dividir o mesmo teto com você...?” Se apresentou como se ninguém pudesse adivinhar apenas pela atmosfera e aparência dele.

“Sou Suguru Geto.”

Gojo repetiu o nome, como se o experimentasse na boca — prolongando o “ru” final de um jeito quase musical. Não de um jeito calmo, ele começou a jogar algumas peças de roupa de qualquer jeito no armário, terminando em segundos e o fechando. “Acho que você está preso agora, não? Yu, Shoko, Kento... Conhece esses nomes, posso ouvir sua mente daqui.” Suguru desviou o olhar rápido, pensando um pouco como deveria ficar com um palpite tão fácil mas que o faz se sentir exposto. Ele não respondeu nada muito rápido, mas não olhou para Gojo de novo, queria algo para esquecer a agonia que era ficar cara-a-cara com aquele garoto. 

O azar era que, assim como ele, Satoru também não quis falar mais nada, mas, pelos bons deuses, ele estava ocupado indo pegar algumas de suas coisas do chão para arrumar; o que era seu ponto cego para se acomodar de volta na própria cama sem parecer estar ignorando o colega de quarto. 

“Quer isso?” Gojo exclamou, levantando o frasco de Shampoo. “É que, sabe... Eu cuido do meu cabelo, juro, mas o corte que eu usava era difícil de manter, então decidi cortar um pouco de mais para que crescesse mais legal. Só uso creme de crescimento por enquanto.”

Um pouco de mais? Ele claramente já esteve careca em algum dia das férias.

“Você tem cabelo suficiente para 'brilho, blindagem e hidratação poderosos no estilo Milbon'.'” Ele leu na embalagem, depois, olhando por aí através dela.

“Mm? Sim, claro. Valeu.”

Satoru deixou o frasco na cômoda, mudando a atenção para a mochila vazia que ainda segurava. Decidiu sozinho que a maçaneta da porta do banheiro era o lugar perfeito para deixar. Ele parecia agir como se tudo fosse tão simples, como se dividir o quarto com um desconhecido não fosse nada além de um detalhe. Conversava com naturalidade, sem medir as palavras, hesitar ou coisas do tipo; deixando o sorriso correr solto de um jeito quase íntimo. Tudo isso deixava Suguru com uma pontada estranha de inveja. Como alguém podia ser tão à vontade assim, mesmo quando o mundo ainda não sabia o que fazer com ele?

Todo o evento da madrugada fez as horas passarem mais lentamente, parecia que toda a tensão que mal começava a sumir dos ombros de Geto tinha voltado com um estalo só. Quando estava tentando evitar qualquer outra coisa que envolvesse o cara albino, voltou para a tela do celular, sendo rápido em anexar outro torpedo à lista de “Enviado” no grupo de seus amigos.

Ele passou boa parte do tempo com a cara grudada no aparelho, fingindo não ligar para Gojo jogando alguma coisa com o volume do máximo e batendo as pernas no colchão toda vez que provavelmente perdia. Porém, ocasionalmente, ele caiu no sono perto das duas da manhã, o que foi um alívio, porque agora ele tinha tempo para pensar e associar todas as ideias que tinha; um amigo que não cumpria suas tarefas ─ mesmo que fosse uma punição da direção escolar ─ e ao mesmo tempo que servia como barreira entre um valentão e... apenas o pequeno Haibara.

É claro que peças ainda faltavam para que pudesse julgá-lo de verdade, e, mesmo se tivesse todos os defeitos do mundo, Satoru Gojo continuaria sendo ele mesmo. Suguru sabia. Ele conhecia bem o tipo dele. Daiki fazia parte desse tipo pessoa; são arrogantes de um jeito que afasta quem já está longe e aproxima ainda mais quem está perto. Ele poderia apostar todas as suas jaquetas preferidas que quando Satoru estiver chateado ou zangado ele ficará de ombros recolhidos e mudo em sua própria mente. O diferencial entre os dois é que o albino não deixou Osaka para afrontar a capital e Daiki não está nem perto de ver David Bowie ao vivo, ou de qualquer outra coisa exacerbada que Satoru poderia conseguir com algumas notas. 

O sono foi curto, meio pesado e ele acordou sentindo tudo, menos a renovação que um descanso deveria proporcionar. Com sua cabeça de volta ao presente, Suguru bocejou, antes mesmo de olhar ao redor e perceber que o aquecimento da aula de esportes havia terminado. 

