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Red Constellation

Summary:

Após conseguir se livrar do Nogitsune, a vida de Stiles está em ruínas; seu pai mal consegue olhar em seu rosto, o bando está se afastando cada vez mais e ele pensa que pode estar enlouquecendo lentamente na solidão inóspita que tomou conta de seus dias.

Ou,

[Stiles foge no dia da formatura, decidido a deixar Beacon Hills e todos os seus demônios silenciosos para trás; sua ideia de normalidade se estilhaça antes mesmo de ter um vislumbre dela quando ele descobre que viver na boca do inferno da Califórnia, cercado por uma matilha de lobisomens e pelo poder do Nemeton, foi o que o manteve fora do radar de um ser muito mais perigoso.

Se vendo jogado em um mundo sobrenatural totalmente diferente do qual se acostumou durante o ensino médio e se deparando com um poder até então desconhecido dentro de si mesmo, tudo que Stiles pode fazer é aprender os meios de sobreviver.

Anos depois, uma série de eventos o obriga a voltar para Beacon Hills, ele estando pronto ou não.]

Notes:

Essa história não tem qualquer compromisso com os eventos canônicos da série. Esteja avisado.

(See the end of the work for more notes.)

Chapter 1: Prólogo

Chapter Text

 

Stiles estava cansado.

Ele sabia que não havia realmente ninguém além de si mesmo para culpar; noites consecutivas sem dormir faziam isso com uma pessoa, e ser atormentado por um sono intranquilo toda vez que seu corpo se rebelava contra sua insônia autoinfligida não ajudava em nada. Não ia parar, ele sabia bem; os pesadelos, os ataques de pânico, a dor.

Ele não era estúpido. Podia ver que estava, lenta e seguramente, definhando, resultado de um conjunto de inúmeros pequenos atos de autodestruição com os quais vinha se punindo mesmo que inconscientemente desde aquela noite – sua alimentação irregular, porque mal conseguia se forçar a manter qualquer coisa no estômago; a paranóia quase esquizofrênica que mantinha seus músculos tensos o tempo todo; o silêncio corrosivo que ele não conseguia se forçar a quebrar.

Por culpa, ele sabia bem, porque, de uma forma ou de outra, tudo que havia acontecido era sua culpa – ter sido possuído por um espírito monstruoso, ter machucado seus amigos, ter matado-

E agora que o monstro havia ido embora, arrastando um caminho de destruição em sua alma, só restavam os escombros e as cinzas de sua antiga vida ao seu redor, sua única companhia sendo o fantasma de Allison, murmurando incessantemente em sua cabeça, e os resquícios do veneno do Nogitsune, que sorria sempre usando seu rosto no espelho.

Assassino, a voz dela dizia em sua mente, isso é tudo culpa sua, culpa sua por ser tão frágil. Você sempre foi o elo fraco do bando e sabe disso; foi por isso que eles te abandonaram, porque você é um fardo que ninguém nunca quis carregar.

Você sempre soube disso, dizia então a voz do Nogitsune, um som que seria para sempre parte de suas memórias, uma voz que era como a dele, amarga como a morte, você sempre soube que sua existência era uma maldição; primeiro sua mãe, agora a pobre Allison – diga-me, Mieczyslaw, como você chamava a si mesmo quando era criança?

Ele sentia que estava enlouquecendo, mas dessa vez não tinha espírito sombrio nenhum para culpar.

A cada dia, os vultos em sua visão periférica se pareciam mais com o formato de Allison, de sua mãe, de si mesmo, corrompido e dilacerado, o provocando, acelerando seu coração com terror e desespero toda vez que ele se virava – ele não sabia se aquilo era o luto ou um efeito colateral de ter sido possuído, mas não achava que conseguiria sobreviver muito mais tempo.

Ele não queria pensar na terceira possibilidade, naquela que sempre o aterrorizou mais do que tudo, sua imaginação fértil e acelerada o presentando com sonhos enlouquecedores de seu cérebro apodrecendo dentro do crânio, de um diagnóstico incurável que o perseguia desde a morte de Claudia Stilinski.

Mas mesmo que tivesse uma cura, Stiles não sabia que se iria querê-la, pelo menos não agora, quando os vultos e as vozes haviam se tornado sua única companhia, as únicas coisas naqueles dias cinzas e silenciosos. A única certeza. Os fantasmas de Alisson, de sua mãe e daquela versão distorcida de si mesmo sempre estavam ali, habitando o mundo difuso de sua quase visão, sumindo apenas quando ele se virava.

Depois de um tempo ele simplesmente parou de se virar.

Não havia porquê, não quando sabia que não haveria ninguém ali; não apenas os fantasmas, mas também não seu pai, que mal conseguia ficar na mesma casa que ele. Não seu pai que vinha pegando todos os turnos extras na delegacia. Não seu pai que não conseguia olhá-lo nos olhos ou tocá-lo sem um segundo de hesitação.

Não a matilha, porque Stiles tinha matado Allison, porque não importava se não era realmente Stiles.

Esse é o rosto que a matou, e Stiles sabia melhor do que ninguém o quão difícil era olhar para ele agora.

Ele não se lembrava exatamente de quando cobriu o espelho de seu quarto com fita adesiva, mas não demorou para que olhar para o próprio reflexo se tornasse uma tortura. Ele deu um basta quando cada traço em seu rosto passou a ficar irremediavelmente distorcido toda vez que ele olhava para si mesmo, sua boca se curvando em um sorriso perverso e malicioso, seus olhos ficando vazios de qualquer vida ou compaixão.

Ele não se preocupou em pensar em uma boa desculpa para isso – nem para isso e nem para todo o resto. Não era como se alguém além dele entrasse em seu quarto. Agora sua janela estava sempre trancada, suas luzes sempre apagadas, as cortinas sempre fechadas.

Ninguém pareceu perceber, nem quando as aulas voltaram, nem quando elas chegaram ao fim, porque Stiles havia se tornado um fantasma tanto quanto Allison – ou pior, ele achava.

As pessoas ainda viam Allison, porque ela estava em todo lugar; no memorial em seu armário, em seu lugar vazio nas aulas, nos olhares tristes que Stiles não conseguia encarar. Em contrapartida, Stiles havia desaparecido, menos do que uma lembrança distante.

Racionalmente, ele sabia que era melhor assim – ele devia agradecer a solidão, onde poderia estar enfrentando a ira da matilha pelo que fez, pelo que foi incapaz de fazer; ele mereceria cada pedaço disso, mas sabia que não conseguiria lidar com as consequências de sua incapacidade.

O silêncio é melhor, ele continuava tentando se convencer, porque o silêncio era tudo que tinha; o silêncio o acompanhou durante todo o último semestre do último ano, sozinho na biblioteca, em sua casa vazia, em seu jipe em qualquer canto escuro da cidade onde ninguém o veria chorar, onde ninguém perceberia que sua mente estava caindo aos pedaços. Era uma rotina de meses agora, a solidão.

O silêncio era, na verdade, a pior coisa que existia.

Então ele foi embora.

Stiles recebeu seu diploma em silêncio, porque era tudo que tinha agora, aceitando o certificado na sala da direção ao invés de ir na cerimônia no ginásio, onde todos os outros alunos de seu ano estavam, e ficar para o baile de formatura não foi nem um pensamento; ninguém tentou convencê-lo do contrário, de qualquer forma. Seu pai o abraçou, dando os parabéns, tendo respeitado seu desejo de não participar da cerimônia, mas seu corpo parecia tenso, rígido de uma forma que nunca havia sido antes; Stiles não o havia abraçado nenhuma vez desde que Allison morreu, então não sabia se a mudança havia sido gradual, se teria sido pior antes, se as coisas entre eles sempre teriam esse peso agora.

Então seu pai se afastou, não olhou em seus olhos, e disse que precisava voltar ao trabalho.

Ele saiu pela porta e Stiles fez as malas.

Já era tarde da noite quando ele terminou de abastecer o jipe; ele já tinha dezoito anos, então não foi difícil resgatar o dinheiro da poupança que sua mãe havia aberto para ele quando ele era criança; tinha pouco mais de vinte mil dólares nela, para a faculdade, mas Stiles a esvaziou sem um segundo pensamento naquela manhã, deixando uma carta simples para seu pai, porque as palavras haviam secado em sua mente meses atrás.

 

Pai, foi assim que ele começou, me desculpe por ir embora sem me despedir, mas não sei o que teria dito, ou se você teria parado para escutar.

Sei que a culpa é minha, e eu sinto muito. Me desculpe por tudo que aconteceu, todas as mentiras, toda a morte, toda a destruição. Não queria colocar você em perigo, mas não consegui evitar que todas essas coisas horríveis te alcançassem no final das contas.

Estou saindo da cidade, não sei para onde vou a partir daqui, mas eu peguei o dinheiro da poupança que a mamãe deixou pra mim, então você não precisa se preocupar comigo. Não quero que você se preocupe nunca mais.

Estou limpando suas mãos de mim, não quero mais ser um fardo, nem pra você e nem para o bando. Espero que vocês fiquem bem apesar de tudo que eu fiz vocês passarem.

Com amor, Stiles.

Ps.: estou deixando minha cópia da chave de casa junto da chave reserva e estou levando o jipe.

 

Ele deixou a carta na ilha da cozinha, sua chave embaixo do tapete de entrada e atravessou a fronteira de Beacon Hills por volta da meia noite, ignorando o puxão decrépito e triste dos restos de sua ligação com a matilha.

Ele não olhou para trás nenhuma vez.

 

Chapter 2: ATO I

Chapter Text

Centelhas



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Do atrito de duas pedras chispam faíscas; das faíscas vem o fogo; do fogo brota a luz” – Victor Hugo



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No início, não havia nada.

No início, havíamos nós.

Chapter 3: Estrela Cadente

Summary:

Stiles parte em busca de algo; ele encontra muito mais do que esperava

Chapter Text

“Na quietude de uma estrada vazia, encontro um farol, que atrai todo tipo de monstro e iniquidade”

 

 

Stiles estava na estrada há duas semanas quando notou o casal do outro lado do estacionamento.

Ele estava viajando lentamente, sem um objetivo certo além de chegar à Costa Leste, perdido o suficiente em sua indecisão para transformar uma viagem de quatro dias em um ano sabático pelas estradas menos povoadas dos Estados Unidos.

Ele ainda estava ponderando os méritos de tentar se estabelecer em Baltimore ou em Nova York antes que, inevitavelmente, ficasse sem dinheiro, sabendo que as possibilidades eram tão altas quanto o custo de vida, mas não sentia realmente pressa; as coisas estavam calmas desde que havia deixado Beacon Hills, como ele achou que seriam quanto mais longe estivesse da boca do inferno que era sua cidade natal.

Sua fuga desesperada mal parecia uma fuga àquele ponto; toda a coisa vinha se desenrolando mais como férias merecidas depois da formatura – merecidas até demais depois de passar mais da metade do ensino médio correndo pela própria vida –, e por mais que parecesse um pouco mais novo do que realmente era, um sorriso tranquilo e um comentário sobre estar indo visitar faculdades conseguiam desviar com sucesso todas as atendes bem intencionadas das infinitas lanchonetes Dinner por onde havia passado em seu caminho. Ele não havia trocado a placa do carro, que deixava claro que ele vinha da Califórnia, mas duvidava que alguém o estivesse procurando de qualquer forma, então não tinha sentido em ser tão cauteloso com sua identidade.

Ele deixou um bilhete, afinal de contas, e apostava que sua fuga havia sido um peso a menos nos ombros de seu pai; ele nunca soube realmente o que fazer com Stiles, mas nunca daria o passo final para afastá-los, porque os pais eram assim mesmo, amavam demais.

Stiles fez um favor à ele, depois de ser um problema por tanto tempo.

E não é como se ele estivesse infeliz; ele até podia fingir que era um ser humano funcional quando dirigia rápido por estradas rurais com os vidros abaixados e música no último volume, cantando tão alto que era quase capaz de abafar as vozes em sua cabeça, que insistiam que, não importa quão longe ele corresse, nunca conseguiria fugir de seus pecados.

Depois de meses, era quase natural ignorar a ladainha autodepreciativa, por mais verdadeira que fosse.

Em comparação com as estradas barulhentas e música alta para abafar a solidão, os motéis de beira de estrada eram quase silenciosos, não da mesma forma opressiva como seu quarto de infância, que havia se tornado mais uma tumba do que uma sala, mas ainda assim o maior momento de silêncio que Stiles tinha todos os dias. Sempre havia esse som ambiente constante em lugares como aquele, nos motéis perto das avenidas. Era um silêncio cheio de vida; o zumbido da placa neon do lado de fora, o som da máquina de bebidas perto da porta, os murmúrios abafados de televisões ligadas e gemidos atravessando paredes muito finas. Ele não tinha medo de contribuir para aquele burburinho, mas geralmente deixava a quietude distante envolvê-lo enquanto tentava se convencer de que o silêncio não era tão ruim quando estava longe de casa. Comum, ele diria, um silêncio que simplesmente era o que era, ao invés de parecer uma punição.

Assim, rapidamente, ele estabeleceu uma rotina; dirigindo pela manhã depois de um café da manhã gorduroso e sua dose diária de Adderall, fazendo desvios para ver lugares interessantes no meio do caminho, sem pressa de chegar a um destino ainda incerto e então dormindo em quartos baratos durante a noite, sempre colocando cinzas da montanha na porta e em todas as janelas por precaução e sempre evitando pensar demais em qualquer coisa.

Não era exatamente uma vida ideal, mas ele estava mais satisfeito consigo mesmo do que esteve nos últimos anos – mais satisfeito do que já estivera consigo mesmo desde a morte de sua mãe, ele achava.

Era fácil não se demorar em coisas ruins quando estava em movimento, quando podia simplesmente acelerar e deixar o ar cada vez mais frio da estrada levar as cinzas de sua antiga vida para longe, e, no geral, as coisas estavam indo bem. Melhor do que ele imaginava pelo menos. Ele até conseguia imaginar, em dias particularmente bons e ensolarados, uma vida em que aquele vazio em seu peito não parecesse tão absolutamente letal.

Até que, é claro, ele notou o casal do outro lado do estacionamento.

Lá estavam eles, como estavam em outras três paradas desde Nevada.

A primeira vez que Stiles os viu, eles estavam rindo; pareciam um tanto bêbados, um pouco alegres demais enquanto sussurravam coisas sujas um para o outro atrás de Stiles na pequena fila em frente ao balcão do motel, a mulher praticamente se pendurando nos ombros do cara, fazendo uma cena; já era tarde, e Stiles estava exausto, então não deu muita atenção além de torcer para que eles pegassem um quarto longe o suficiente do dele.

A segunda vez que Stiles os viu, eles estavam em uma lanchonete no Novo México, quietos em uma cabine nos fundos, usando roupas infinitamente mais discretas, mas os reconheceu ainda assim, achando que era uma grande coincidência.

A terceira vez que Stiles os viu ele tinha parado para abastecer o carro em um posto no sul do Colorado, mas não ficou muito tempo lá depois que notou os dois dentro da loja de conveniência – ainda mais depois que notou que eles estavam olhando para ele.

Uma vez era acaso, duas vezes uma coincidência, três vezes era um padrão.

Quatro já era sacanagem.

Agora eles estavam no Kansas, e Stiles sabia que o casal estava lá fora, com uma linha de visão direta para o quarto que ele havia alugado, nem ao menos fingindo qualquer aparência casual ou desinteressada. Aparentemente, os jogos haviam terminado.

Não pôde deixar de repassar os outros três encontros em sua cabeça, identificando facilmente que havia algo de estranho naqueles dois desde o começo, algo que ele devia ter percebido muito antes; a mulher era bonita de uma forma quase desconcertante, afiada, muito de muitas formas; seu rosto muito simétrico, seus olhos azuis muito brilhantes e seu cabelo ruivo muito vibrante; o homem, em comparação, era muito pouco, e Stiles talvez nem o tivesse notado se ele não estivesse acompanhado pela mulher chamativa; e embora fosse estranhamente difícil definir algo discernível em seu rosto, ou mesmo a cor de seus olhos, ele se erguia com a postura que Stiles passou a associar inteiramente à confiança presunçosa de seres sobrenaturais.

Não eram lobos, disso ele tinha certeza, mas eram alguma coisa.

E Stiles não tinha a mínima ideia do que eles poderiam querer com ele.

Talvez ele ainda cheirasse à matilha, embora duvidasse muito, e o pensamento tenha morrido antes mesmo de se formar totalmente; ele não falava com qualquer membro do bando há meses, e seria surpreendente se cheirasse a alguma coisa além de si mesmo àquele ponto.

Seria surpreendente se ainda cheirasse à si mesmo, por mais triste que a ideia fosse.

Só não fazia sentido.

Ou talvez eles não fossem seres sobrenaturais; talvez eles fossem assassinos em série e Stiles estivesse paranóico no sentido errado – não seria a primeira vez. Talvez Stiles fosse apenas o tipo deles, como era o tipo de muitos assassinos em série: jovem, sozinho, um fugitivo sutil pairando sob o radar, alguém de quem ninguém sentiria falta, alguém que ninguém estava procurando.

Ou ainda pior: talvez eles fossem assassinos em série e seres sobrenaturais, porque esse era o tipo de sorte que Stiles tinha.

A ideia de morrer no meio do nada no Kansas, longe de qualquer pessoa que pudesse reconhecer seus restos mortais, parecia tão assustadora quanto reconfortante, embora ele não quisesse realmente morrer – ou pelo menos era a única coisa na qual podia se agarrar quando não havia mais nada substancial ao seu redor.

Sobreviver era tudo que sabia fazer, afinal.

Assim, ele trancou as portas e janelas, espalhando uma camadas de cinzas da montanha ao redor do quarto inteiro; ele já havia visto lobisomens quebrando paredes antes, e não ia dar sorte ao azar, ainda mais quando não tinha ideia do que os dois perseguidores do lado de fora eram.

Stiles arrumou sua mochila, a única que ele realmente tirava do carro quando se hospedava durante a noite, diante da possibilidade de um perigo exatamente como aquele o encontrar, e a noite avançou lentamente depois disso, enquanto ele se sentia cada vez mais como um rato em uma armadilha; ele sabia que não podia ficar ali para sempre, mas sabia que o casal ainda estava lá fora, um sentimento persistente de medo e nervosismo se apoderando de cada canto de seu corpo; mesmo quando o estacionamento caiu no mais completo breu, todos os quartos escuros e silenciosos ao redor, ele ainda conseguia senti-los, como uma coceira insistente sob a pele – e toda vez que ele espiava por uma fresta na cortina, lá estavam eles, quase escondidos pela escuridão.

Ele poderia escapar pela janela do banheiro, que ficava virada para o outro lado do hotel, mas quão longe ele conseguiria fugir a pé? Os dois conseguiriam ouvir seus movimentos de onde estavam? Estavam esperando ele fazer exatamente isso?

Era um movimento desesperado demais; eles certamente esperavam que a tensão e o silêncio fossem o suficiente para tornar Stiles estúpido.

Ele poderia usar as cinzas, mas não sabia o quão precisa sua vontade seria, não com o pânico que se insinuava em sua mente; ele tentou lembrar a si mesmo que havia usado seu truquezinho com surpreendente precisão em situações muito mais caóticas e mortais, mas isso foi antes – antes de sua vida ruir em pedaços, antes do Nogitsune o invadir e bagunçar cada canto de sua mente.

Antes de ele estar tão completamente sozinho.

Você não vai conseguir, disse a voz de Alisson, parecendo ecoar por todo o quarto, você não tem mais intenção de realizar qualquer coisa. Você é um fantasma, Stiles, oco, vazio…

Ele estava ponderando os méritos de morrer na jaula que havia criado ou escapar pela janela do banheiro quando uma batida na porta interrompeu seus pensamentos – o som foi tão inesperado e suave, fora de lugar, que conseguiu interromper facilmente o ataque de pânico que vinha crescendo dentro dele desde que percebeu seus perseguidores.

Ele sabia que não devia chegar perto da porta; era uma péssima ideia, a pior ideia de todas, mas algo dentro dele o forçou a dar um passo à frente – como o puxão de uma corda invisível, um ímpeto que ele achou que havia morrido dentro dele junto de todo o resto.

Antes que percebesse, estava abrindo a porta, se deparando não com a mulher loira chamativa ou seu companheiro estranhamente difícil de lembrar, mas com uma terceira pessoas, ou o que Stiles achou ser uma pessoa à princípio, sua silhueta envolta em uma luz tão forte que ele quase não conseguia ver através do brilho.

Algo elétrico disparou através de suas veias quando finalmente conseguiu ver através da estranha luz e seus olhos se encontraram.

Em questão de segundos a aparência da mulher à sua frente tomou forma e cor sobre a aura luminosa que a envolvia; sua pele era de um tom quente de marrom escuro, seu cabelo estava bagunçado sob o capuz que usava e havia algo em seus olhos, uma qualidade luminosa impressionante que fazia o verde parecer quase dourado, como se ela estivesse queimando de dentro pra fora, o calor precisando encontrar formas de escapar de dentro dela.

Aquela luz alcançou Stiles como uma mão estendida, quente e convidativa, buscando tocar uma luz que até então Stiles não sabia que existia em si mesmo. 

Naquele momento, Stiles simplesmente soube – o que quer que ela fosse, eles eram iguais.

A mulher não hesitou em empurrá-lo para dentro do quarto, o seguindo rapidamente e fechando a porta com um estrondo às suas costas. Seu capuz escuro caiu, retirando qualquer sombra enganosa de seu rosto jovem e bonito.

Havia uma torção descontente em seus lábios quando finalmente falou: — Tem uma sereia e um espectro perseguindo você, sabia disso?

— O que…? Hm? — Ele tentou respirar novamente, não sabendo exatamente em que momento havia parado, e demorou até que as palavras dela fizessem algum sentido em sua mente.

— Claro que sabia, não estaria aqui andando em círculos todo nervoso rodeado por um monte de cinzas da montanha se não soubesse. — Ela bufou, um pequeno sorriso se abrindo em seu rosto. — Sabe, eu esperava alguém mais velho quando senti sua luz duas semanas atrás, mas acho que alguns de nós são simplesmente mais brilhantes do que outros, ein.

Stiles cravou as unhas nas palmas das mãos, tentando se focar no presente e não naquela sensação calorosa e estranhamento familiar que ainda o atacava: — Quem é você? Como-

— Vamos ter tempo de sobra pra conversar quando nos livrarmos dos babacas lá fora. É apenas uma questão de tempo até que mais deles consigam te rastrear até aqui. — Ela tirou uma mochila das costas, a apoiando em cima da cama desfeita e a brindo com um movimento suave de suas mãos cheias de anéis dourados — Meu nome é Devi, aliás.

Ela o encarou com uma sobrancelha escura erguida em uma pergunta silenciosa, e ele quase se apresentou por seu apelido antes de considerar por um segundo. Não soube bem porquê, mas teve uma vontade repentina de dizer seu nome verdadeiro pra ela.

— Eu… Eu sou Mieczyslaw. É um nome meio difícil, pode me chamar como quiser. — Ele murmurou, olhando nervosamente da porta para Devi, tentando imaginar quem ela era e porque estava ali.

Devi assobiou, um sorriso mais largo esticando seus lábios bonitos, se voltando novamente para sua mochila aberta: — Wow, belo nome. Sabe, tem um ditado que diz que quanto mais complicado o nome da Centelha, mais poderosa ela está destinada a ser, então acho que você já veio com uma sorte grande.

As palavras dela atingiram Stiles como um caminhão e algo dentro dele tremeu: — Centelha…?

Não era a primeira vez que ouvia o termo. Deaton havia o usado antes, quando lhe entregou seu primeiro punhado de cinzas da montanha, mas Stiles nunca pensou muito profundamente nisso.

Devi parou de remexer o interior da bolsa, o olhando agora com as sobrancelhas muito expressivas franzidas em confusão e o que parecia uma crescente preocupação: — Você… você não sabe?

Sei do que?

— Pelas estrelas acima, isso é pior do que eu pensava. — Ela suspirou, olhando para cima como se pedisse forças aos céus antes de finalmente tirar de sua bolsa uma vela vermelha parcialmente derretida, o pavio já escuro de outras queimas. — Certo, eu te explico tudo assim que estivermos no esconderijo mais próximo. Eu cheguei na hora certa, aliás, Alina acabou de me avisar que sentiu movimentação demoníaca na área, então se não nos apressarmos, lutar contra uma sereia e um espectro vai ser nosso menor problema.

— Atividade demoníaca? O que-

— Termine de arrumar suas coisas, vi que seu carro lá fora está cheio, então vamos ter que levar o jipe junto com a gente, o que vai fazer gastarmos a vela toda. O resto do caminho vamos ter que ir dirigindo. — Ela não parou, fechando sua bolsa e a colocando nas costas, rapidamente pegando a mochila ainda fechada de Stiles que estava ao lado da cama, a empurrando para os braços dele antes que ele pudesse protestar — Vamos, está tudo aí?

— É, eu… Eu não desfiz as malas. Não sei se você percebeu, mas tem dois malucos me perseguindo lá fora. — Ele colocou a mochila nas costas ainda assim, não sabendo o que mais podia fazer. Odiava se sentir confuso dessa forma, mas algo dentro dele, algo que havia sobrevivido àqueles últimos meses, dizia que ele precisava confiar nela.

Era quase uma compulsão, e talvez em qualquer outro momento ele tivesse questionado isso.

— Garoto esperto. — Ela brincou, estendendo a mão, e Stiles não soube bem o que ela queria, mas um segundo depois toda a cinza da montanha espalhada pelo quarto se moveu como um organismo vivo, as partículas escuras voando para as mãos de Devi como se não pudessem evitar ser atraídas por aquela luz dourada e verde encantadora que a envolvia. As cinzas se comprimiram em uma esfera escura na mão direita dela, girando lentamente até que tentáculos de cinzas se enrolassem entre seus dedos como cobras. Com a outra mão, ainda segurando a vela vermelha gasta, ela pescou uma bolsinha de veludo vermelho de um dos bolsos de sua grande jaqueta verde, deixando que cada grão caísse lá dentro. Ela fechou o saquinho e enfiou as cinzas no bolso novamente. — Você vai precisar correr para o jipe. Entre no banco do motorista, eu entro no do passageiro. Isso aqui, — Ela mostrou a vela — É uma coisinha que eu criei, me inspirando em uma Vela da Babilônia. Não consegue nos teletransportar para qualquer lugar do mundo, apenas para lugares pré-determinados, mas vai servir. O ponto de pouso dessa aqui é um lugar seguro o suficiente para passarmos a noite.

Stiles mal podia acreditar em seus ouvidos: — Teletransporte?

Devi bufou, mas parecia surpreendentemente carinhosa: — Sim, teletransporte. Precisamos estar em contato direto assim que eu acender ela, e já aviso que a viagem pode causar um pouco de enjôo. — Ela tirou então um isqueiro de metal antigo de outro de seus infinitos bolsos — Agora, aqueles dois lá fora certamente vão estar prontos para atacar quando eu abrir aquela porta. Você não olha pra trás, só corre pro carro, entendeu? Deixa o resto comigo.

Stiles queria fazer um milhão de perguntas, mas se lembrou de como seus perseguidores lá fora o olharam naquela manhã, como pareciam estar o analisando em busca de fraquezas. Ele tirou a chave do jipe do bolso de trás da calça jeans, apertando forte o chaveiro entre os dedos.

Não havia mais nada que pudesse responder então: — Entendi.

— Ótimo! — O sorriso selvagem e excessivamente alegre iluminou seu rosto novamente, enquanto ela se virava para a porta, enrolando a mão que ainda segurava o isqueiro na maçaneta e a girando de uma vez. — Vai!

Stiles, talvez pela primeira vez na vida, fez como foi instruído, e correu com tudo que tinha até a porta do jipe. Por um segundo ele pensou que fosse deixar a chave escorregar e cair no chão – não teria sido a primeira vez, e apenas combinava com sua falta de coordenação costumeira – mas a chave se encaixou perfeitamente na fechadura, e no momento seguinte ele estava se fechando no banco do motorista e se inclinando sobre o assento ao lado para abrir a porta para Devi, que havia mandado uma figura sombria para longe com um chute certeiro antes de se jogar dentro do jipe também.

Depois disso, tudo que Stiles viu foi a chama do isqueiro, e tudo que sentiu foi a mão de Devi agarrando a sua antes que o mundo inteiro se dobrasse ao seu redor e tudo ficasse escuro.



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A primeira coisa que Stiles percebeu quando acordou, foi o cheiro de café.

Por um momento, pensou que estava em casa, ouvindo o pai se movendo pela cozinha enquanto preparava o café da manhã. Não era algo com o qual estava acostumado, principalmente nos últimos meses, já que o xerife parecia nunca parar em casa por tempo suficiente para sequer fazer um café, mas então tudo começou a fazer sentido quando abriu os olhos e se deparou com um teto feito de painéis de madeira escura e com um cantarolar distintamente feminino por perto.

Não estava em casa então.

Ele percebeu rapidamente que estava deitado em um sofá de couro antigo, confortável apesar de alguns pedaços descascando, e aquecido sob uma manta roxa de crochê. Não reconheceu a sala ao seu redor; a lareira antiga apagada, as cortinas verdes fechadas, as paredes pintadas de um tom suave de terracota.

— Finalmente a estrelinha resolveu acordar! — A voz alegre de Devi o alcançou antes que ela aparecesse atrás do encosto do sofá, seus cabelos escuros presos em um coque desarrumado, algumas mechas soltas emoldurando seu rosto sorridente — Pensei que você ia dormir a manhã toda. Vamos, fiz café, vai ajudar com sua primeira ressaca pós-teletransporte.

— Eu… — Ele tentou dizer, mas sua boca estava seca, e seu estômago protestou contra sua tentativa de falar.

— Eu sei, eu sei, ainda falta calibrar um pouquinho alguns componentes da vela vermelha, mas uma hora eu chego lá. O mal estar deve passar depois que você colocar algum combustível aí dentro. — Ela deu de ombros, voltando para o que Stiles supôs ser uma cozinha além de um arco de pedra do outro lado da sala — Gosta burritos de café da manhã? Eu saí pra comprar, já que só tinha café na despensa.

Respirando fundo e tentando fazer seu corpo voltar a funcionar como deveria, Stiles se levantou, se erguendo tão lentamente quanto sua impaciência permitia. O mundo pareceu girar por um segundo antes de tudo parecer um pouco melhor, e ele seguiu Devi sem demora, atraído sobretudo pela ideia de ser alimentado. Ele não comia nada desde o que ele supunha ser o almoço no dia anterior, e seu corpo não estava muito feliz com isso.

A cozinha além do arco era pequena e aconchegante, embora carregasse um ar um tanto abandonado. Não haviam eletrodomésticos à vista, e Devi estava tirando uma cafeteira de metal antiga do fogo quando ele finalmente se aproximou da mesa, que estava posta para duas pessoas, com dois burritos em cada prato e uma xícara para cada um.

— Não temos nem leite e nem açúcar, foi mal. — Ela murmurou quando se sentou em seu lugar, colocando uma quantidade generosa de café em ambas as xícaras. — Vamos, sente-se, você vai precisar de energia para o dia, temos uma viagem longa daqui até em casa.

Stiles puxou a cadeira de madeira gasta e se sentou pesadamente, ainda se sentindo um pouco fora da própria pele, mas mais acordado do que se sentia desde que conseguia se lembrar.

Ele estava, acima de tudo, pronto para algumas respostas.

Ele tomou um grande gole de café para limpar o gosto ruim da boca, ignorando como quase queimou sua língua, antes de voltar seus olhos para Devi, que já abria a embalagem de um dos burritos e dava uma grande mordida: — Acho que precisamos conversar…

— Sim, sim — Ela disse com a boca cheia, tomando um gole de café antes de continuar — Precisamos, mas você precisa comer. Agora.

Ele suspirou, pegando um de seus burritos sem se importar muito com o que tinha dentro, abrindo a embalagem de papel alumínio e dando uma mordida tão generosa quanto a dela, esperando que isso fosse o suficiente para ela começar a falar.

— Bom, e aí? — Ele perguntou, dando mais uma mordida para enfatizar o ponto. Agora que havia provado, percebeu que estava realmente com fome, e que a escolha do restaurante foi certeira, porque aquele burrito estava divino. — O que tá acontecendo aqui?

Devi pareceu considerar o que dizer por um momento, antes de ajeitar a postura e limpar a garganta, deixando a comida de lado por um momento: — Acho que pela nossa conversa ontem, posso supor que você não sabia sobre todo o lance de Centelha.

— É, eu acho que perdi essa aula. O que diabos é uma Centelha, afinal? — A curiosidade guerreou com aquela parte incrédula de si mesmo que não conseguia conceber a ideia de ele ser qualquer coisa.

— Isso é… uma pergunta um tanto traiçoeira. — Devi fez uma careta — Acho que o melhor jeito de explicar é dizendo que somos tipo baterias mágicas da natureza. Somos como… Hm, deixe-me ver… Ah! Como linhas ley ou árvores mães. — Ela parecia contente com os exemplos, como se explicassem tudo. Obviamente a expressão perplexa de Stiles lhe disse que ela estava errada — Olha, ser uma Centelha é como ser um ponto de conexão para a magia celestial. Somos um dos poucos seres que têm acesso à essa energia, que alimenta a vida e a magia no nosso mundo, então nós meio que recarregamos as coisas, mas também podemos usar essa energia para fazer magia, poções e rituais, sabe, meio coisa de bruxa mas não exatamente de bruxa. Acho que é a melhor forma de explicar.

Aquilo era absurdo, mesmo para Stiles que passou o ensino médio inteiro correndo de lobisomens assassinos, kanimas vingativos e espíritos do caos.

— Eu não… Isso não pode… O que? Eu não sou uma Centelha, você deve estar enganada! — Ele negou, largado a comida meio comida no prato enquanto sentia aquela coisa viscosa e nojenta que eram seus piores pensamentos se revirando dentro dele.

Mas ele sabia, bem lá no fundo, que era verdade, sabia porque ele e Devi eram iguais, e ela brilhava de uma forma que definitivamente não era humana.

Ele via aquela luz nela, mesmo que não conseguisse ver em si mesmo.

Ela o encarou com olhos suaves, conhecedores, mas não cheios de pena: — Sei que pode ser um choque. Eu entendo, de verdade. Normalmente recebemos essa conversa quando temos quatorze anos e começamos a brilhar, mas acho que você estava sozinho em um lugar protegido até pouco tempo atrás. — Sua voz estava mais tranquila também — É fácil ignorar certas coisas quando elas não nos colocam em perigo. Mas as coisas mudaram agora. Eu não sei onde você estava até então, mas o mundo aqui fora não é muito gentil com seres como nós. — Ela se encostou mais contra a cadeira, suspirando pesadamente, um peso novo se mostrando em seu rosto, sobre seus ombros — Certo, vou começar do começo, pra não ter nenhuma confusão. Você sentiu algo diferente quando fez quatorze anos?

Stiles não precisou pensar muito nisso; ele se lembrava vividamente de seu aniversário de quatorze anos, como acordou exatamente à meia noite entre o dia 25 e 26 de abril com algo fervendo em sua garganta, a pele aquecida por uma febre infernal e a cabeça pesada. Se lembrava de se contorcer na cama, com dificuldade para respirar pelo que pareceram horas; meia noite e dez ele abriu os olhos e um calor estranho havia tomado conta de seu peito, mas toda a queimação e dor haviam ido embora, o deixando exausto o suficiente para cair no sono outra vez.

Quando acordou depois daquilo, junto com o nascer do sol, pensou que parecia um pouco diferente quando se olhou no espelho; seu cabelo e seus olhos pareciam um pouco mais claros, sua pele menos pálida.

Ele nunca mais pensou naquilo depois daquela noite, descartando toda a experiência estranha como um sonho vívido inofensivo.

— Senti, sim…

Devi assentiu, e algo em seus olhos dizia que ela sabia exatamente o que tinha acontecido com ele: — Aquilo foi o seu despertar. Toda Centelha, ao completar quatorze ciclos solares, amadurece sua luz, e aquilo que era apenas uma faísca, se acende. É normalmente aí que as coisas ficam complicadas. — Algo em sua voz parecia quase sombrio — Quando uma Centelha desperta, todas as outras sentem, desde que não estejam sendo bloqueadas por barreiras mágicas. Mas outras coisas sentem também. Centelhas são raras, sempre foram, mas hoje mais do que nunca, e nosso poder é cobiçado por todo tipo de criatura, principalmente por… demônios.