Apesar do cansaço e olheiras, sua manhã não foi extraordinária ou coisa assim, ele só seguiu o ritmo das atividades sem foco, e em nenhum momento avistou um fio branco sequer pelos corredores. Então, a pergunta voltou: devia tê-lo acordado? Ele havia confiado fielmente que o despertador minúsculo e velho que já estava do quarto iria acordá-lo.

O sol já estava alto quando atravessou a quadra vazia em direção ao Hakucho. Sentia-se descompassado, como se o corpo não tivesse entendido que o dia tinha começado. Arriscaria dizer que se arrastava feito um zumbi, mas até os zumbis pareciam ter mais firmeza nos pés.

Na aula anterior, a última antes do almoço, a senhorita Yorozu se apresentou bastante energética, não dando espaço para piscar lento ou fingir interesse no quadro. Inclusivamente, a sala estava mais abafada do que deveria ─ ou era só ele que ainda sentia os efeitos da noite mal dormida. Yorozu explicava algo sobre o uso correto de partículas em construções formais e, embora sua dicção fosse limpa e o ritmo mantivesse os olhos abertos, Suguru só conseguiu focar em uma coisa: a caneta azul que girava entre os dedos de Kenji, um garoto loiro na fileira da frente. Rápida, precisa. Era até irritante.

De tempos em tempos, a professora perguntava se alguém sabia diferenciar ga e wa em contextos subjetivos. Ele pensou que poderia responder; talvez até explicar melhor que ela, mas achava que, se abrisse a boca, ia bocejar no meio da frase. Optou por apenas anotar a data no caderno e encarar a margem. Não que tivesse adiantado muito, pois os professores pareciam sentir o incômodo. “Geto, não é?” Ele ergueu os olhos devagar. Ela o encarava com um sorriso pequeno, paciente. “Quer tentar responder? Sr. Bernard disse que seu histórico em linguagens é bom...”

Ela não estava errada, nem sendo enganada pelo professor de inglês. Suguru era mesmo bom: no inglês, porque era a língua materna de seu pai; no japonês, porque — pelo amor de Deus — é o idioma que ele usa todos os dias. O que custava aprimorar a gramática com bons livros nas horas livres?

Tudo o que fez foi falar o óbvio, “Tópico e sujeito.” recebendo um aceno de aprovação da mulher, que se voltou para o quadro e continuou sua aula até o sinal tocar.

O protótipo da catedral de Nagasaki ( Claramente analogias eram as coisas favoritas de Suguru) estava um pouco mais silencioso hoje, como o imaginado, mas o caos parecia maior por conta da fome coletiva que o horário permitia. Depois de pegar tudo ─ menos o mochi recheado ─ caminhou até a mesma mesa de ontem, prevendo que provavelmente seria a única que seus colegas usariam pelo resto do ano. Não era a melhor opção, claramente, com Utahime levando toda atenção dos outros alunos a si quando levantou a mão para sinalizar onde estavam. Ele afundou o peso do corpo no banco e ouviu um pouco da conversa na mesa, que era sobre algum aluno novo, um com sotaque estranho, aparentemente. Isso deu um estalo na mente de Geto.

“Meu colega de quarto chegou”, ele comentou, entre um gole na limonada e uma colherada de arroz. A frase escapou como se não fosse nada demais. “O amigo de vocês, não é?”

Utahime levantou os olhos, atenta e até um pouco assustada. Ela abriu a boca mas não parecia que iria falar, ou não conseguia.

“O que?” Nanami questionou, parando de escrever alguma coisa no que parecia ser um bloco de notas ao lado do prato.

“O Satoru?” Haibara começou a falar, não se importando sobre parar de enfiar bolinhos de carne na boca. “Ah, eu esqueci de comentar com vocês, perdedores do Kamo, mas nosso novato aqui divide quarto com Gojo.” Ele afirmou para Ken, que estava surpreso, provavelmente nada incomodado com a provocação e Utahime, que estava nervosa. 

“Eu não acredito. Como ele conseguiu chegar?” Shoko advertiu, balançando os ombros para todos os lados e sem sutileza alguma catando algo no prato de Kento para roubar.

“Você não está falando sério, está, Geto?” A menina de cabelo preto finalmente falou, dessa vez, respirando. “O trem, ele não faz-” Como VHS fez no Roppongi, ela travou. Com a própria saliva, estava engasgada.

“Hime?” 