Stiles se forçou a tomar mais um gole de café: — Não sabia que demônios existiam… — Ele murmurou, mesmo que não fosse inteiramente verdade. O rosto desfigurado do Nogitsune lhe veio à mente, diminuindo consideravelmente seu apetite, sua voz maldosa e risonha ecoando nas partes ocas em seu peito, preenchendo o vazio com culpa e ódio.

Ele tentou voltar ao presente logo em seguida, porque sabia que não devia se perder em pensamentos como aquele; de qualquer forma havia um peso no modo como Devi falava aquilo – demônios, não espíritos malignos, monstros ou entidades do caos.

Demônios, pura e simplesmente.

— Demônios são nossos predadores naturais. Os únicos que existem, mesmo que várias outras espécies tentem nos colecionar. Eles são feitos de escuridão onde somos feitos de luz, e o líder deles é o pior de todos. — Ela voltou a comer, como se tentasse preencher o vazio que o assunto deixava com o que restava do burrito de café da manhã. — Caim é um demônio antigo. Ele controla praticamente todos os outros, porque é mais poderoso do que eles, e sua principal missão nessa terra é caçar todas as Centelhas que puder. Faz isso já tem séculos, e não parece pronto para se aposentar tão cedo.

— Então aqueles dois no hotel…

— A sereia e o espectro eram mercenários. — Devi cuspiu as palavras com desgosto — Não existem tantos demônios assim para ter um grupo encostado em cada cidade de cada país apenas esperando uma Centelha se apresentar, então eles fizeram questão de deixar a cabeça de qualquer um de nós com um preço bem alto.

— Ainda não entendo… Por que eles simplesmente não me atacaram então? Eles tiveram muitas oportunidades, vi eles em quatro estados diferentes até agora. — Muitas coisas ali não faziam sentido, e isso nunca era um bom sinal para Stiles, que precisava saber de tudo, o tempo todo.

— Eles estavam te avaliando. É incomum ver Centelhas andando desprotegidas por aí, com sua luz à mostra. — Devi usou o polegar da mão livre para puxar um pouco um colar de contas escuras cintilantes que tinha no pescoço — Quando eu saio de casa sempre uso isso, é um amuleto que esconde minha centelha, não dura pra sempre, mas é alguma coisa. Tenho outro pra você usar durante a viagem. — Ela deixou o colar voltar à posição original em seu pescoço — Você está andando por aí sem um desses deve ter disparado todos os alarmes de cuidado na cabeça daqueles dois, além, é claro, do fato de você não ser um moleque indefeso de quatorze anos. Aposto que quando eles te viram, todo brilhante e despreocupado, ficaram receosos em te abordar. Só uma Centelha poderosa, muito confiante no próprio poder, seria tão ousada. — Ela riu apesar de tudo. — Eles deviam estar se borrando de medo.

Stiles terminou o primeiro burrito, e apenas para ter algo para fazer com as mãos, começou a rasgar o papel do segundo: — E por que minha… centelha só apareceu para os outros agora? Você mencionou que eu devia estar em um lugar protegido antes.

— Sim, acredito que você estava em um lugar energeticamente protegido. — Devi colocou mais café para ambos, quando suas xícaras ficaram vazias — Existem alguns locais no mundo com esse poder, refúgios e santuários naturais. Normalmente árvores sagradas e alta atividade paranormal indicam locais assim. Outros fatores influenciam na questão de esconder sua centelha, é claro, como estar muito próximo de uma matilha de lobisomens ou de um coven de bruxas. Normalmente a energia mágica de outros seres sobrenaturais faz com que a nossa pareça um tanto diluída.

Um arrepio de desconforto atravessou Stiles ao ser lembrado repentinamente da matilha. Não queria pensar neles de forma alguma, mas o olhar questionador de Devi não parecia lhe deixar muita opção. Por algum motivo, ele sentiu um impulso quase compulsivo de contar tudo pra ela.

— Na minha cidade natal, tinha uma matilha, eu… — Ele não queria admitir que havia sido expulso dela, nem como havia arruinado tudo de forma tão definitiva e espetacular que ninguém nem queria dar a notícia pra ele. Ele limpou a garganta — Eu era próximo deles. Sobre a árvore sagrada, lá tem um nemeton. É só um toco agora, mas com certeza nunca parou de atrair coisas sobrenaturais como um maldito farol.

Devi pareceu satisfeita com tais informações: — Imaginamos que podia ser isso. De qualquer forma, assim que você saiu de lá, sua luz ficou visível pro resto do mundo. A sorte é que a explosão foi grande o suficiente pra não indicar sua localização exata para a maioria das pessoas. É diferente pra nós, outras Centelhas, é claro. Eu sabia exatamente pra onde ir pra te encontrar.

— Sorte a minha. — Ele murmurou, sincero.

Devi sorriu: — Vamos terminar de comer e botar o pé na estrada. Tenho certeza que você tem muitas outras perguntas, mas Alina vai conseguir responder melhor do que eu.

— Alina?

— Ela é minha mentora, e logo mais vai ser a sua também. Ela é a Centelha mais velha que já conheci, o que é um feito em um mundo que parece gostar tanto de nos caçar. — Ela engoliu a última mordida de seu segundo burrito, tomando o resto do café em um gole apressado — Ela sabe de tudo um pouco, você vai amar ela! E o James, nossa, vocês vão se dar tão bem, sério!

Stiles se apressou em terminar logo seu café da manhã, se levantando enquanto ela terminava de arrumar tudo com pressa. Ele resolveu deixar de lado os comentários alegres dela por enquanto, já tendo coisa demais para pensar no momento, mas precisava fazer uma última pergunta antes de partirem.

— Devi… Pra onde estamos indo, exatamente?

Ela se virou para ele depois de colocar as xícaras e os pratos recém lavados no escorredor, secando as mãos em um pano de prato, o sorriso em seu rosto mais largo e mais bonito do que nunca: — Estamos indo pra casa, Mick, direto para Nova Orleans!

Chapter 4: Constelação

Chapter Text

“Somos uma chuva de meteoros, anjos caídos brilhando como fogo na escuridão”




A casa em Nova Orleans era diferente de tudo que Stiles já havia visto.

Com três andares, o antigo casarão se erguia às margens de uma parte sombria dos pântanos de água turva; suas paredes externas pareciam já ter visto dias melhores, cobertas em diversos pontos por limo, musgo e trepadeiras verdes, mas a cor ainda era de um roxo vivo, contrastando lindamente com as molduras verde jade das janelas, que, por sua vez, eram obras de arte em vitral, de todas as cores, representando flores encantadoras e figuras quase humanas lindamente desenhadas. Os delicados entalhes nas colunas, cerca e escada da varanda apresentando cenas bucólicas de flores desabrochando, vinhas se enrolando e pequenos insetos alados completavam o visual místico e intrigante da construção.

Era mágico, até onde Stiles conseguia descrever.

— Lar doce lar! — Devi suspirou enquanto estacionava no caminho de terra úmida que levava até a frente da casa. — Bem-vindo ao nosso covil, Mick. — Ela o empurrou de leve, sorrindo quando percebeu o quão maravilhado ele estava com o lugar. Tudo ao redor da casa parecia carregar uma peculiaridade fantástica, desde os pequenos vagalumes que pairavam no ar até o som uivante do vento por entre os salgueiros-chorões. Um jardim de fadas com pedras coloridas e cogumelos se amontoava em um lado da casa, e arbustos com flores em plena floração cresciam do outro.

Mesmo o cheiro daquele lugar parecia mágico, como o jardim de sua mãe quando ele era criança.

— Vamos, se você amou o lado de fora, vai se apaixonar pelo lado de dentro! — Devi o ajudou a pegar o máximo de malas e caixas possíveis, e eles não se preocuparam em trancar o carro quando seguiram até a varanda. Era a primeira vez que Stiles tirava a maioria daquelas coisas do porta-malas desde que havia iniciado sua viagem, e a bagagem pareceu subitamente mais pesada quando esse pensamento o alcançou. Ele não sabia se ficaria ali por muito tempo, mas Devi parecia ter tanta certeza que ele não conseguiu discutir contra isso. — Cara, o Jamie vai amar seu carro, ele adora essas coisas vintage! Mas não deixe ele dirigir, é sério, ele é um péssimo motorista!

Eles estavam subindo a escada que levava até a varanda quando a porta da frente se abriu com tudo, o reflexo dos vitrais na parte superior quase cegando Stiles momentaneamente.

— Dev! — Um rapaz emergiu da casa, correndo direto para Devi. Sua pele era escura, e uma profusão de cachos castanhos macios se projetavam de sua cabeça. Seus olhos eram de um rosa claro antinatural e encantador, e aquele mesmo brilho que habitava o interior de Devi habitava o dele, rosado e frio ao invés de verde e dourado. Parecia ter a idade de Stiles, embora fosse mais alto e os músculos em seus antebraços magros se pronunciassem consideravelmente quando ele abraçou Devi e a tirou do chão. Ela só teve tempo de deixar as coisas de Stiles na varanda antes de ser girada pelo rapaz.

— Jamie! Não seja tão dramático! — Devi riu, o abraçando de volta assim que ele a colocou no chão novamente.

— Você podia ter morrido! — Jamie parecia aliviado demais para parecer realmente bravo, mas não foi por falta de tentativa.

— Mas não morri! E trouxe o Mick comigo, então foi uma vitória dupla! — Devi parecia muito orgulhosa de si mesma, e Stiles não pôde deixar de sorrir de volta para o sorriso cúmplice dela. A viagem durou cerca de quatro dias, com eles parando em hotéis de beira de estrada toda noite com comida pra viagem e uma barreira de cinzas da montanha nas portas e janelas, os colares de proteção firmes em seus pescoços e um amuleto parecido pendurado no espelho retrovisor do Jipe, mas nada mais aconteceu além da camaradagem fácil que Devi estendeu pra ele e mais conversas interessantes sobre as invenções mais recentes dela e sobre a casa no pântano, que era muito mais do que ela descreveu. Em retrospectiva, foi tranquilo, uma extensão mais leve da viagem que estava tendo antes de notar a sereia e o espectro no Kansas.

Jamie se virou para Stiles então, seus olhos cor-de-rosa o percorrendo de cima a baixo antes que um sorriso levemente malicioso se abrisse em seu rosto: — Ah, aí está o novato misterioso. Mais bonito do que me lembro dos meus sonhos. — Seu sorriso era quente e acolhedor, divertido, e mesmo suas pontas um tanto afiadas pareciam encantadoras quando envoltas por aquele brilho rosado sob sua pele; ele era muito bonito, mas de uma forma que não deixou Stiles nervoso ou inseguro, apenas encantado.

— Ah… obrigado, eu acho… — Ele disse, por falta do que falar em uma situação como aquela.

— Árvore mágica e lobisomens? — Jamie se virou para Devi com uma provocação suave no olhar, e ela bufou, o empurrando para fora do caminho.

— Sim, idiota, árvore mágica e lobisomens. Sabe, você não devia se gabar dos seus sonhos proféticos, eles fazem todo o trabalho por você! — Ela passou por eles, não parecendo estar irritada de verdade, e entrou na casa após recuperar as coisas de Stiles que havia deixado na escada.

— Eu sabia! — Jamie comemorou, dando um tapinha amigável nas costas de Stiles — Vou pegar o resto das suas coisas no carro, seu quarto é o segundo à esquerda no terceiro andar, eu arrumei tudo pra você, mas pode deixar tudo na escada, tenho certeza que Alina vai querer conversar com você antes de você subir, ela é ansiosa assim! — Jamie indicou a porta aberta, e então estendeu a mão — Eu sou James, aliás, mas todo mundo me chama de Jamie. É claro que você pode pensar no seu próprio apelido, eu até prefiro um pouco de personalização. Me faz sentir especial.

Stiles não sabia bem o que dizer, pego de surpresa novamente pelo acolhimento casual que aparentemente iria colorir cada uma de suas interações com aqueles dois. Com cautela, mas amolecendo de forma pateticamente rápida, Stiles apertou a mão de James, sentindo aquela corrente elétrica morna e confortável que sentia toda vez que tocava Devi também: — Obrigado… Eu sou Mieczyslaw, mas pode me chamar como preferir também.

— Hm, Dev chama você de Mick, ein. Acho que você combina mais com Mitch.

— Mitch então. — Stiles concordou facilmente, antes de James se virar em um giro suave em direção ao carro.

De dentro da casa, Devi gritou: — Mick, vem logo! A velhota precisa te interrogar antes de te encher de comida!

Stiles sorriu, se sentindo revigorado além de qualquer explicação; cada toque fácil, cada sorriso, cada demonstração suave de que ele era bem-vindo, de que eles eram iguais, o deixou leve, brilhante, cheio de uma energia tranquila e poderosa que vinha crescendo e se acolumulando dentro dele nos últimos quatro dias que passou com Devi na estrada. 

Mesmo sua ansiedade constante, sua desconfiança patológica e sua inquietação perpétua não resistiram ao calor daquelas pessoas. Era avassalador.

— Já estou indo! — Stiles subiu rapidamente a escadinha da varanda, dando o primeiro passo para dentro da linda casa no pântano.

 

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Alina Pietrzak era uma mulher assustadora, e Stiles gostou dela no segundo em que se conheceram, como parecia ser o padrão toda vez que conhecia uma nova Centelha.

Ela tinha uma presença forte e um tanto caricata, com as roupas coloridas em tecidos caros e o cigarro com cheiro de especiarias fortes em uma piteira longa e dourada; seus cabelos eram escuros, com algumas mechas brancas despontando perto da testa e das têmporas, os fios puxados em um coque desorganizado mas charmoso; seu rosto tinha marcas de expressão que contavam uma história de vida cheia de risadas e lágrimas, mas seus lábios se curvaram em um sorriso fácil quando Stiles se sentou à sua frente na sala de estar, dispensando Devi e James com um aceno de mãos displicente.

— Então esse é nosso novo vira-lata. — Ela murmurou ao redor da piteira, seu sotaque polonês pesado, misturado com algo que lembrava o modo de falar um tanto cantado da Louisiana — Bom, vamos direto ao ponto! O que você sabe sobre magia, criança?

Stiles havia pesquisado muito sobre magia desde a transformação de Scott, guiado primeiramente por aquela ideia de que “se lobisomens eram reais, então outras coisas poderiam ser”. Ele investigou diversas culturas, folclores e lendas, ele passou madrugadas inteiras em claro entre fóruns suspeitos e livros antigos que não haviam sido traduzidos para o inglês moderno, mas nada que fosse muito diferente de sua usual mania de pesquisa. Depois do Nogitsune, saber mais sobre magia se tornou uma urgência particularmente insistente, embora não pudesse mais ser compartilhada – ele queria estar pronto caso algo maligno achasse as rachaduras que a raposa havia deixado em sua alma, mas não adiantou muito de qualquer forma; não era como se ele tivesse uma confirmação sobre o que era real ou não, por mais cuidadoso que fosse em sua curadoria de material e por mais que seus instintos normalmente fossem certeiros – não era como se pudesse confiar em si mesmo na época.

Era por isso que existiam mentores, e Deaton nunca havia sido o melhor dos exemplos.

— Eu não sei muito de forma prática além de como lidar com cinzas da montanha. — Ele confessou, pensando se isso seria o motivo pelo qual ela o jogaria de volta na estrada. Certamente ele era mais problema do que qualquer um gostaria de ter.

Ao contrário da decepção ou do escárnio que Stiles esperava, ela riu, deliciada: — Então você sabe a coisa mais importante sobre a magia de uma Centelha. — O som de sua risada era esfumaçado e rouco, contagiante — Vontade.

Ele não queria dizer à ela que havia se esquecido disso também; como querer havia se tornado um sentimento carregado de auto aversão e culpa nos últimos meses: — Eu não… Eu não sabia o que era uma Centelha até Devi me encontrar. Acho que não sei ainda, exatamente.

Alina riu: — Ah, sim, toda a história de bateria mágica da natureza. Aquela garota é uma ameaça.

— Então não somos baterias mágicas da natureza?

— É claro que somos, mas isso é uma descrição tão prática, e tão sem graça. — Ela soltou fumaça pelo nariz, como um dragão — Somos um caminho que a natureza encontrou de dar poder à imaginação das criaturas conscientes, somos seres criados pela vontade e criadores do próprio querer. Nossa luz é magia pura, energia além da compreensão de outros seres, e o limite de nosso poder é o limite da nossa imaginação. — Ela se inclinou levemente para frente, seus olhos azuis escuros como tempestades, o brilho sob sua pele reluzindo branco e azul como uma chuva de raios. — Você entende isso?

Stiles acenou com a cabeça, se contorcendo em seu lugar no sofá azul turquesa confortável: — E… E o que exatamente eu tenho que fazer agora?

— Ah, aí está a pergunta que mais importa. — Alina bateu o cigarro na ponta da piteira contra o cinzeiro na mesinha ao lado de sua poltrona — O que você deve fazer, de fato. Me diga, o que você quer fazer, Mieczyslaw? — Ela pronunciou seu nome perfeitamente, exatamente como sua mãe fazia, sem esforço onde todos os outros mal tentavam.

Mas Stiles não sabia como verbalizar o que queria; aqueles últimos meses haviam bagunçado não apenas sua vida, mas sua mente, seu coração, sua alma – querer parecia uma ânsia tão estrangeira agora, e tão absolutamente familiar ao mesmo tempo; ele queria que aquele vazio fosse embora, ele queria não sentir medo o tempo todo, ele queria que Allison estivesse viva, que a matilha não o tivesse abandonado, que seu pai pudesse vê-lo como mais do que uma maldição.

Ele sempre foi tão ganancioso.

— Quero aprender com você. Eu quero ficar e entender de verdade. — Foi o que conseguiu dizer, mas, de alguma forma, ele sabia que Alina havia entendido, sabia que ela podia ver sua dor, seu desespero, sua ânsia gananciosa e devoradora.

Ela via que ele era um fugitivo, que ele era um náufrago que se afogaria caso ela soltasse sua mão.

— Então que assim seja. — Ela declarou, com tanta facilidade que Stiles sentiu lágrimas queimando em seus olhos. Sem perguntas, sem dúvidas, sem julgamentos — Agora vamos jantar, você está magro demais para meu gosto e nenhuma criança passa fome sob meu teto!