O impacto daquela voz foi imediato, não em todos, mas na maioria. Haibara se virou tão rápido para trás que seu cabelo formou um círculo perfeito no ar por alguns milésimos; Shoko não olhou, mas largou os hashis na madeira e sorriu sozinha dizendo um “Puta merda, é verdade” baixinho. Todavia, foi a própria Utahime quem visivelmente sentiu primeiro, pegando suas coisas e saindo de perto, dando uma volta gigantesca por entre as mesas a fim de evitar quem a chamou e sair do refeitório. Por favor, a menina sempre fazia questão de virar todos os olhos para onde estava? Era um inferno para Geto andar com ela ─ e ele admite isso enquanto tem amigos famosos por serem membros de gangues.

O tom que foi usado no local soou meio brincalhão, como se fosse o tipo de surpresa que só é bom para um dos lados. Ele tinha uma expressão quase satisfeita e os passos não pareciam ter pressa. Esse parecia o palco perfeito para ele; Satoru.

Os mesmos óculos redondos estavam caídos, na ponta no nariz e com as lentes...escuras? O uniforme estava amarrotado, como se ele tivesse apenas acordado e saído do quarto. Esperava ao menos que ele tivesse escovado os dentes.

Gojo não moveu um único músculo para tentar impedir Utahime ou segui-la. Ao invés disso, esperou ela se afastar bastante e só então caminhou até a mesa, com uma postura chamativa de alguém com o ego gigante, passos desengonçados pelas pernas igualmente grandes. Mas entre tudo, ele carregava aquele sorriso; que não era como o sorriso de Haruto que carregava deboche descarado, ou o de Haibara que continha felicidade genuína. Também não era do tipo sorriso educado, apenas para usar uma máscara de boa pinta. Era somente um sorriso metálico, o sorriso metálico de Satoru Gojo.

Ele recebia alguns acenos e assobios durante o curto percurso até onde estavam, e retribuía todos. De vez em quando até dava uns meio abraços, como se fosse uma celebridade de Hollywood ou algo assim. “Que recepção calorosa”, comentou, parando ao lado da mesa. “Senti até falta de um tapete vermelho. O que houve, a diretora cortou o orçamento?”

Haibara se levantou primeiro, visivelmente encantado com o amigo de pé, em carne e osso. Ele parecia com alguém que estava prestes a abraçar o ídolo vocalista de alguma banda. “Mano, sem palavras! Seishin finalmente está completa agora.” Ele prendeu Satoru entre os braços, recebendo três tapinhas exatos nas costas. Como era possível que Yu falasse tão mal sobre as atitudes de Satoru mas no segundo em que se encontrou com ele tudo o que fez foi recebê-lo absolutamente bem e com alegria? “Se eu não te conhecesse, diria que tem uma desculpa digna para sua falta de ontem.” Ele disse quando se soltou, dando uma analisada completa em como ele parecia de perto. “Ah, eu devo me desculpar?”, Satoru respondeu, se sentando no lugar que ficou vazio com a saída de Iori. “Eu prometo recompensar isso, com...”

“Como você está aqui? Pagou para o motorista te buscar mais tarde?” Alguém disse, se aproximando por trás de Suguru.

“Sentiu minha falta, Sukuna? Que consideração!” 

Geto não queria medir esforços para simplesmente virar sua cabeça e ver Ryomen cara a cara, mas não era preciso ser um gênio e nem ter olhos nas costas para saber que suas sombrancelhas estavam juntas e seus dentes rangendo.

“Pergunte pro meu punho,” Sukuna respondeu, a voz ríspida. “Ele queria muito grudar na cara de alguém que mete os outros em encrenca e se safa sozinho.”

Um coro de "Uhh" cobriu o refeitório, mas ao contrário do que todos esperavam, Ryomen apenas seguiu seu caminho para fora dali, como se só estivesse avisando Satoru de que ele ainda cobraria depois.

“Encrenca, é?” Geto sussurrou, pensando sozinho no que Gojo atraiu só no seu primeiro dia. 

“Eu nem vi você aí, Suru.” o albino proferiu, sem deixar de sorrir torto. 

“É Suguru.” 

“Certo, Ruru.”

Deuses. Alguém me mata ou eu mato ele.

“Toru, seja gentil. Ele é muito divertido.” Shoko sorriu, bagunçando os fios curtinhos de Gojo. Ele não pareceu nem um pouco incomodado com o toque da garota, na verdade, estava quase fechando os olhos e apreciando o cafuné quando disse: “Jura? Somos parceiros de dormitório e pelo que eu vi não parece nada divertido. A não ser que um cabelo quase nos ombros seja o auge da rebeldia.”

“Parece mais legal do que ser quase careca.”

O barulho na mesa morreu por um instante. Haibara piscou rápido, como quem não sabia se ria ou se tirava a bandeja dali. Shoko prendeu seu ar, junto com Ken, que em um milésimo, disfarçou a risada com um limpar de garganta; “Ahem! Satoru, amigo. Onde raios está seu cabelo cheio?!”

Gojo, por sua vez, não se abalou, levanto a situação como uma piada, que com certeza era algo que se repetia diversas vezes entre os amigos. “Vai crescer mais e virar um perfeito short spiky, certo? Em dois meses esses fios estarão na última moda. A opinião de vocês não me abala.”

“E por favor, responda o que todo mundo aqui quer saber, como você está aqui?” Yu tentou, mas não conseguiu disfarçar sua mão indo até a cabeça de Gojo para testar a sensação dos fios que cresciam para todos os lados. “Devia ter mandado foto assim que cortou, seria meu papel de parede.”

“História longa. No fim, o ônibus venceu.” Ele passou os olhos pela mesa enquanto tomava um gole do copo de Nanami, que a este ponto, já havia desistido de lutar contra os roubos ─ pobre vítima. “Não, eu não irei responder a segunda parte, ok? Aliás, que saudade da comida sem graça do Yamada.”

“O gosto é bom.” Suguru defendeu. Mas, de fato, para seu paladar aquela comida era magnífica. Mesmo que antes de estar em Seishin tivesse se acostumado a comer os restos de alguma refeição na geladeira de Kaito ou o mesmo lámen de sempre, sabia apreciar quando algo era realmente bom; especialmente com pimenta.

Nanami cruzou os braços. “Eu também acho,” ele pegou seu copo de volta e quase o jogou na cara do garoto albino quando viu que ele tinha tomado tudo em uma só virada. “Idiota.” Fez menção de atacá-lo com os punhos, era quase possível ver uma parte das veias faciais do loiro saltando de sua testa.

“Hunf.” Ele revirou os ombros sem responder nada. Virando um pouco a cabeça, cumprimentou um grupo de alunos do Yuukan que estavam na mesa ao lado com um aceno do queixo, um deles levantou ligeiramente uma mão com o celular e sorriu. “Ah, sim. O que eu estava dizendo antes, eu prometo recompensar você, irmão. E todo mundo do Clã, na verdade. Mesmo o Gurusu, que é novo... e alguns amigos de Clãs diferentes.” olhou para Ken “Apenas olhem a droga do Wi-Fi no celular.”

Eles fizeram, o mais rápido que conseguiam. Suguru entrou da aba de redes e havia um ali, nomeada 'Gojo'sGod' e protegida com senha. “O sinal está péssimo, então vamos usar apenas no lounge por enquanto e talvez eu compre outros desse para espalhar por todo colégio.”

Geto achava que Satoru não podia ser sério. Ele estava falando que instalou um roteador Wi-Fi na droga do internato e estava dividindo com quem bem entendia, fácil, como se não fosse algo luxuoso bancar um plano para mais de cem pessoas.

“Toru, meu Deus. Era isso? Você veio nas linhas normais para parar na cidade e comprar a droga de um roteador?!” Shoko bardou, histérica, perdida, assustada e feliz. Mais feliz ainda depois de Satoru acenou que sim. 

Nanami não estava diferente, só menos agitado, mas seus olhos iam de lá para cá sem saber o quê dizer prineiro. “Céus. Me dê a droga da senha, eu preciso ver se há álbuns novos.”

Satoru deu um sorrisinho superior. “É o melhor álbum dos Beatles, claro. Rubber Soul 1965, tudo junto e somente o R grande.”

Ninguém falou mais sobre o Wi-Fi depois do almoço, nem sobre Sukuna. Tinham barreiras imaginárias com o rapaz e aparentemente muitas histórias pendentes que fariam as coisas ficaram mais interessantes. Ele seguiu os outros por aí e ficou feliz que andavam lado a lado, e não um atrás do outro, era mais fácil se sentir parte do grupo quando ninguém fica em último ─ e também é melhor para ouvir Satoru pronunciando palavras em inglês tão bem quanto o próprio Suguru.

***

Quinta-feira 15 de abril, 2004

Geto decidiu que ele se afogaria nos estudos quando a segunda semana começasse. Não tinha tantas aulas junto dos amigos — e era melhor assim. Programar uma simples nota no computador já era difícil com Yu narrando as cinco maiores encrencas em que Satoru já havia envolvido Ryomen. Não que Suguru tivesse pedido pela história; com Yu falando demais e Shoko sempre junto, era impossível escapar das crônicas de vida do internato. E claro, Sukuna mantinha sua consistência em odiar qualquer amigo de Gojo. Agora que Suguru fazia parte disso, achou mais fácil apoiar cegamente qualquer coisa que o colega de quarto fizesse.