 

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O jantar foi servido ao pôr do sol, e Stiles ficou surpreso com a quantidade de comida que havia sido preparada em tão pouco tempo. Tanto Devi quanto James fizeram questão de contribuir com pratos especiais, então a mesa apresentava uma mistura inusitada, mas encantadora, de culinárias diferentes.

Alina havia preparado pierogi suficiente para um pequeno exército, o sabor familiar levando Stiles para tempos muito mais simples, quando sua mãe ainda estava viva e sempre preparava aquilo no Natal. Devi colocou no centro da mesa uma panela inteira de butter chicken e outra de arroz branco longo, uma combinação que estava simplesmente sensacional, e James fez rolinhos de massa recheados com tomate seco, queijo e manjericão mergulhados em molho à bolonhesa, que foram quase uma experiência espiritual para Stiles.

Ele ofereceu ajuda, não acostumado com ter outras pessoas cozinhando pra ele assim, mas todos pareciam ter se unido com o propósito de alimentá-lo e deixá-lo descansar ao máximo depois de todas as novidades com as quais estava tendo que lidar. Devi o empurrou para uma das cadeiras ao redor da mesa de madeira antiga na cozinha, e tanto ela quanto James fizeram questão de incluí-lo em todas as conversas que tinham enquanto preparavam o jantar, que focava mais na rotina da casa e no que gostavam de fazer no dia a dia ao invés da loucura sobrenatural.

Por fim, todos se sentaram ao redor da mesa, passando pratos, copos, chá gelado e comida uns para os outros em uma troca leve e animada. Stiles se pegou sorrindo mais de uma vez, rindo dos comentários afiados de James e do jeito naturalmente engraçado de Devi, que não deixava de provocar Alina por uma coisa ou outra sempre que podia. A Centelha mais velha, por sua vez, era tão implacável quanto, com seu sorriso selvagem e comentários certeiros.

Foi fácil existir entre eles, falar com eles, rir com eles, algo que ele notou rapidamente que não tinha somente a ver com suas personalidades cativantes e boa vontade; era o brilho de cada uma das pessoas ao redor daquela mesa, a centelha de magia que Stiles podia ver sem dificuldade – a luz verde e dourada de Devi, a rosa e prateada de James e a azul elétrica de Alina, cada uma parecendo brilhar ainda mais forte agora que estavam juntas, tocando umas às outras como deviam, como foram feitas para fazer.

Ali, Stiles quase podia ver aquela centelha em si mesmo, um brilho quente, vibrando em tons de vermelho e laranja como fogo, estendendo suas extremidades até que pudesse fazer parte daquilo. Era muito, a sensação cobrindo qualquer outra, e em questão de horas, era como se a vida sempre tivesse sido aquilo, ali, com eles.

Naquela noite, pelo que pareceu a primeira vez em muito tempo, um pouco daquele vazio em seu peito cedeu espaço para um pouco de luz.


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Já era final da noite quando Alina o chamou novamente.

Ela havia saído depois do jantar, dizendo que tinha algo importante para fazer em seu escritório, mas Devi garantiu com uma risada e um dar de ombros que ela fazia isso sempre para evitar ajudar com a louça.

Stiles insistiu em ajudar a arrumar tudo dessa vez, aproveitando para se familiarizar com a nova cozinha; pela conversa durante o jantar, todos já haviam aceitado que ele ficaria ali pelo futuro próximo, e ele estava firme em seu objetivo de não ser um fardo, disposto a não repetir os mesmos erros da vida que havia deixado para trás.

Ele queria que aquilo funcionasse, mesmo que sentisse que não merecia de forma alguma.

Stiles, Devi e James estavam conversando na sala de estar, cada um com uma caneca de chá fumegante, o relógio acima da lareira marcando quase meia noite, quando Alina apareceu novamente, dessa vez vestida com um longo roupão de seda verde esmeralda e um par de pantufas roxas.

— Bom ver que temos um quarto tagarela na casa. Seria terrível se você fosse tímido, Mieczyslaw. — Ela comentou com bom humor — Venha comigo, preciso te mostrar uma coisa. E vocês dois, — Ela apontou para Devi e James, que estavam um de cada lado de Stiles no longo sofá azul celeste — Melhor irem dormir, não pensem que vou adiar nossas sessão de meditação pela manhã.

Devi bufou, indignada: — Eu e Mick acabamos de chegar de viagem!

— Outro motivo para meditar! Vocês precisam alinhar suas energias com o pântano. — Alina empinou o nariz, sorrindo de forma vitoriosa enquanto girava nos calcanhares e seguia para fora da sala com a autoridade de uma rainha, embora suas pantufas roxas fizessem um barulhinho engraçado contra o piso de madeira.

— Inacreditável… — Devi suspirou enquanto Stiles se levantava. Ela estendeu a mão e tirou a caneca vazia das mãos dele, se levantando também. — Boa noite, Mick, até amanhã! Grite se ela quiser que você comece a meditação ainda hoje à noite, eu e Jamie te resgatamos.

Ele riu, aceitando o abraço dela: — Pode deixar, durmam bem.

— Boa noite, Mitch! — James se despediu, bagunçando seu cabelo antes de segurar Devi pelo pulso e arrastá-la para fora da sala, seguindo pelo corredor que levava até a cozinha.

Stiles foi rápido em seguir Alina, ainda ouvindo o som de suas pantufas. Ele ainda não havia feito um tour pela casa, mas seguiu pelos corredores com facilidade, como se tivesse andado por eles a vida toda. Não se lembrava se um dia já havia sentido uma leveza como aquela.

Ele encontrou Alina sentada em uma poltrona estofada vermelha no meio de um solário adorável com visão para o pântano. Dali, tão tarde, dava para ver milhares de vagalumes planando acima da água e por entre as folhas dos salgueiros, o coaxar dos sapos e a cantoria dos grilos criando um espaço quase fora do tempo e da realidade ali. No céu, estrelas se uniam em constelações perfeitas, e Stiles quase podia ver o fio que as conectava.

— Sente-se, vamos conversar um pouco. — Alina indicou a outra poltrona, bem em frente à dela, separadas somente por uma mesinha de ferro fundido e vidro colorido. Em outras circunstâncias, Stiles poderia ter ficado preocupado em ser chamado para conversar no meio da noite, mas não conseguia sentir nada além de familiaridade em seu peito quando se sentou de frente para Alina, sabendo em seu interior que ela não queria nada além do melhor para ele. — Como você está?

Stiles pensou na pergunta por um momento, suas extremidades ainda vibrando com o calor daquela noite, com aquele sentimento de pertencimento de tirar o fôlego: — Bem. Acho que… Muito melhor do que me sinto em muito tempo.

— Você passou por muita coisa recentemente — Alina comentou levemente, mas havia algo mais pesado por baixo da superfície. — Vejo isso na sua alma. Um vazio, um ponto escuro por baixo de toda a luz.

Stiles ficou frio por dentro, sua mente correndo à mil por hora. O que ela podia ver dentro dele? Ela poderia dizer tudo que havia acontecido? Poderia ver que ele era tudo menos confiável? Iria expulsá-lo então, logo depois que ele teve um gostinho do que poderia ter?

— Céus, garoto, se acalme! Você não está com problemas nem nada! — Ela foi rápida em acrescentar, certamente percebendo o quão pálido ele havia ficado — Não vou te mandar embora, só preciso entender o que causou isso para poder te ajudar. Você pode confiar em mim. Em todos nós. O que aconteceu, Mieczyslaw?

Ele não queria contar à ela. Não queria que ela soubesse. Não queria que ninguém soubesse.

Você sabia que nunca poderia ter isso, Stiles, a voz de Alisson sussurrou, risonha e maliciosa de uma forma que nunca tinha sido em vida.

Mas o que ele poderia fazer? A verdade era o mínimo que devia à Alina se esperasse viver sob seu teto, aprender com ela.

Então ele contou pra ela – contou tudo, como Scott foi transformado, como sua alma ficou vulnerável após o ritual para encontrar os sacrifícios de Jennifer Blake, como isso abriu uma porta dentro dele e como o Nogitsune o invadiu e destruiu sua vida. Como ele matou Alisson, e então tudo que se seguiu até ele fugir como um covarde, sem coragem de encarar qualquer outra pessoa em sua cidade natal uma última vez.

Por um momento, Alina não disse nada, apenas o encarou com olhos espertos e cheios de consideração, o analisando com calma: — Sabe, — Ela começou, se ajeitando em seu lugar, não parecendo mais pronta para mandá-lo embora do que pareceu antes de seu relato — Eu senti o despertar de muitas Centelhas ao longo da minha vida, Mieczyslaw, e é da nossa natureza buscar comunhão. Toda vez que uma de nós surge no horizonte, as outras sentem essa atração, essa necessidade. Nascemos amando uns aos outros, e sei que você sente isso também, comigo, com Devi e James. Como uma conexão instantânea, uma compreensão profunda e mística. — Ela sorria de uma forma que acalmou o coração de Stiles — Nossas centelhas reconhecem umas às outras não apenas como iguais, mas como irmãs, e é natural formarmos constelações muito rapidamente quando nos juntamos.

— Constelações? — Ele perguntou, embora não soubesse onde ela queria chegar com tudo aquilo.

— É como se chama a união entre Centelhas. — Alina explicou, cruzando as mãos enrugadas e elegantes no colo. Suas unhas pintadas de vermelho — Bruxas tem covens, lobisomens tem matilhas, nós temos constelações. Fomos feitos para isso, para comunidade, para brilharmos juntos. No passado, muito tempo antes de eu nascer, haviam muito mais Centelhas do que existem hoje; nossa espécie estava em todo lugar, ajudando na manutenção dos ciclos da magia e da natureza, realizando desejos, formando constelações de tamanhos inimagináveis. Universos inteiros, uma rede sem fim.

Stiles tentou imaginar isso, um mundo cheio de luz, uma conexão como a que sentia com Alina, Devi e James multiplicada por mil.

— Hoje em dia somos uma espécie ameaçada de extinção. — A voz de Alina era suave, a voz de uma pessoa que há muito havia aceitado essa realidade.

Stiles sentiu um arrepio gelado na espinha, se lembrando da conversa que teve com Devi no esconderijo naquele primeiro dia: — Por causa de Caim, não é?

Alina estremeceu um pouco também: — Sim, por causa de Caim, mas não apenas por causa dele. Demônios são criaturas feitas de escuridão, tudo que querem é devorar nossa luz, e Caim é o pior de todos, com certeza, mas ele não é o único perigo para nós lá fora, no mundo. Eu preciso que você entenda isso, Mieczyslaw. O que temos aqui, não no pântano, mas em nossas mãos, essa conexão, esse querer, é a coisa mais importante do mundo. A constelação é tudo em um mundo que nos caça, nos devora e nos impede de confraternizar com nossos pares. — A seriedade em seus olhos era firme, a coisa mais real com a qual Stiles já havia se deparado — Eu senti no momento em que sua luz surgiu no horizonte, garoto. Sabia que você seria nosso, e que seríamos seus.

Stiles sentiu um nó na garganta, a queimação familiar nos olhos indicando lágrimas novas.

— Seu lugar é aqui, não tenho dúvidas quanto à isso. — Ela estendeu uma mão, segurando a dele com firmeza. A eletricidade de seu toque quebrou qualquer barreira que ele ainda pudesse ter, e as lágrimas caíram como uma cascata sem fim. Quando ela se levantou e o abraçou firmemente contra o peito, não precisando dizer mais nada, ele pensou que tudo poderia ficar bem um dia.



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Os dias passavam rapidamente no pântano, mesmo que as horas parecessem se arrastar como mel ao seu redor, e Stiles se adaptou facilmente à rotina da casa; acordar agora não estava mais inerentemente ligado ao toque estridente de seu alarme – que era sempre o sinal antes de abrir os olhos e ser recebido por uma casa mortalmente silenciosa ou um quarto de motel sem personalidade – mas aos resmungos de James e a cantoria desavergonhada de Devi enquanto tomava banho. Alina sempre reclamava do barulho, dizendo que era velha demais para ter que acordar tão cedo, mas sempre se juntava à eles na cozinha para o café da manhã. As panquecas de Stiles rapidamente entraram para a lista de pratos favoritos da casa, e todos pareciam felizes com a nova divisão de tarefas agora que havia um novo morador na casa.

Nada mudava muito naquele espaço liminar que era a casa e o pântano; as manhãs eram feitas para preguiça, serviço doméstico, música ambiente e jogos de cartas; o almoço era sempre caótico e delicioso, com todos eles querendo contribuir com algum prato mirabolante ou receita nova, e as tardes eram aproveitadas estudando sob a tutela firme e instigante de Alina.

As aulas eram muito mais do que Stiles esperava em um primeiro momento, tendo Deaton como única referência de mentor até então, o que, olhando agora, realmente não queria dizer muita coisa; Alina era uma professora exigente, mas infinitamente paciente, versada em diversas áreas da magia, e cada aula com ela era ter um novo mundo de possibilidades sendo aberto diante de seus olhos. Stiles nunca soube que a magia podia ser tão bonita e tão interessante, muito mais do que aumentar seu estoque de cinza da montanha e sacrifícios de sangue em tocos de árvores antigas. Ele também nunca pensou que pudesse ser o agente dessa magia, seu manipulador e criador.

Depois de tardes de estudo constante, a noite chegava com uma brisa gelada, às vezes com uma chuva leve, e o jantar era tão animado quanto o almoço. Os momentos vendo filmes antigos com todos amontoados na sala de estar preenchiam algo fundamental dentro de Stiles, assim como ler no solário com James, meditar com Alina no jardim ou pintar as unhas com Devi em seu quarto.

Era tão diferente de Beacon Hills, onde ele sempre precisou lutar para se encaixar nos menores espaços; sua casa, a escola, a matilha. Ele ainda não conseguia entender completamente como aquelas pessoas, naquele mundo lindo e mágico no pântano, puderam abrir espaço para ele tão facilmente, o fazendo parte daquele ecossistema sem hesitação, enquanto as pessoas que conhecia praticamente a vida toda ainda o tratavam como um estranho na maioria dos dias. De alguma forma, os últimos seis meses tornaram todos os seus antigos relacionamentos mais amargos do que antes.

Ele simplesmente pertencia ali, de uma forma que ele nunca pensou que fosse possível.

É coisa de Centelha, Devi havia dado de ombros quando ele confessou pela primeira vez esse sentimento que vinha o dominando, esse conforto, esse pertencimento caloroso, repetindo a mesma verdade que Alina lhe disse naquela primeira noite, fomos feitos para ficar todos juntos, Mick, somos uma constelação.

Essa rotina, essa segurança, o embalou tão completamente que ele quase conseguia esquecer tudo que havia sido deixado para trás, quase conseguia ignorar aquele puxão fraco mas ainda presente, tentando atraí-lo para a boca do inferno novamente.

Quase.

Ele quase conseguia fingir que não era assombrado todas as noites pelas lembranças e pelas vozes das pessoas que ele machucou, que ele abandonou em favor de si mesmo, mas que nunca o quiseram para começo de conversa. Pessoas que agora pertenciam ao antes da sua vida. Seu pai, tia Melissa, Scott, Lydia, Isaac, Boyd, Erica, Derek.

Allison.

Mas tudo estava perfeito assim; a cada dia que passava ele se tornava um pouco mais ele mesmo, a magia dentro dele reagindo tão positivamente à magia em seus novos amigos e mentora que ele se sentia florescer, mais atento, saudável e tranquilo do que nunca, como se ele tivesse nascido em um mundo fora do eixo e só agora pudesse ver como era existir em seu habitat natural. Já fazia meses que não tomava nenhuma dose de Adderall, e suas sessões particulares com Alina para restaurar o que o Nogitsune bagunçou em sua alma estavam realmente dando resultados.

Tudo finalmente parecia estar se ajeitando ao seu redor. A voz de Alisson parecia ficar mais distante a cada dia, escondendo com ela toda a culpa e inadequação, e quase não foi difícil contar toda a história novamente, dessa vez para Devi e James.

Tudo estava bem.

Então eles sentiram uma nova Centelha.



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Seis meses haviam se passado desde a chegada de Stiles quando eles sentiram a outra Centelha..

Ele não tinha entendido o que Alina queria dizer com necessidade quando lhe contou o que se sentia quando uma outra Centelha despertava até que ele próprio sentiu. Não era o mesmo de encontrar de fato uma Centelha; não a eletricidade e a energia pura de entendimento e afinidade; sentir uma Centelha à distância era como ouvir uma tempestade crescendo no horizonte, sentir o cheiro de ozônio pesado de um desastre eminente, seguido de um sentimento inquietante que dizia vá, vá, vá.

Algo dentro dele, antigo e primitivo, sabia exatamente qual direção seguir para encontrar a Centelha perdida, e havia um terror surdo que vinha com a simples ideia de não ir encontrá-la, uma necessidade de proteger que o deixou tonto.

— Somos os mais próximos. Vamos sair amanhã. — Devi murmurou, sua voz soando muito alta em meio àquele silêncio contemplativo e incomum que caiu a mesa da cozinha, onde eles estavam jantando até alguns momentos atrás. — Eu e Jamie podemos pegar uma vela vermelha para ir para nosso ponto seguro mais ao norte pela manhã, assim que o sol nascer, mas precisamos de novos sigilos de proteção.

Stiles largou de vez seus talheres, olhando ao redor da mesa. Muitas coisas haviam mudado naqueles últimos meses, mas Stiles nunca gostou de ser deixado de fora dos problemas e isso não mudaria tão cedo: — Eu posso ir também.

Devi o olhou com cuidado: — Sei que você quer ajudar, Mick, mas é melhor se você ficar aqui. Sair é sempre perigoso, e você ainda está se ajustando. Vão ser só alguns dias.

— Posso sentir que está longe, não vão ser só uns dias. — Stiles lutou, odiando a ideia de ser deixado ali, impotente como se sentiu tantas vezes em sua antiga vida. Aquela urgência em seu peito enquanto sentia a Centelha perdida parecia apertar seu coração.

— Vamos ficar juntos o tempo todo, Mitch. Eu já estou muito melhor em usar minha centelha de qualquer forma. — James tentou tranquilizá-lo, daquele jeito despreocupado de sempre, mesmo que no fundo Stiles soubesse que ele estava tão inquieto quanto todos eles. — Vai dar tudo certo.