Ainda que tentasse ignorar, cada detalhe da nova rotina só o fazia perceber mais a presença de Satoru. Cantava alto no chuveiro — afinado, e, felizmente, só as melhores músicas do Abbey Road —, iniciava guerras de travesseiro nas horas mais inconvenientes, sempre quando Suguru mais queria dormir, e, para piorar, fazia todo tipo de piada com seu nome desde que o lera na lista de frequência durante a aula de história japonesa.

Agora, seu nome ridículo não era mais algo que tentava manter em silêncio a todo custo. Todos que estavam na sala ouviram a voz estridente de Gojo — até os que pareciam mergulhados em outra dimensão ergueram a cabeça quando ele subiu na mesa e anunciou, como se fosse um mestre de cerimônias: “Por favor, amigos, deem boas-vindas ao nosso colega de classe: Suguru Chapman Geto.” Não poderia soar bem, como sempre, mas ao menos Satoru sabia pronunciar certo.

“Que tipo de nome é esse?”, “Você é estrangeiro? Igual o professor Charles, não é?”, “Oh, por favor, é verdade que vocês da Grã-Bretanha veem o Mercury quase sempre na rua?” — eram as perguntas que mais ouvia agora. Não conhecia ninguém entre os que o paravam nos corredores para falar isso. Exceto Ijichi, o menino nervoso que citou Freddie Mercury com brilho nos olhos. Ele parecia meio próximo de Nanami e sentava à mesa deles de vez em quando, embora raramente permanecesse por muito tempo. Parecia sempre estar a caminho de algum lugar ou cumprindo alguma tarefa e vivia ajeitando os óculos antes de falar alguma coisa. Claro que, para sua própria reputação, Geto respondeu sua dúvida, ou só tentou; “Eu não sei. Experimente perguntar para um britânico de verdade.”

O rapaz não tinha o incomodado desde então, mas também não tinha se tornado uma presença que podia simplesmente ignorar. E, além da singela recusa entre eles, Suguru acabou reconhecendo o nome da família de Ijichi, Kiyotaka. Um nome bastante presente nos relatos de sua irmã, Sonin. Não se atreveu a perguntar nada, esperava descobrir sozinho com o tempo e sem precisar relembrar das coisas que o deixavam abalado.

“Seu aniversário é na próxima semana, não é?” Nanami havia deixado escapar durante um intervalo entre classes. Não foi nenhum anúncio, apenas um comentário que provavelmente não tinha intenção de ser o centro da conversa. Teria passado perfeitamente despercebido se Gojo não estivesse ali para ouvir. A expressão dele mudou imediatamente. Não no sentido delicado e atencioso que se esperaria diante de um colega mais introvertido, mas como quem já começava a planejar algo. Sendo Satoru ali, já era possível imaginar o tipo de comemoração barulhenta e inconveniente que ele faria. Faltavam três dias e Geto nem queria pensar na reação de Ijichi.

Mesmo que Kento fosse o mais quieto deles, quando não estavam todos juntos nas arquibancadas dos campos esportivos ou na praça central, tinha problema, confusão e muito caos no meio. No primeiro sábado, Suguru estava adiantando algumas questões de cálculo até que os gritos vindos da torre Zenin o fizeram sair da biblioteca só pra ver os estudantes correndo, gravatinhas verdes voando e… sapos. Muitos sapos.

Uraume estava com um no ombro e se mexia com uma calma cirúrgica pra tentar espantar o bicho — até o sapo pular pra cabeça dele, o que virou um espetáculo à parte. Do outro lado, os três amigos de Suguru filmavam e riam até chorar, antes que Utahime se metesse no meio da confusão pra tentar acalmar todos e Mei Mei, que gritava sobre entregar Satoru pros pais. Era a primeira vez que via Utahime realmente perto de Satoru depois da cena no refeitório, eles não se davam bem mesmo, mas a maior implicância era, surpreendentemente, por parte dela, que nem deixava o albino falar algo. Não dava para entender muito bem, até que Mei Mei deixasse escapar que se não fosse por ela e Hanami, Iori ainda estaria em apuros, coisas do passado.