Afinal, os últimos meses haviam ensinado à Stiles mais do que controle sobre seu poder recém descoberto e possibilidade de conexão interpessoal. Os últimos meses também o ensinaram que o mundo era um lugar muito perigoso para Centelhas, e que Caim estava lá, pronto para devorar cada um deles.

— Vocês não sabem disso. — Ele se voltou para Alina então — Eu ouvi você falando no telefone com o Lucius esses dias, sobre como muitos dos demônios do Caim migraram pros Estados Unidos recentemente, e que ele ainda não sabe o porquê. Não é hora de dividir e conquistar.

Alina suspirou, seus dedos se contorcendo na ânsia familiar por um cigarro: — Eu sei disso, garoto, mas Devi tem razão, você ainda não está pronto pra voltar pro mundo lá fora.

— Você disse esses dias que eu estou avançando nas nossas aulas muito mais rápido do que o normal. Tenho controle suficiente sobre minha centelha para ir com eles, e tenho a maioria dos feitiços e rituais da nossa biblioteca memorizados. — Stiles se deixou ser um pouco mesquinho, e Alina só tinha a si mesma para culpar; ela odiava que seus pupilos abaixassem a cabeça quando discordavam de algo, e tirou essa hesitação de Stiles à força até que ele se sentisse livre para discutir o quanto quisesse. — Se isso é por conta do Nogitsune, você sabe que os resquícios dele não passam de uma manchinha cinza agora. Eu estou bem!

— Não só de magia se faz uma Centelha, Mieczyslaw, nem só de controle e conhecimento. — Alina se inclinou para frente, severa — O problema não é a marca do Nogitsune, garoto, o problema é que te falta equilíbrio. Você ainda está hesitante, dividido, e não posso deixá-lo solto por aí desse jeito.

Dividido? Dividido com o que? — Stiles tentou se controlar, mas seus sentimentos estavam muito mais intensos ultimamente também. Alina disse que era apenas um efeito colateral de estar perto de outras Centelhas por tanto tempo, que era comum que eles alimentassem o fogo uns dos outros, tanto para o bem quanto para o mal, mas ainda era enervante quando suas emoções ameaçavam explodir daquela forma.

— Dividido com sua antiga vida. — Alina não era do tipo que tinha piedade quando o assunto era dizer a verdade. Nada de açúcar ou floreios, embora nunca fosse desnecessariamente cruel — Sei que você ainda sente o puxão da ligação com seus lobos.

Aquela era, aparentemente, uma situação que exigia um pouco de crueldade.

Aquilo fez Stiles recuar, insultos e desculpas entalando em sua garganta; ele não queria pensar na matilha de forma alguma, mas principalmente não para admitir que não havia os superado completamente. Parecia fraqueza. Parecia patético.

Seis meses – mais de um ano, se ele contasse toda a tragédia do Nogitsune – e a lembrança do horror em seus rostos ainda assombrava seus pesadelos.

Na maioria das noites, quando ele estava sozinho em seu novo quarto, que era tão lindo e encantador quanto todo o resto da casa, se sentindo contente e saciado pela presença de todas as pessoas maravilhosas com quem vivia, a felicidade impune era cortada pela culpa, pela voz sussurrada e distante de Allison, e então aquele puxão.

Sempre, sempre, não importando o quanto ele tentasse não pensar.

Ele sabia que ainda havia um resquício de sua ligação com o bando, é claro que sabia; puído, fino e decrépito, mas ainda lá, o lembrando de seu passado toda vez que o silêncio do pântano o envolvia – era saudade, mágoa e arrependimento.

E isso o estava segurando, essa confusão de sentimentos e vontades, o impedindo de se entregar totalmente à nova vida que ele queria de forma tão desesperada, mesmo com Alina, Devi e James logo ali, de braços abertos para ele.

Aquela casa no pântano, com aquelas pessoas fantásticas, com aquele poder escaldante queimando dentro dele – esse era o futuro que ele queria.

Alina sabia disso também. Alina, James e Devi – todos eles entendiam como ninguém nunca tinha sido capaz. No final, somente uma Centelha é capaz de entender o tamanho monumental daquele tipo de vontade.

Respirando fundo, Stiles tomou uma decisão, uma decisão que partiria seu coração mas que não era menos necessária por isso: — Como faço para me livrar disso?

Alina o olhou com uma tristeza antiga, um carinho que ele vinha aprendendo a reconhecer cada vez mais: — Você quer realmente cortar os laços com sua antiga matilha, garoto? Não tem volta pra esse tipo de coisa.

Céus, ele sequer havia feito parte daquela matilha um dia? O que importava realmente? Ele não podia ficar a vida toda se agarrando em um sonho que nunca foi real para começo de conversa.

— Não posso carregar esse vazio pra sempre. Não posso. — Ele sentiu as lágrimas em seu rosto, e então a mão quente de Devi na sua, e o aperto firme de James ao redor de sua cintura enquanto ele aproximava suas cadeiras. — Você consegue fazer hoje? Se eu não estiver mais dividido assim, vou poder ir com eles amanhã?

Todos eles olharam para Alina com expectativa, e ela pareceu considerar por um longo momento: — Faremos o ritual essa noite. — Ela concordou, soltando uma corda apertada que Stiles mal havia percebido que estava enrolada dentro de seu peito, comprimindo seus pulmões — Se você estiver bem o suficiente amanhã, permitirei que se junte ao resgate da nova Centelha.

 

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Chapter 5: Supernova

Summary:

Stiles, Devi e James vão atrás de uma nova Centelha

Chapter Text

“E chega o momento enfim; vou queimar, e o mundo todo arderá comigo”




Stiles acordou pouco antes do nascer do sol, sentindo que havia ido dar um passeio no inferno antes de ser puxado de volta para o mundo dos vivos por mãos pouco gentis.

— Velhota, ele tá acordado! — Ele ouviu o que só podia ser Devi chamando Alina enquanto a sala de rituais no sótão ganhava forma e cor novamente ao seu redor. Ele estava deitado no sofá que ficava logo abaixo da janela mais alta, e viu as estrelas desaparecendo no céu violeta antes de qualquer outra coisa.

— Como você está se sentindo? — Aquela era Alina, com certeza, sua mão quente e enrugada tocando sua testa para checar a temperatura.

— Uma merda… — Ele sussurrou, tentando se situar novamente dentro do próprio corpo. Tudo doía, não de uma forma aguda e profunda como havia doído naquela noite, quando Alina finalmente fez o ritual de corte, mas doía como se ele tivesse passado o dia anterior inteiro correndo pela própria vida, os músculos doloridos da tensão e do esforço.

— Era esperado — Alina parecia aliviada ainda assim, seu rosto finalmente entrando em foco suficiente para ele encontrar conforto em seu olhar cuidadoso — Tudo correu bem, sua ligação com sua antiga matilha foi cortada.

James apareceu logo em seguida, ajudando Stiles a beber um copo de água gelada enquanto Devi o ajudava a se apoiar contra o braço do sofá: — Você gritou por horas, Mitch, pensei que você ia morrer de dor. — Os olhos de James pareciam mais rosados do que o normal, e Stiles estendeu a mão para segurar a dele esperando confortá-lo um pouco.

— Eu tô bem, Jay, é sério… — Ele sussurrou, notando só agora como sua voz estava rouca. Notou também que algo mais profundo havia mudado, um peso, um puxão que já não existia mais. Ele se virou para Alina com um aperto no peito, um vazio de um tipo que nunca tinha sentido antes. — Eles… Eles vão achar que eu morri? — Ele perguntou, não sabendo bem o que queria ouvir. Por um lado, tudo seria mais definitivo se eles pensassem que Stiles estava morto, mais seguro, uma boa base para um recomeço sem amarras, mas ele não queria que seu pai achasse isso, apesar de tudo.

— Não, pode ficar tranquilo quanto à isso, garoto. O ritual deixa bem clara a parte do corte que é intenção. — Alina garantiu — É como um corte de faca, eles vão sentir o metal.

Stiles se perguntou o que eles pensariam, se eles perceberiam o corte ou se apenas o ignorariam como ignoraram tudo sobre Stiles nos últimos tempos. Talvez sentissem alívio, embora o pensamento machucasse.

— Certo… — Ele concordou, jogando as pernas para fora do sofá. O suor havia secado contra sua pele durante a noite, e ele precisava urgentemente de um banho — Não temos tempo à perder. Tudo pronto para a viagem?

Devi fez um carinho suave em seu cabelo: — As velas vermelhas estão quase 100% carregadas, infelizmente não consegui fazer com que uma única vela leve mais do que três pessoas ainda, mas vamos levar várias, então não vai ser um problema. Vamos partir com o nascer do sol como o planejado. Já arrumamos suas coisas. — Ela garantiu, e ele agradeceu com um aperto ainda um tanto trêmulo na mão dela. — Agora vai tomar um banho, vamos preparar algo pra comer no caminho.

Ele desceu as escadas do sótão sentindo-se diferente de todas as formas possíveis, sabendo que havia finalmente cortado qualquer conexão que pudesse ter com Beacon Hills.



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A vela vermelha de Devi os levou da casa no pântano até um esconderijo seguro do outro lado do país, perto o suficiente da fronteira entre Washington e a Columbia Britânica para eles perceberem que o chamado da Centelha os estava guiando para fora do país.

Eles alugaram um carro no nome falso de Devi, e atravessaram a fronteira com uma história sobre serem estudantes universitários indo aproveitar uma semana de recesso na província de Alberta, e a partir daí seguiram pela costa Canadense por cerca de dois dias e meio até chegarem à fronteira entre o Canadá e o estado do Alasca.

O puxão dizia que eles precisavam continuar, se embrenhando ainda mais nos confins congelantes de Southeast Fairbanks, onde tudo era neve e cidadezinhas cinzentas.

— Não fui feita pra um clima tão frio… — Devi resmungou do banco do passageiro, aumentando novamente o aquecimento do carro popular que haviam alugado. A coisa já tinha visto dias melhores, mas servia ao seu propósito. — Desse jeito, vamos acabar tendo que praticar mergulho no Oceano Pacífico pra encontrar essa Centelha.

— Não seja tão dramática. — James bufou, se enrolando ainda mais em seu casaco pesado. — Está perto, posso sentir.

— Será que ela está bem? Já faz quase três dias que ela despertou. — Stiles murmurou, batucando os dedos no volante de forma impaciente, evitando puxar novamente o colar com contas de pedra de lua em seu pescoço, tentando se consolar com a ideia de que o amuleto só escondia sua centelha daqueles que não eram como eles. Pelo que Lucius dissera algumas semanas atrás, a onda de demônios inundando a América do Norte nos últimos meses não havia se estendido tão ao norte assim, mas nada nunca era uma garantia, e não ajudava o fato de a Centelha ter acabado de despertar, diferente de Stiles quando deixou a proteção do Nemeton com sua luz já formada. Uma Centelha recém desperta, com seus meros quatorze anos, não era bem motivo para cautela entre mercenários e sequestradores.

— Fica tranquilo, Mick, tenho certeza que está tudo bem. Você sabe que nós sentimos a energia dela de forma muito mais forte do que qualquer outra criatura, demônios inclusos. — Devi tentou tranquilizá-lo, mas ele sabia que ela estava nervosa também. O chamado estava os levando muito mais longe do que pensaram inicialmente, afinal, e o tempo parecia correr ao redor deles. — Se já estão procurando por ela, vão precisar vasculhar boa parte do Alasca para encontrá-la, e até lá já vamos ter levado ela pra casa.

Stiles só esperava que ela estivesse certa em seu otimismo contagiante.

Nos últimos meses, Stiles parou de esperar coisas ruins, ou pelo menos parou de ver coisas ruins como a primeira possibilidade a se considerar; era fácil esquecer que o mundo fora do pântano era faminto e injusto – quando saiu de Beacon Hills, sabia disso intimamente, tendo sido mastigado, engolido e vomitado por um monstro terrível, e então deixado para apodrecer no silêncio do que restou. Nenhum Nemeton o protegeu desse destino, nem protegeu Alisson, e ele devia se lembrar disso, de como nenhum escudo era infalível, mesmo quando se sentia tão seguro rodeado por sua constelação.

O despertar daquela Centelha ainda desconhecida o lembrou disso, do perigo, do medo; sentia essa urgência surda no peito, se insinuando bem ao lado do vazio ainda pouco familiar do corte recente. Pela primeira vez em meses, se sentiu inquieto, ansioso além de qualquer técnica de meditação, a necessidade de proteger aquela luz tão jovem e solitária o fazendo acelerar o carro mesmo nas ruas congeladas por onde passavam.

Nos últimos dias, viajando pelo Canadá, ele reconheceu em si mesmo outra coisa que Alina havia lhe contado em seu primeiro dia no pântano; algo dentro dele simplesmente sabia que aquela Centelha ia ser parte da constelação deles, sua visão perfeitamente clara agora que sua alma não estava dividida entre o agora e o passado.

Com a visão clara, veio também a certeza de que algo sombrio se insinuava no horizonte, e que essa coisa parecia faminta.



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A Centelha estava em uma cidadezinha sem nome nos confins do Alasca, um lugar que mal parecia habitado para começo de conversa.

Havia apenas uma rua principal, onde casinhas antigas e com janelas escuras se alinhavam como túmulos abandonados em um cemitério, a neve branca cobrindo tudo, enquanto uma escuridão carregada de pressentimentos ruins crescia de forma perigosa com o cair da noite – era o tipo de escuridão que só existe na natureza selvagem, intocada pelo homem, ainda perfeita para ser o esconderijo de predadores ferozes.

Stiles sentiu um arrepio no momento em que cruzaram a primeira casa do lugar, sentindo olhos invisíveis o encarando de todos os lados. O vento uivava de forma agourenta, mesmo com as janelas do carro fechadas, e tanto Devi quanto James se contorceram junto com ele, igualmente nervosos.

— Esse lugar é sinistro… — Devi murmurou, tensa enquanto puxava a mochila caída aos seus pés para o colo, tirando de lá três velas vermelhas ainda intactas. Ela vinha fazendo experimentos cada vez mais ousados com as velas desde que Stiles se tornou um morador permanente da casa no pântano. Ele fez o possível para ajudá-la com suas longas sessões de pesquisa entre seus próprios estudos e rituais de purificação de alma com Alina, a ponto de saber perfeitamente a magia por trás do projeto dela. Stiles podia dizer com toda a certeza do mundo que Devi era uma gênia tanto quanto uma cientista maluca, e na maioria dos dias ele achava que não havia ideia no mundo para a qual ela não pudesse dar vida com sua magia. Agora ele tinha um conhecimento impressionante sobre criações de objetos mágicos e sobre as estruturas mágicas de Velas da Babilônia, peças raras de magia muito antiga e muito delicada que eram tão difíceis de encontrar que Stiles entendia o apelo de tentar criar algo parecido com as próprias mãos. De qualquer forma, as velas vermelhas de Devi estavam quase no ponto, e agora Stiles só sentia uma leve náusea toda vez que as usava, e embora elas ainda estivessem limitadas à pontos de pouso específicos, eram mais do que perfeitas para o que precisavam. — Aqui, cada um fica com uma, e com um isqueiro. Se tivermos qualquer problema, a pessoa mais próxima pega a Centelha e foge. Nos encontramos no ponto de encontro.

James fez uma careta, mas pegou a vela de qualquer forma: — Isso se acharmos ela, né? Parece que esse lugar não vê uma alma viva há um bom tempo.

Stiles batucou os dedos contra o volante, deixando que a gravidade da Centelha o guiasse pela estrada escura e vazia: — O que será que ela está fazendo aqui, afinal? — Ele murmurou, sentindo como se não houvesse mais nada além daquela rua principal; o mundo acabaria em um penhasco sem fundo se ousasse cruzar o limite imposto pelo último prédio baixo da pequena vila, ele tinha certeza.

Mas antes que qualquer um pudesse especular junto com ele, houve uma mudança no fio que os ligava à Centelha desconhecida, como uma ondulação repentina sobre um lago parado. Stiles pisou no freio, e o carro parou suavemente, apenas o farol branco iluminando a rua coberta de neve antiga à frente. Em um movimento rápido, ele estendeu a mão e desligou a luz, deixando que eles mergulhassem naquele breu selvagem, apenas com a lua cheia brilhando no céu.

Seu coração batia rápido no peito, um pássaro frenético tentando escapar da gaiola de suas costelas enquanto sua visão se estreitava para focar somente no final daquela rua, para as árvores esqueléticas e nuas que formavam a orla de um bosque. Estava vindo direto pra eles.

Stiles se moveu, e Devi e James se moveram com ele. Em segundos os três estavam fora do carro, mochilas nas costas, casacos mal fechados para os proteger do frio. Ali, na floresta, estava a luz da Centelha, ondulando a quietude da realidade em tons de roxo e branco gelado. Como um só organismo, eles começaram a correr, atraídos pelo chamado ensurdecedor e cheio de medo.

O mundo parecia se fechar ao redor deles, mas tudo se acalmou no segundo em que suas luzes se encontraram. Era uma garota, a Centelha, seu corpo baixo e magro se chocando contra o deles como uma bola de demolição. Stiles e Devi a envolveram com os braços, e James sustentou todos eles, impedindo que caíssem no chão gelado. A garota tremia, seu casaco pesado rasgado em vários pontos, e seu cabelo escuro estava uma bagunça completa.

— Está tudo bem, está tudo bem agora… — Stiles murmurou, sentindo que um pedaço até então vazio da constelação deles finalmente havia sido preenchido.

Mas o perigo não havia passado; o que sentia era urgência, não alívio.

A garota olhou para eles, sua respiração visível no ar, seus olhos monólitos e escuros arregalados impossivelmente: — Ele está vindo. — Ela ofegou, assustada, mesmo que sua centelha brilhasse com desafio e determinação.

Foi diante das palavras delas que Stiles sentiu.

Foi como se, de repente, a escuridão inóspita da noite ganhasse uma qualidade faminta, fazendo seu coração acelerar ainda mais, todos os seus instintos dizendo que ele precisava pegar sua constelação e correr.

Como uma presa, ele pensou, já tendo sentido aquele pânico muitas vezes antes. O sentiu quando estava diante de Peter Hale e sua loucura desenfreada, e então quando se viu preso pelos olhos reptilianos do Kanima, e então frente à frente com os sorrisos cheios de caninos afiados da alcateia alfa. O sentiu em seus pesadelos, diante do Nogitsune.

Foi como se a noite ganhasse dentes, e ele sabia que o que quer que estivesse lá, queria devorá-los.

— A vela… — Ele sussurrou, sem conseguir desviar o olhar da floresta, que parecia agora um ninho de monstros — Devi… Devi, a vela, acende a vela, agora!

Devi se moveu, parecendo tão aterrorizada quanto o resto deles, pegando a vela vermelha e o isqueiro do bolso, suas mãos tremendo tanto que quase os derrubou, mas antes que pudesse acender o pavio, uma sombra vinda de uma das ruas adjacentes à rua principal se lançou sobre eles.

Tudo que Stiles pôde fazer foi se jogar no chão, levando a garota com ele. Devi e James caíram para o outro lado, se apoiando um no outro. Bem à frente deles, o vulto ganhava forma, se erguendo. Parecia humano, pelo menos à primeira vista, mas ele percebeu rapidamente que aquela coisa estava longe de ser humana.

Era uma sombra, envolta por um corpo enganosamente humano e masculino, alto e branco, com cabelos loiros sujos e dentes tortos. A coisa por baixo da pele pálida era como uma névoa escura onde deveria haver uma alma.

Um demônio.

— Parece que tirei a sorte grande… — O demônio se virou para eles, com um sorriso largo e cruel que mostrava todos os dentes. Seus olhos escuros e opacos os rastreando com uma curiosidade perigosa  — Então… qual de vocês é o vermelho?

Um medo gelado fez Stiles hesitar por um segundo, sabendo que o demônio estava falando dele. É claro que a criatura não podia ver a luz deles, não com os amuletos de Alina ainda em seus pescoços, mas ele sabia que um deles tinha uma centelha vermelha, e parecia particularmente predatório.

O que ele queria com Stiles, afinal?

Devi e James se levantaram, tensos, e Stiles se obrigou a fazer o mesmo, puxando a garota junto com ele e se colocando na frente dela sutilmente. Ela não tinha nenhuma proteção, então o demônio sabia que a luz dela não era vermelha, mas isso não mudava o fato de que ele era um predador, e que a garota agarrada ao seu braço era jovem demais para tudo aquilo.

— Ah, não fiquem tão assustados! — O demônio riu, erguendo uma sobrancelha para eles, as sombras por baixo da casca humana se revoltando como tentáculos — Vamos lá, Caim está atrás de uma Centelha vermelha há alguns meses, está ficando louco com isso. Sei que deve ser algum de vocês. Por que vocês não me entregam o culpado e quem sabe… eu deixo o resto ir embora…

Devi soltou um som de escárnio, algo entre uma risada amarga e um rosnado: — Acho que você pode ir se foder!

— Ei, isso não é muito educado… — O sorriso do demônio pareceu crescer impossivelmente, como se testasse sem qualquer cuidado a capacidade dos próprios lábios. Parecia quase com dor. E de repente, Stiles teve uma realização que deveria ter tido no momento em que aprendeu sobre a existência daqueles monstros, mas sobre a qual não pensou até aquele momento terrível; aquele não era o corpo do demônio, aquilo era uma pessoa possuída. — Vocês Centelhas, sempre tão leais umas às outras, mas não tem problema… Vou descobrir de uma forma ou de outra, quando arrancar de vocês o que quer que estejam usando para se esconder. Aposto que Caim nem vai se importar com o que eu vou fazer com o resto de vocês se eu deixar o vermelho inteiro.

O demônio deu um passo à frente, seus olhos escuros como dois buracos negros ameaçando devorar a luz deles, e Stiles sabia que precisava fazer alguma coisa. Rapidamente ele atravessou o pequeno espaço até o resto de sua constelação, segurando a mão da Centelha ainda agarrada em seu braço e a entregando para James.

— Mick… — Devi sussurrou, exasperada, e agarrou seu braço com força quando ele tentou passar por ela. Seus olhos brilharam com uma súplica, um apelo silencioso que perguntava claramente o que diabos ele estava pensando em fazer.

— Tira eles daqui, eu vou estar logo atrás de vocês. — Ele garantiu, sua voz soando surpreendentemente firme. Ele não se sentia firme de forma alguma, não sob aqueles olhos mortos e predatórios, não com sua constelação em perigo, mas a vela só tinha capacidade para levar três criaturas vivas por vez, e ele não ia arriscar a vida de nenhum deles em um teste suicida — Confia em mim. — Ele pediu, porque alguns meses atrás ele nunca teria ousado, nunca teria exigido esse tipo de coisa de outra pessoa quando nem ele próprio podia confiar em si mesmo, mas as coisas haviam mudado, ele havia mudado.

Devi apertou seu braço com mais força, seu medo chegando até ele em ondas como sua luz, mas junto desse medo haviam tantas outras coisas: carinho, confiança, amor.

O demônio riu, dando mais um passo, o som perverso ecoando pela rua vazia como a própria morte. Stiles nem podia começar a imaginar que tipo de monstro Caim devia ser para controlar criaturas como aquela.

— É você, o vermelho? — O monstro bufou, divertido — O que está pensando, estrelinha? Acha que consegue me enfrentar? Ganhar tempo pros seus amiguinhos? Não vou cair nos seus truques.

— Não é um truque. — Stiles se soltou de Devi, se segurando para não olhar para trás. Ela sabia o que tinha que fazer. Em um movimento rápido e impulsivo, ele levou a mão até a nuca e retirou o colar de proteção, apesar do protesto abafado de James.

Sua luz, vermelha e laranja, quente como fogo, iluminou a neve branca e imaculada, estendendo suas chamas e afastando o pior da escuridão. Algo nos olhos opacos e mortos do demônio brilhou, faminto, e Stiles disparou para uma rua lateral no momento em que ouviu o isqueiro de Devi sendo aceso. Às suas costas, o calor e o clarão da vela vermelha engoliu as figuras de Devi, James e da garota, deixando apenas a lembrança de suas presenças para trás enquanto eles eram transportados para o esconderijo em Washington.

Stiles não olhou para trás, apenas continuou correndo, sentindo o demônio em seu encalço. Não havia como despistá-lo, não naquele lugar e não com sua centelha à mostra, mas ele não precisava despistá-lo, ele só precisava de alguns segundos para acender a vela em seu bolso.

Ele virou uma esquina, pulando uma cerca quebrada e seguindo a toda velocidade para o único lugar que parecia capaz de lhe oferecer qualquer cobertura; a floresta cresceu ao seu redor, e ele não parou quando atravessou sua orla, desviando rapidamente de troncos caídos e galhos afiados. Sua coordenação motora havia melhorado muito desde que conheceu sua constelação, e Alina confirmou que era normal se sentir fora do eixo sem outras Centelhas por perto; falta de atenção, ansiedade e paranoia pareciam perseguir luzes solitárias, mas já faziam seis meses que Stiles não era uma luz solitária – ele tinha uma constelação, uma família, e tudo dentro dele havia crescido ao redor dessa segurança, desse amor, dessa certeza.

Então ele continuou correndo, sua mão firme na vela vermelha em seu bolso, e ele estava puxando o isquieito com a outra mão quando sentiu um golpe forte contras as costas, que arrancou seu ar e o fez cair no chão.

Ele ofegou, rolando na neve e tentando se levantar, mas mal conseguiu se colocar de joelhos antes que o demônio estivesse sobre ele, chutando seu ombro e o lançando de volta na neve.

— Você achou mesmo que conseguiria fugir de mim? — O monstro riu, maldoso, e Stiles ofegou, tentando ignorar a dor latejante no ombro enquanto se arrastava para trás, tentando se afastar ao máximo da coisa. Ali o mundo era infinitamente mais escuro, e apenas o contorno difuso do demônio era visível sob a chama que queimava dentro de Stiles.

— Não achei que ia conseguir fugir… — Stiles grunhiu, tentando recuperar o fôlego depois de uma corrida tão desesperada, lentamente retirando a vela vermelha de seu bolso, mas quando tentou pegar o isqueiro do outro, sentiu o frio da realização cobri-lo.

Não estava mais lá.

O sorriso do demônio brilhou mesmo na escuridão: — Procurando por isso? — Ele ergueu o isqueiro de plástico colorido – vermelho, veja bem – com uma satisfação cruel — Não sei o que é esse brinquedinho de vocês, já que não se parece nem um pouco com uma Vela da Babilônia, mas não vou deixar você escapar assim, vermelho.

Stiles precisava pensar rápido.

Nas primeiras aulas de Alina no casarão, Stiles aprendeu muito sobre o que formava o poder de uma Centelha; vontade, sim, mas também todas as coisas às quais a vontade está sujeita. Era simples acender centenas de velas de uma vez com um simples comando de sua mente, desde que tivesse uma chama acesa ao seu alcance; era simples tornar seu corpo tão leve que poderia flutuar acima do chão, desde que pensasse nas propriedades do ar; era simples dobrar um punhado de cinzas da montanha quando elas já tinham essa propriedade natural.

Manipular matéria e energia era infinitamente mais fácil do que criar matéria e energia, ou pelo menos fazer isso de forma precisa e controlada o suficiente para não explodir à si mesmo e tudo ao seu redor.

Aquela era uma arte que Stiles definitivamente não dominava – droga, era uma arte que nem mesmo Alina havia dominado completamente em seus mais de sessenta anos de vida como Centelha.

Mas ele não tinha outra opção ali, então precisava pensar de forma racional. O processo físico por trás do fogo era simples; energia mais oxigênio mais combustível, gerava fogo – sua centelha era a faísca perfeita, e o pavio da vela um combustível tão bom quanto qualquer outro, mas assim eram as árvores ao seu redor, e suas roupas, cabelo e corpo. Era impossível saber a qual dessas coisas sua centelha se agarraria, mas situações extremas pedem medidas extremas.

— Isso é engraçado… — Stiles murmurou, tentando visualizar a chamada no pavio da vela, tentando manter sua imaginação longe de um incêndio infernal — Deveria ser mais fácil, considerando do que minha centelha é feita…

— Seja bonzinho e não tente nada estúpido, vermelho… — O demônio murmurou, se aproximando ainda mais.

Stiles não pôde evitar o sorriso que se abriu em seu rosto, assustado mas não menos enfurecedor, ele tinha certeza: — Sabe, normalmente é preciso muitos anos de treino e meditação para criar um elemento do zero. Uma gota de água, uma lasca de pedra, uma pequena chama… Você não está animado?

O demônio o olhou com uma nova cautela: — O que-?

— Você deveria estar animado. — Stiles bufou, sua respiração visível no ar gelado, seu interior queimando — Não quer ver o que acontece na minha primeira tentativa?

Os olhos do demônio se arregalaram.

Era agora ou nunca.

Stiles respirou fundo, olhou para o pavio branco da vela, sentiu a cera vermelha firme e fria contra seus dedos, e imaginou uma única faísca de sua centelha estalando, o ar ao seu redor fervendo, e então, o mundo todo ao redor dele explodiu em caos e luz.

 

𖤓

Chapter 6: ATO II

Chapter Text

Vazio



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Quando você olha muito tempo para um abismo, o abismo olha de volta para você” – Friedrich Nietzsche



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O MUNDO TODO.

VAZIO.

Chapter 7: Eclipse

Summary:

As consequências da partida de Stiles

Chapter Text

“A escuridão se aproximou, silenciosa e inevitável.”




— Stiles se foi.

A verdade disso era como uma mortalha pesada sobre a casa, o silêncio se estendendo como uma corda muito esticada, pronta para estourar a qualquer segundo.

Derek encarou o xerife, seus olhos já acostumados com a escuridão dentro da casa. Haviam camadas de poeira sobre os móveis, como se a sala de estar não fosse usada há um bom tempo, e o ar parecia viciado em seus pulmões, o cheiro de Stiles tão diluído em ausência que quase o sufocou. Derek não acendeu as luzes, e o xerife tampouco parecia preocupado com isso, sentando no sofá em frente à lareira apagada com a postura caída, os cotovelos apoiados nos joelhos, um copo quase vazio de conhaque na mão, esquecido.

— Como assim ele se foi? — A voz de Derek ecoou pela casa como um trovão, mesmo que falasse baixo, hesitante.

— Encontrei a carta na cozinha… — O xerife indicou o papel meio amassado sobre a mesinha de centro, seu olhar perdido em algum ponto vazio da parede atrás de Derek — Não sei quando ele foi embora, eu… — Ele franziu a testa, e o cheiro de sua tristeza cobriu todo o resto. Culpa, dor.

Derek hesitou por mais um momento antes de atravessar a passagem para a sala de estar. Sentia-se estranho, distante, talvez chocado com o absurdo daquilo tudo, a completa estranheza daquela ideia. Stiles, não mais ali. Pareceu impossível quando o xerife disse, mas a falta era inquestionável. Stiles não estava mais ali, embora ainda pudesse sentir aquele fio dilapidado que era a conexão do garoto com a matilha. Nada havia realmente mudado no vínculo; estava assim desde toda a coisa com o Nogitsune, e repentinamente Derek notou que a conexão era tão fraca que nem podia dizer se estava longe ou não.

Sentiu confusão, então vergonha, uma inadequação tão forte e repentina que o fez querer sair da própria pele.

Era estranho estar ali na presença do xerife, ou apenas estranho estar ali sem Stiles; sem sua tagarelice incessante, seus movimentos ansiosos e cheiro calmante, sem seus olhos de corça brilhantes e comentários afiados. Tudo parecia muito vazio ultimamente, mas nada se comparava ao nada que pairava no ar agora.

Stiles se foi.

Derek pegou o bilhete em cima da mesa – não era grande o suficiente para ser uma carta, de qualquer forma.

 

Pai, me desculpe por ir embora sem me despedir, mas não sei o que teria dito, ou se você teria parado para escutar.

Sei que a culpa é minha, e eu sinto muito. Me desculpe por tudo que aconteceu, todas as mentiras, toda a morte, toda a destruição. Não queria colocar você em perigo, mas não consegui evitar que todas essas coisas horríveis te alcançassem no final das contas.

Estou saindo da cidade, não sei para onde vou a partir daqui, mas eu peguei o dinheiro da poupança que a mamãe deixou pra mim, então você não precisa se preocupar comigo. Não quero que você se preocupe nunca mais.

Estou limpando suas mãos de mim, não quero mais ser um fardo, nem pra você e nem para o bando. Espero que vocês fiquem bem apesar de tudo que eu fiz vocês passarem.

Com amor, Stiles.

Ps.: estou deixando minha cópia da chave de casa junto da chave reserva e estou levando o jipe.



Derek releu a coisa várias vezes, traçando cada curva da letra apressada de Stiles com olhos doloridos, cada palavra escrita com tanta certeza, de forma tão definitiva que foi como um golpe certeiro em seu peito.

…não quero mais ser um fardo, nem pra você e nem para o bando.

Derek sentiu sua garganta apertar, confusão e horror guerreando dentro dele como lobos furiosos.

— Eu não percebi… — O xerife continuou, finalmente se movendo de sua imobilidade preocupante. Ele deixou o copo meio vazio sobre a mesinha de centro, seus lábios puxados para baixo em uma carranca que refletia muitos dos sentimentos de Derek naquele momento — Eu não… Ele estava sofrendo tanto e eu… Não percebi. Eu não estava aqui. — A dor naquelas palavras, o absoluto fracasso, a mágoa, a incerteza, a culpa, tudo dançando em um furacão que prometia uma devastação sem precedentes. — Foi a primeira vez que entrei no quarto dele em… em meses e… estava vazio. Os livros favoritos, os quadrinhos, o computador, as roupas. Eu… Eu nem sei quando ele foi embora, Derek. — E agora ele estava chorando, lágrimas silenciosas escorrendo por seu rosto. Ele levantou os olhos vermelhos, absolutamente derrotado — Como pudemos fazer isso com ele? Como pudemos deixar ele aqui, sozinho?

A culpa traiçoeira apertou o peito de Derek novamente, comprimindo seus pulmões, acelerando seu coração.

— Quando foi… quando foi a última vez que você o viu? — Derek se ouviu perguntando, as palavras soando não muito diferentes de grunhidos e rosnados infelizes. Ele tentou se agarrar à pequena esperança daquele fio que ainda o ligava à Stiles apesar de tudo, mas o lembrete de como ele o havia negligenciado era apenas outra ferida aberta, ainda sangrando.

Mais lágrimas mancharam o rosto do xerife: — Na formatura. Ele… ele não queria participar da colação, nem do baile então… fomos até a diretoria durante a tarde, pegamos o diploma dele e eu o deixei em casa antes de voltar para o trabalho. — A culpa parecia viciosa agora, tomada pela mais completa auto aversão. — Isso faz cinco dias… Se ele foi embora naquela noite, eu não parei em casa tempo suficiente para entrar na porra da cozinha e ver o brilhete dele por cinco malditos dias! — O xerife praticamente rosnou, a raiva e a tristeza crescendo até que não houvesse mais nada. Derek sabia bem há quanto tempo tinha sido a formatura; ele foi, por causa de Isaac, Erica e Boyd, e se lembrava de sua beta comentando que Stiles não tinha aparecido no baile.

Se lembrava de ter dado de ombros para isso, mal prestando atenção quando Erica disse aquelas palavras na mesa de jantar do loft, como seus betas vinham dizendo há meses.

Stiles não apareceu pra aula hoje.

Parece que faz séculos que não vejo Stiles por aí.

Stiles não foi ao baile.

O xerife se levantou, esfregando uma mão pesada no rosto como se pudesse espantar os sentimentos ruins, como se pudesse se recompor de qualquer forma quando seu filho havia sumido, quando havia ido embora de forma tão silenciosa que ninguém percebeu.

— O quarto dele… — O homem indicou as escadas no hall de entrada, logo ao lado da sala de estar — Preciso que você vá lá e preciso que você o encontre, Derek. Preciso que você encontre meu filho pra que eu possa dizer pra ele que ele não é um fardo, e que eu sinto muito e… Talvez você veja algo que eu não vi, talvez você sinta algo que eu não consigo sentir, só… Faça isso.

Derek nem pensou em recusar, apesar da apreensão que sentia. Seus instintos estavam confusos; por um lado, ele não queria ver o espaço que Stiles havia deixado para trás, e por outro, queria se agarrar a qualquer coisa que pudesse ter restado.