No geral, Suguru não se importava com as travessuras alheias. Se não atrapalhassem os estudos, ele até achava divertido. E não hesitou em dizer isso quando Utahime perguntou se ele tinha algo a ver com os bichos gosmentos. Ela pisou no pé dele — com força — quando viu o sorriso aberto, mesmo que a resposta fosse um “não”. Apesar de tudo, Iori não disse o nome dele para a coordenação e prometeu que a detenção dos outros seria pequena. Ela também continuava em sua cola nas aulas mais sérias, como uma colega de estudos obstinada.

Entre suas próprias ambições, Suguru se viu curioso sobre o futuro dos amigos — Satoru, Yu e Kento. Shoko já deixou claro, oitenta vezes, que faria medicina, seria qualquer coisa, até pediatra. Haibara falou sobre o sonho musical de Gojo e o quanto ele mesmo se destacava nos esportes. Só Ken permaneceu um mistério. Afinal, pra onde iria um garoto que usava tanto gel Gatsby a ponto de transformar o cabelo em fibra de carbono? 

Não perguntou nada para o amigo, achou que era invasivo, mas ele teve uma ideia em uma das aulas de Economia Doméstica da senhorita Kuroi, é claro. Eles deveriam simular a divisão de bens ao término de um casamento, o papel de três alunos foi sorteado e não estava dando nada certo, principalmente com Hikaru Noritoshi ─ do grupo de Ryo ─ recusando qualquer proposta imposta por Kento, que seria o juiz tomando conta do divórcio; mas Akari, sua falsa ex-esposa estava contente com qualquer coisa. 

“Meu carro. Eu comprei com meu salário!” O Noritoshi explodiu em cima da mesa. “Sabe o quanto já ouvi de pessoas frustradas? Tudo para receber só uns 1.514 dólares americanos?!”

“Idiota, você não receber em dólar! São perfeitos 163.392 ienes!” Akari refutou, quase dando-lhe um tapa no rosto. 

“Você diz porque só fica sentada em uma cadeira giratória digitando papapa's e pipipi's no computador o dia todo, eu trabalho com atendimento ao público.”

“Sr. Noritoshi, por favor.” Era a vez de Nanami mostrar sua decisão, e antes mesmo que ele abrisse a boca mais uma vez, Hikaru há estava bufando e muito provavelmente xingando todas as gerações do loiro em sua mente. “Akari fica com o carro. Ela está com as crianças e precisa levá-las para a escola.” Ken definiu, batendo o martelo na mesa e fechando o caso.

A Srta. Misato elogiou a postura tomada por Ken diante a situação e parabenizou os três pelo trabalho, foram ridículo, todos, menos Ken. Ele fez tudo muito bem e pareceu gostar, mas a professora não podia dizer isso aos alunos.

Ele viu Hikaru irritado pelo resto da aula, ele era tão estranho, mas parecia ser menos pior que Sukuna, talvez por não ter a postura dos estudantes da casa Zenin. Aliás, sabia que sua família era dona de uma marca de cosméticos e super rígida com toda a bobagem dos Clãs. Um dia, Ele disse que seus pais amavam tanto o Clã Kamo que nomearam seu irmão assim e, um dia, o bebê Noritoshi Kamo terá que conviver com o fardo de ter o nome do próprio prédio.

Então seria assim, Haibara seria um brilhante atleta profissional, Gojo poderia ser o melhor músico de todos os tempos, Ieiri, uma médica precisa, Nanami um juiz excepcional e Geto iria contar os ganhos mensais da Nishimura Textile pelo resto da vida. Sentado em uma poltrona velha, com papéis na mesa da frente, frustrado e invejando a vida dos amigos que realizaram seus sonhos. 

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Notes:

Milbon é uma marca de shampoo profissional japonesa, assim como Gatsby é para gel de cabelo.

"Ga" e "Wa" são exatamente os elementos que Suguru explicou na aula: "Wa" (は) é usado para marcar o tópico de uma frase (aquilo sobre o que se está falando), enquanto "ga" (が) é usado para marcar o sujeito (quem ou o que realiza a ação).

Ex: kono mise wa sushi ga oishii desu (この店は寿司がおいしいです) = "esta loja tem sushi delicioso."

Tanto "Buzz Cut" quanto "Short Spiky" são cortes de cabelo. O segundo, como Satoru disse, era a última moda no Japão durante os 2000s.

Referências:
Inspo. Referência Única para Buzz Cut crescido, como o de Gojo
Inspo. Referência 1 para Short Spiky
Inspo. Referência 2 para Short Spiky