O andar de cima estava empoeirado também, sombrio, e Derek caminhou sozinho pelo corredor até o quarto de Stiles; ele havia estado naquele quarto muitas vezes, embora raramente fizesse aquele caminho. Faziam meses desde a última vez que apareceu na janela dele, e isso era só mais uma coisa para se culpar no futuro.

A porta estava entreaberta, e ali o cheiro de Stiles era infinitamente mais forte, mesmo que relativamente antigo. Já fazia alguns dias que não estava ali, mas até as paredes pareciam impregnadas com o cheiro de seu desespero, sua tristeza. Medo, solidão, lágrimas.

Um pouco da luz ambiente da rua entrava pela persianas meio abertas, iluminando levemente cada espaço vazio deixado lá dentro; estantes com menos livros do que antes, a escrivaninha embaixo de uma das janelas completamente vazia, o guarda-roupa aberto com mais da metade das coisas faltando.

E o espelho, coberto completamente por camadas antigas de fita adesiva prateada.

A mente de Derek o atacou de forma impiedosa, tentando recriar os últimos meses naquele quarto; imaginou Stiles ali, sozinho com seu desespero, seu espelho coberto porque não conseguia encarar o próprio reflexo, sua porta fechada, sem ninguém do outro lado tentando entrar.

Sozinho.

Depois de tudo que aconteceu, depois de Allison, depois do Nogitsune.

Derek deveria ter ido até ele. Deveria ter feito a matilha ir até ele. Ele deveria…

Stiles se foi.

E ninguém percebeu.



☽◯☾



— Como assim ele foi embora? — Érica foi, previsivelmente, a primeira à rosnar sua indignação. — Isso não faz sentido! Quando isso aconteceu?

Derek não queria ter essa conversa com o bando. Na verdade, nas últimas três semanas ele manteve uma pequena esperança de que não precisaria; depois que sua visita ao quarto de Stiles não lhe deu qualquer pista de para onde o garoto pudesse ter ido, ele colocou algum senso na cabeça do xerife, e os dois foram até a delegacia. As câmeras de trânsito da cidade mostraram o jipe azul de Stiles saindo de Beacon Hills no início da madrugada logo após a formatura, seguindo a estrada para o sul do estado.

O xerife fez algumas ligações, cobrou alguns favores, e depois de dias tensos e silenciosos caçando qualquer vislumbre do jipe azul em câmeras nos estados vizinhos, eles conseguiram rastrear Stiles até o Kansas, onde ele simplesmente desapareceu.

Eles foram até o motel onde o jipe de Stiles foi visto pela última vez, mas aquele lugar foi um beco sem saída; o proprietário disse que tanto o carro quanto o hóspede sumiram no meio da noite, e que o quarto estava completamente vazio quando foi limpo na tarde seguinte, quando Stiles não apareceu para renovar a reserva.

A única pista que tiveram foi um vídeo borrado de uma câmera de segurança, entregue com certa hesitação pelo dono do motel; no vídeo, Stiles abria a porta para uma figura encapuzada no meio da noite, e a deixava entrar. Momentos depois, ambos saíam correndo do quarto, o carro saindo em disparada assim que a figura misteriosa – uma mulher, pelo pouco que podiam distinguir dela – chutava um borrão em forma humana com força antes de se jogar no banco do passageiro. O vídeo então era interrompido por um brilho forte, e quando a imagem voltava ao cenário anterior, o jipe já não estava em lugar nenhum, deixando apenas uma mulher frustrada se levantando do chão e agarrando os cabelos loiros e longos com raiva, antes de ela correr para fora do estacionamento.

Derek e o xerife voltaram todo o caminho até a Califórnia em um silêncio pesado. Não havia rastro de cheiro para seguir, nenhuma testemunha, e nenhuma ideia do que poderia ter acontecido.

Era como se Stiles tivesse sumido no ar, não mais do que um punhado de gravações perdidas pelo país.

Derek suspirou, encarando os vários tons de choque e confusão que coloriam as expressões dos membros do bando: — Pelo que sabemos, ele foi embora na noite da formatura.

Os olhos de Lydia cresceram, seus lábios torcidos em um misto de descontentamento e confusão: — Isso faz quase um mês.

Como não percebemos isso? Era o que ela queria dizer, e embora Derek tivesse ativamente retido informações deles, não mudava o fato de que, por um mês inteiro, nenhum deles percebeu que Stiles não estava mais na cidade. Era uma realização amarga, no mínimo.

Derek assentiu: — Eu e o xerife estamos tentando encontrar ele há algumas semanas, e estávamos chegando à algum lugar, por isso não avisei vocês antes. Queríamos encontrá-lo primeiro, entender melhor o que tinha acontecido sem precisar envolver todo mundo. Conseguimos seguir imagens do jipe em câmeras de trânsito até o Kansas, ele não estava fazendo muita questão de se esconder de qualquer forma, mas… ele sumiu logo depois. A última filmagem que temos é de quase duas semanas atrás, quando Stiles aparentemente entrou no carro com uma mulher desconhecida e… desapareceu. Ele, a mulher e o jipe simplesmente sumiram em um explosão de luz, então é bem provável que tenha algo sobrenatural por trás disso.

Isaac se levantou em um pulo: — E o que exatamente estamos fazendo aqui? Você já falou isso tudo para Cora e Malia? E o Peter? Devíamos estar indo atrás de Stiles-

— Isaac. — Derek o interrompeu, mesmo que soubesse que a ideia de perder outra pessoa fosse insuportável para ele quando ainda estava sofrendo tanto com a morte de Allison. — Cora, Malia e Peter estão voltando pra cidade nesse exato momento, mas eu e o xerife fomos até o Kansas. Não tem rastro pra seguir. — E como Derek tentou mesmo assim, correndo por todo o maldito estado até que suas pernas falhassem. Não havia nenhum traço de Stiles, nada para se agarrar.

— Mas ele… — Isaac hesitou por um segundo, parecendo confuso e machucado — Ele simplesmente foi embora? Sem dizer nada pra ninguém?

Derek não queria contar sobre o bilhete, mas sabia que não podia esconder as últimas palavras que Stiles deixou, mesmo que tivessem sido escritas somente para seu pai. A ideia da culpa que aquele singelo bilhete causaria era muito além do que ele, como alfa, deveria deixar recair sobre sua matilha, cada palavra sangrando uma realidade que nenhum deles viu chegando, mas ele não podia negar isso à eles.

Derek sabia o que a matilha pensaria, porque vinha se afogando nos mesmos pensamentos desde aquela noite vazia na casa dos Stilinski, com aquele bilhete na mão.

Por que eu não percebi o que estava acontecendo?

Por que eu não fui ver ele?

Por que não estendi a mão quando podia?

Mas não havia nada que Derek pudesse fazer para protegê-los disso.

— Ele deixou um bilhete para o pai dele. — Ele murmurou, tirando o papel amassado e já macio pelo toque do bolso interno da jaqueta. O xerife queria ficar com ele, mas não conseguia olhar para o papel sem começar a chorar, então ele pediu que Derek guardasse isso, pelo menos por enquanto. Estender a mão e entregar o bilhete para Isaac foi mais difícil do que ele pensou que seria. — Aqui.

Isaac pegou o papel lentamente, nervoso, mas seus olhos voaram sobre a página com rapidez, sua expressão ficando ainda mais tempestuosa e sombria. Lydia se levantou, claramente impaciente e querendo ver o bilhete ela mesma, talvez acreditando que perceberia algo que nem Derek e nem o xerife seriam capazes. Derek esperava que sim, ela sempre havia sido a mais inteligente deles.

Ela e Stiles… sempre haviam sido os mais inteligentes…

Ela estendeu a mão, quase arrancando o papel das mãos meio trêmulas de Isaac. Seus olhos voaram pelas palavras, suas sobrancelhas se contraindo em um misto de frustração e incredulidade. Nada. Não havia nada. Nenhuma pista, nenhum código, nenhum mapa escondido, nenhuma instrução.

Apenas um adeus.

— Um fardo? — Ela perguntou, não para alguém em particular, seu olhar se perdendo por um momento em algum ponto além das janelas altas do loft, como se tentasse ver para onde Stiles teria ido. Ela olhou para Derek então, irritada — Isso é sobre a Allison? É disso que se trata? Ele acha que… O que? Que a gente culpa ele pela morte dela? Então ele simplesmente- — Ela se interrompeu, estendendo o papel para Érica, parecendo querer se livrar da realidade à qualquer custo. Todos recuaram um pouco com a menção à Allison, é claro, porque ainda era um assunto sensível, mas era a verdade.

Érica ainda estava sentada no sofá de couro escuro, com uma postura tão derrotada que por um segundo Derek se lembrou da garota frágil e assustada para quem ele ofereceu a mordida no começo do ensino médio. Ela começou a ler, suas sobrancelhas parecendo se franzir um pouco mais a cada palavra que lia.

Por um momento, Derek se sentiu culpado não apenas por tudo que não havia feito – estar lá para Stiles, encontrá-lo antes de ele desaparecer naquele estacionamento –, mas por não ter chamado Scott para aquilo.

Objetivamente, ele sabia que era melhor que Scott não estivesse ali pra isso, mesmo que Stiles fosse seu melhor amigo. Ele sabia que a posição de Scott com a matilha era incerta também, ainda mais agora que havia terminado com Kira e ela havia aceitado Derek como seu alfa, mas ele nunca esperou que as coisas funcionassem com Scott, de qualquer maneira – era difícil ter dois alfas em uma mesma matilha sem criar uma relação como Deucalion havia criado com seus beta-alfas, e isso não era algo que qualquer um deles quisesse, então Derek parou de chamar Scott para as reuniões da matilha, e, sem Stiles por perto para arrastá-lo até lá de qualquer forma, eles simplesmente se distanciaram.

O xerife disse que ia falar com Scott e com Melissa sobre tudo, e parecia realmente a melhor coisa a se fazer.

Érica leu o bilhete com mais calma do que os outros dois, se deixando demorar em cada pedaço dele, sua expressão se torcendo naquela culpa familiar e estarrecedora que vinha comendo Derek vivo há semanas. Kira se apoiou no encosto do sofá, lendo por cima do ombro dela, sua expressão se fechando instantâneamente, apesar de não ser tão próxima de Stiles quanto o resto deles.

Bom, não tão próxima quanto o resto deles achava que era, pelo menos.

Como você fica tanto tempo sem olhar para uma pessoa que você supostamente ama a ponto dela sumir sem que ninguém percebesse?

Boyd se aproximou de Érica lentamente, com cuidado, e retirou o papel das mãos dela com tanta ternura que Derek não se surpreendeu que isso tenha sido a gota d’água pra ela. Érica começou a chorar, e isso pareceu fazer toda a situação mais real para o resto deles, de alguma forma.

— Não acredito que ele foi embora… — Érica fungou, sem se importar em tentar limpar as lágrimas — Por que ele não falou com a gente? Pensei que ele apenas… apenas precisava de um tempo, depois de tudo que aconteceu, eu não imaginei que…

— Nenhum de nós imaginou. — Derek garantiu, embora isso pouco fizesse para atenuar a culpa.

Nada mudava o fato de que eles deveriam ter percebido, de que eles deveriam ser uma matilha, de que eles deveriam estar lá quando um deles tinha sido possuído por um espírito maligno e forçado a matar uma de suas amigas mais próximas.

Mas todos estavam tão acostumados com Stiles estando bem que a possibilidade de ele não estar nem passou pela cabeça deles. Ele era forte, resiliente, determinado; a ideia de ele estar afundando parecia absurda quando era sempre ele que aparecia com um plano, uma solução ou um ombro amigo. Ele sempre parecia passar por cima de toda a merda sobrenatural que era a vida deles com alguns arranhões e alguns comentários sarcásticos, e era isso.

E agora ele não estava mais ali.

— O que fazemos agora? — Boyd, ainda abraçando uma Érica trêmula, se voltou para Derek com o que deveria ser praticidade, mas nem mesmo ele conseguia esconder o quanto a notícia o abalou.

E aquela era a pergunta mais importante, não é? O que fazer quando não há mais o que fazer?

— Vamos continuar procurando. — Era tudo o que podiam fazer agora, mesmo que não levasse à lugar nenhum, mesmo que Stiles estivesse perdido para sempre. — Vou continuar procurando.

 

☽◯☾

Chapter 8: Corte

Summary:

Um corte sempre deixa uma marca para trás

Chapter Text

“E chega o fim, terrível e definitivo.”




Tinha sumido.

Em um segundo estava lá, aquela linha fina, vergonhosa e decrépita que, depois de seis meses, somente Derek conseguia sentir com clareza, e na qual vinha se agarrando com tanto desespero quanto podia aguentar – estava lá, e então não estava mais, um toque frio de metal e finalidade cortando a última coisa que ainda o conectava com Stiles.

Um momento lá, e então tinha sumido. Stiles tinha sumido, agora perdido para sempre na escuridão do mundo, não mais do que um vazio em seu peito e um uivo triste ecoando pela floresta enquanto corria sem rumo.

Derek percebeu apenas vagamente quando seus betas começaram a correr junto com ele, enchendo a noite com seus próprios uivos e suspiros de tristeza, entendendo a canção de sua dor melhor do que poderiam entender qualquer confissão.

Não havia mais nada.

Quando Derek finalmente parou, pairando nos limites do território herdado de sua família, muito além de Beacon Hills e da Reserva, tudo que podia sentir era aquela ausência, aquele silêncio, a sensação perigosa, definitiva e afiada de metal cortando algo muito delicado, muito precioso, sem qualquer hesitação.

— Derek… — De todos os betas, foi obviamente Peter quem se aproximou primeiro, cauteloso mas tão prático quanto sempre havia sido. — Stiles-

Um rosnado profundo e gutural escapou de dentro dele antes que seu tio pudesse continuar: — Não! — Seu rugido fez com que todos os betas ajeitassem a postura, mas nenhum deles se afastou. Nenhum deles iria, não com aquela dor que atravessava a conexão da matilha como pontadas de gelo e fogo.

Claro que Peter, corajoso, insuportável e cruel, só tomaria aquilo como um convite para se aproximar: — Você precisa se controlar, Derek. Stiles não está morto, ele só… — Mas até mesmo ele hesitou antes de completar a frase, embora Derek soubesse melhor do que ninguém a diferença entre um laço cortado e um laço transformado em cinzas. — Ele escolheu isso. Essa é a resposta dele. Ele não pretende voltar.

— Você não sabe disso. — O veneno em sua própria voz não o surpreendeu, mas não surpreendeu seu tio também.

Você sabe. — Peter insistiu, sem medo, embora algo em seu olhar parecesse estranhamente cauteloso, taciturno. Quase triste. — Esse tipo de corte, tão limpo, tão rápido, só pode ser feito caso a pessoa queira isso. Ele decidiu cortar os últimos laços que tinha com a matilha. Acabou, Derek.

— Não… Não posso simplesmente aceitar isso…

— Mas essa escolha não é sua, é? — Peter finalmente se aproximou o suficiente para estender a mão, a pousando com cuidado em seu ombro. — Não podemos consertar o que foi quebrado, Derek, podemos apenas aprender com nossos erros.

O rosnado vibrando no peito de Derek pareceu fazer o mundo todo tremer: — Vá embora.

— Derek-

Vá embora! — Ele rugiu, toda a esperança sangrando até virar uma poça de nada aos seus pés. Derek podia sentir aquele algo selvagem lutando dentro dele, aquela criatura violenta e ferida cheia de dentes afiados e destruição.

Talvez fosse o comando em sua voz, ou seus olhos vermelhos, mas, lentamente, todos os betas recuaram, nenhum deles conseguindo conter seus suspiros feridos.

Peter foi o último a ir embora, mas no final das contas Derek ainda ficou sozinho.



☽◯☾



Derek não sabia como ia dar a notícia para o xerife.

Não que fosse uma surpresa; na verdade Derek devia estar surpreso por ter demorado tanto. Stiles não se sentia parte da matilha há muito tempo antes de tomar a decisão de ir embora, e tanto ele quanto o xerife sabiam disso, mas ainda assim parecia o tipo de ponto definitivo que quebraria o homem ainda mais.

Aquela conexão, por mais fraca, singela e tomada por culpa, era a única coisa que havia restado de Stiles.

Mas Derek precisava fazer isso, então ele correu toda a distância até a casa dos Stilinski, estremecendo ao ver as luzes do quarto de Stiles acesas. Ele pensou em entrar pela janela, como fizera tantas vezes no passado, mas não queria assustar o xerife, e, se fosse sincero consigo mesmo, usaria qualquer desculpa para adiar aquela conversa o máximo possível.

Estava com a mão erguida para bater na porta da frente quando ouviu o som da moto de Scott descendo a rua à toda velocidade. Olhou para a entrada da garagem a tempo de ver o jovem alfa deixando sua moto de qualquer jeito no chão, sua respiração ofegante e seus olhos vermelhos brilhando na escuridão da madrugada.

Eles se encararam por um momento, o peso do corte feito naquela noite levando os dois ao mesmo lugar pelo que pareceu a primeira vez em mais de um ano.

— Você sentiu também… — Scott murmurou, sua voz um tanto trêmula, mas Derek não sabia se era por estar contendo um rosnado ou por estar segurando o choro. Não era estranho vê-lo assim nos dias de hoje, por mais escassos que fossem esses encontros; Scott parecia derrotado, e vinha parecendo assim desde aquela noite em que lutaram contra o Nogitsune.

O luto por Allison ainda manchava seu cheiro com uma tristeza quase natural agora, o aroma taciturno aumentando ainda mais o cheiro do desespero que sentia naquele momento.

Por um segundo, Derek pensou que não conseguiria falar, ainda muito lobo para que sua voz soasse realmente humana, mas o sussurro que saiu dele foi fraco: — Ele escolheu isso.

Scott balançou a cabeça, seu lábio inferior tremendo um pouco enquanto seus olhos voltavam para o tom castanho comum: — Não acredito nisso. Não é verdade. Ele não-

— Scott. — Derek o interrompeu, sentindo uma dormência sufocante no corpo inteiro. — Precisamos contar pra ele.

O olhar de Scott subiu até a janela do quarto de Stiles – do quarto que seria de Stiles para sempre, um espaço que pertenceria à ele mesmo que tivesse partido, mesmo que não fosse mais deles.

A luz estava acesa como estava todas as noites nos últimos três meses. Foi mais ou menos nessa época que o xerife começou a perder a esperança; o beco sem saída no Kansas foi um baque, mas a falta de qualquer outra coisa nos meses seguintes o fez definhar. Peter perguntou por aí, para todos os contatos sobrenaturais que tinha, mas ninguém sabia o que poderia ter acontecido com Stiles. A incerteza corroeu todos eles de maneiras diferentes, mas John estava levando a pior nisso tudo, Derek não tinha dúvidas.

Agora ele passava a noite toda no quarto de Stiles; não procurando pistas, Derek apostava, mas apenas tentando manter viva aquela conexão, ou talvez se punir um pouco como todos vinham fazendo em pequenas doses. Um misto dos dois.

— Não sei o que falar pra ele. — Scott suspirou, passando a mão no rosto em um movimento frustrado e nervoso.

— Vamos falar a verdade. — Derek disse simplesmente. Aquela falsa calmaria precisaria ser o suficiente para esconder a criatura monstruosa que havia por baixo.

— Isso vai acabar com ele. Já sobrou tão pouco… — Scott lamentou, mas se aproximou de onde Derek estava parado na frente da porta ainda assim, ajeitando a postura como se uma aparência confiante fosse lhe dar forças para fazer aquilo.

Derek deu um passo para o lado, e deixou que o alfa mais jovem tocasse a campainha.

Conseguia ouvir o movimento de John lá dentro; ele se levantou lentamente da cama de Stiles, e saiu ainda mais lentamente de seu quarto, a luz permanecendo acesa como um farol na noite escura. O xerife desceu as escadas com passos pesados, como se carregasse o peso do mundo inteiro nos ombros.

Quando a porta se abriu, John já parecia esperar pelo pior.

— John… — Derek começou, quando o xerife apenas os encarou em silêncio, esperando. — Precisamos conversar com você.

A dor que coloria o cheiro do homem era quase sufocante: — Eu ouvi os uivos… Eu…

Derek se apressou para explicar: — Ele está vivo, xerife. Ele só… — Mas mesmo ali era difícil trazer aquilo para a realidade, quase impossível verbalizar a verdade daquilo tudo.

— Ele cortou os laços com a matilha. — Scott completou quando ficou claro que Derek não conseguiria. As palavras saíram rápidas, tensas e doloridas, como arrancar um curativo, como um soco. — Ele escolheu… Ele cortou. Não conseguimos mais sentir ele.

Derek não sabia dizer se o suspiro que saiu de John era de horror ou de alívio, mas quando o xerife assentiu e disse que precisava ficar sozinho, ele sabia que não podia deixar algo como aquilo acontecer outra vez.

Ele não deixaria. Nunca mais.



☽◯☾



Naquela mesma noite, Derek e Scott chegaram em um acordo.

A divisão não podia continuar, e por mais que eles soubessem que nunca conseguiriam ser da mesma matilha, eles precisavam estar em bons termos, precisavam se apoiar se quisessem evitar os mesmos erros que vinham cometendo uma e outra vez, sem parar.

Eles não podiam deixar que aquela dor os consumisse de novo, que qualquer outro vínculo desaparecesse na escuridão.

— Você precisa de uma matilha. — Derek afirmou o óbvio, ignorando por hora o desconforto que viu torcendo o rosto do outro alfa. — Um alfa não é nada sem sua matilha, Scott, você não pode continuar sozinho.

— Não sei como fazer isso. Eu só… — Scott bufou, chutando uma pedrinha que estava caída no acostamento da estrada vazia que levava até a reserva. — Se Stiles estivesse aqui, ele saberia o que fazer. Ele sempre teve tanta facilidade pra entender tudo que é sobrenatural.

— Eu sei… — Derek não queria pensar em Stiles naquele momento, mas era inevitável, como foi inevitável cada dia dos últimos seis meses, acordado a noite toda enquanto se agarrava naquela conexão frágil. Agora ele não tinha nem isso. — Mas você precisa fazer isso agora. Principalmente agora. Precisamos manter as coisas funcionando até ele voltar.

Scott levantou a cabeça para encará-lo em uma velocidade tão alta que, se não fosse um lobisomem, poderia ter quebrado o pescoço: — Você… Você realmente acha que ele vai voltar? Ele cortou a conexão com a gente, ele-

— Scott. — Ele o interrompeu, não querendo ouvir nada daquilo. Ele sabia, sabia melhor do que ninguém. Seis meses haviam se passado e tudo que ele conseguia fazer era continuar procurando. — Ele vai voltar. É o Stiles, com ou sem conexão com a matilha.

Ele ainda é nosso, era a verdade na qual ele precisava se agarrar, a única coisa que poderia impedir que aquela dor traiçoeira se espalhasse e consumisse tudo.

Scott o encarou pelo que pareceu uma eternidade, mas assentiu por fim, aquele brilho de determinação familiar brilhando em seus olhos. Ele precisava se agarrar em alguma coisa também.

— Você tem razão. — Scott se desencostou da árvore onde esteve apoiado durante toda a conversa — Ele vai voltar. Ele tem que voltar, e quando isso acontecer, não podemos estar como estamos agora. Precisamos melhorar.

Derek precisava focar em outra coisa no momento: — Vamos começar arrumando alguns betas pra você.

Scott fez uma careta: — Não vou sair por aí transformando as pessoas.

Derek bufou: — É claro que não. É preciso escolher seus betas com cuidado. Use seus sentidos, preste atenção, seu lobo vai te levar para as pessoas certas uma hora, pessoas que precisam de você tanto quanto você precisa delas.

O desconforto não havia ido embora quando Scott se remexeu, inquieto onde estava em pé à alguns passos de Derek: — E então eu vou ter que transformá-los.

— Só se for necessário. Alguns deles vão precisar da mordida, sim, e você precisa estar pronto para dar isso à eles quando o momento chegar, mas nem todos vão ser lobisomens. — Afinal, o próprio Derek tinha uma boa diversidade de criaturas em sua matilha.

E Stiles era humano. Isso não impediu que ele fosse fundamental.

Suspirando, Derek olhou nos olhos de Scott, pensando em como poderiam ter evitado muita coisa se tivessem feito aquilo antes: — Se você estiver com dúvidas, pode vir conversar comigo. Eu sei que não é fácil ser um alfa, sei que pode ser… avassalador, ainda mais em um momento como esse. — Ele garantiu, vendo como os ombros tensos de Scott caíram um pouco — Vamos nos ajudar a passar por isso.

Scott concordou: — Tudo bem. Vamos nos ajudar, Derek.

O jovem alfa subiu em sua moto então, e partiu com um aceno de despedida fraco, cauteloso mas promissor.

Era estranho pensar em fazer aquilo dar certo quando tudo relacionado à matilha e à Scott seguiu aos trancos e barrancos até então, mas ele sabia que era hora de uma mudança, era hora de colocar as coisas em ordem.

Era o que Stiles gostaria que eles fizessem, com certeza.

 

☽◯☾

Chapter 9: Marcas

Summary:

E uma marca sempre conta uma história.

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

“Toda a história do mundo, contada através da sua pele”




A primeira coisa que Stiles sentiu foi a dor.

Não sabia a quanto tempo estava flutuando naquele limbo incerto entre inconsciência e destruição, mas soube o exato momento em que sua mente despertou o suficiente para registrar a agonia causticante que tomava conta de todo o seu ser.

Tentou respirar fundo, mas o ar apenas parecia ferver seus pulmões, queimando todo o caminho por sua garganta, o gosto de cinzas em sua língua o sufocando.

Ele estava queimando, era a única verdade em meio à aflição constante; seus sangue borbulhava nas veias, seus músculos febris se contraíam em espasmos e seus ossos soltavam fumaça densa e acre.

Dor, um mundo de tormento interminável, onde até mesmo suas lágrimas queimavam sua pele.

— Alina! — Alguém gritou em algum lugar além do fogo, mas a dor impediu que Stiles escutasse qualquer outra coisa, zumbindo através dele como uma descarga elétrica. Ou talvez fossem seus próprios gritos o fazendo tremer.

Provavelmente ele estava gritando o tempo todo.

Essa dor vai purgar seus pecados, ele ouviu um sussurro em sua mente, tão malicioso e cruel que atravessou o estrondo de seus gritos desesperados, depois de tudo que você fez, depois de tudo que deixou de fazer.

De repente, o fogo diminuiu, ou pelo menos o suficiente para que seus gritos se tornassem um suspiro dolorido de alívio, enquanto uma onda de frescor o envolvia e o empurrava para a inconsciência novamente.



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A segunda vez que Stiles acordou, a dor estava lá, mas sua constelação também.

— Mick! — Devi foi a primeira a se lançar para frente, se inclinando sobre ele com olhos vermelhos de choro e uma expressão tão preocupada que Stiles sentiu a repentina vontade de se desculpar. — Vou chamar a Alina, ela está preparando um remédio pra você!

Stiles queria pedir para que ela ficasse, mas sua voz não passava de um chiado queimado quando tentou falar, a dor o atravessando com uma força tão repentina e cortante que poderia ter sido um tiro.

Devi sumiu de seu campo de visão, o som de seus passos rápidos e pesados saindo da sala com pressa, o deixando sozinho encarando o teto de painéis de madeira de seu quarto, onde dançavam luzes coloridas por conta do sol atravessando as janelas de vitral. O tempo se esticou como se todas as leis do universo estivessem embaralhadas, viradas de ponta cabeça, e no que poderiam ter sido meros segundos ou longos anos, três pares de passos se aproximaram de seu leito.

Um momento depois, Alina, Devi e James estavam em seu campo de visão, se inclinando sobre ele. Stiles podia sentir a preocupação de cada um deles, não apenas em seus rostos cansados mas em suas luzes trêmulas, que tentavam alcançar a luz vermelha de Stiles com desespero e carinho.

James estava chorando: — Mitch, que susto você deu na gente.

Stiles tentou falar novamente, mas a dor foi tanta que ele precisou fechar os olhos.

— Está tudo bem, não tente falar agora. Suas cordas vocais estão muito danificadas pelas queimaduras, mas devemos conseguir restaurar elas em mais alguns dias, mała gwiazda*. — Alina estendeu a mão, mas parou a poucos centímetros da pele perpetuamente em chamas de seu rosto — Vamos ajudar você, seu garoto estúpido e corajoso.

Ele se lembrou então do Alasca, da Centelha, da chama em seus pensamentos que criou vida e devorou o mundo.

É o mínimo que eu podia fazer, ele queria dizer.

Stiles não conseguiu ficar muito mais tempo acordado depois disso.



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Stiles conseguia ficar algumas horas acordado agora, e pensar com mais clareza do que parecia possível depois de semanas preso em uma névoa atordoada, onde, além do sono, só existia dor constante e alívio momentâneo.

Seu tempo desperto geralmente começava depois do meio-dia, algo sobre ser o ponto mais alto do sol, e costumava terminar entre cinco e seis da tarde, quando o céu já estava mais violeta do que laranja.

Suas cordas vocais foram restauradas com sucesso na primeira semana, mas todo o resto parecia estar sendo um desafio para Alina que, embora exibisse uma gama impressionante de habilidades curativas, nunca havia lidado com o tipo de queimadura deixada por fogo mágico espontâneo.

Francamente, era um milagre que Stiles estivesse vivo.

Todos pareciam pensar isso, e embora Stiles sentisse uma leve inquietação com o fato, sua constelação parecia contente o suficiente com esse desenvolvimento para não questionar a quase impossibilidade disso.

Não que ele tivesse muito tempo para pensar ou criar teorias, de qualquer forma. Quando não estava em um sono pesado induzido pela recuperação, estava com alguma de suas estrelas, que faziam de tudo para distraí-lo da dor e de qualquer pensamento ruim. Alina estava sempre por perto, trabalhando para curá-lo pedaço por pedaço, e Devi e James hora se revezavam para lhe fazer companhia, hora se uniam como um time para fazê-lo se sentir melhor. James lia para ele com sua voz bonita e tranquila, e Devi começou a pintar suas unhas com cores coloridas assim que as ditas unhas nasceram novamente, ambos sempre com um fluxo de conversa infinito, o atualizando sobre tudo e nada ao mesmo tempo.

Eles eram gentis, mas não o tratavam como se ele fosse uma xícara de porcelana quebrada, e nem recuavam ao olhar para seu estado deplorável.

Era reconfortante, passar pela dor com alguém o segurando perto.

Mas, até então, ele não tinha visto novamente a jovem Centelha que eles resgataram no Alasca.

Naquela tarde, Alina havia mandado Devi e James para a cidade para fazer algumas compras, e foi quando a Centelha mais velha saiu para pegar mais da pomada caseira milagrosa que vinha ajudando Stiles a passar pelo pior das queimaduras, que a nova estrela da constelação deles bateu à porta.

Stiles vinha sentindo a garota desde que se recuperou o suficiente para pensar sem sentir dor; sua luz fresca e fria sempre habitando algum canto da casa, sua conexão chegando até Stiles mais através do resto da constelação do que qualquer outra coisa. Seu nome era Dara, suas outras estrelas lhe contaram, mas não pareciam ter muito mais o que dizer.

Aparentemente, por mais confortável que a adolescente parecesse na presença deles, como era natural entre Centelhas, ainda havia alguma coisa a segurando.

Então foi uma surpresa quando ouviu a batida na porta. Alina, Devi e James nunca batiam, mas Dara esperou pacientemente atrás da porta fechada até que Stiles limpou a garganta e permitiu sua entrada.

Ela empurrou a porta lentamente, a parte superior do rosto aparecendo antes de todo o resto, espiando o quarto com olhos escuros e cautelosos. Devi disse que ela havia nascido na Tailândia, mas que havia sido levada pelo pai para uma cidadezinha no interior da Rússia quando era bem nova. Devia ter sido um ajuste e tanto mesmo assim.

— Boa tarde… — Stiles conseguiu sussurrar. Suas cordas vocais estavam restauradas, sim, mas cansavam rapidamente agora. Alina garantiu que era mais um cansaço geral por conta do processo de cura acelerada, e que logo mais ele poderia voltar a falar o quanto quisesse.

— Oi… — Dara murmurou, em um misto de hesitação e curiosidade. A porta se abriu um pouco mais, mostrando seu rosto todo. Ela parecia uma das bonecas antigas que Alina guardava em um baú no sótão, delicada e ao mesmo tempo assombrosa, o que era estranho juntamente com as roupas que obviamente pertenciam a Devi, um misto de punk rock e jovem mística dos anos setenta — Eu… Eu sei que não devia estar aqui…

Stiles tomou cuidado para não franzir a testa, porque ainda doía como o inferno fazer qualquer expressão facial: — Por que não?

Isso pareceu pegar a garota de surpresa. Ela parou por um momento, a mão ainda firme na maçaneta decorada como se pudesse sair correndo à qualquer momento: — Eu não… Não achei que você ia querer, sabe… Me ver.

Dessa vez foi Stiles quem foi pego de surpresa: — Oh… e… por que eu não ia querer te ver? Eu sei que estou meio… hm… bom, meio mal agora, mas-

— Porque foi minha culpa! — Dara explodiu, o interrompendo, seus ombros quase tocando as orelhas. — Eu sei que foi minha culpa, tá bom? Você não estaria… assim, se eu não tivesse levado aquele demônio direto pra você!

Stiles ficou momentaneamente sem palavras; normalmente era ele do outro lado desse tipo de interação, e lidar com a culpa de outra pessoa por algo que havia acontecido com ele era… estranho, para dizer o mínimo.

Mas Dara era uma criança, ela estava assustada, e Stiles sabia como era se sentir assim.

— Dara… — Ele começou lentamente, tentando pensar no que poderia dizer para fazer ela se sentir melhor. Não sabia se existiam palavras mágicas capazes de fazer aquele tipo de sensação desaparecer, mas o mínimo que poderia fazer era tentar. — Certo. Vem aqui. — Ele pediu, se ajeitando melhor contra a cabeceira e indicando para ela o espaço vazio ao pé da cama.

Ela se moveu lentamente, ainda incerta, mas nem mesmo sua culpa podia resistir ao chamado daquela luz que prometia, acima de tudo, compreensão. Ela se sentou na beirada da cama com a postura ainda rígida, como se estivesse pronta para ser expulsa ao menor passo em falso, seus olhos fixos nas próprias mãos, que permaneciam inquietas em seu colo.

— Como você está? — Ele resolveu começar com algo mais neutro.

Ela levantou o olhar, seus lábios se torcendo em uma careta incerta por um momento antes de suspirar: — Bem, eu acho. É… diferente, estar perto de outros como eu, mas… é bom, um diferente bom.

Stiles sorriu: — Eu sei. Nunca tinha conhecido outra Centelha antes de Devi me encontrar alguns meses atrás, e é…

— Caloroso. — Dara completou, aqueles olhos escuros o estudando com consideração.

— É, — Stiles concordou, sentindo aquele sentimento morno e confortável, se espalhando por sua alma, diminuindo a dor de cada queimadura. — caloroso é um uma boa palavra pra isso, eu acho. E o que você está achando do pântano até agora?

Um pequeno sorriso se insinuou no rosto dela antes que ela forçasse os cantos da boca a se conterem em uma linha neutra: — É úmido e quente, mas eu acho que gosto. Tem sapos em todo canto, e vagalumes à noite. É legal.

— É, é bem legal. — Stiles se lembrava de pensar, no começo, que os vagalumes seriam um problema, com suas lembranças dos oni e tudo, mas no final das contas o pântano deles parecia ter o poder de desfazer qualquer pesadelo e transformá-lo em beleza selvagem. Os vagalumes eram lindos. — Que bom que você gosta daqui, é um alívio. Sei que pode ser difícil a ideia de deixar nossa antiga casa para trás, mas é bom saber que ainda podemos criar casas em outros lugares, com outras pessoas.

O silêncio caiu sobre eles, não pesado, mas ainda assim cheio de alguma coisa que Stiles não sabia bem definir. Expectativa, talvez, mas não exatamente.

— Por que você está sendo tão legal comigo? — Ela perguntou em um sussurro, toda a incerteza e confusão sangrando nas pontas afiadas de sua voz. — Eu vim aqui pra me desculpar, pra… pra aceitar as consequências. E você está agindo como se nada tivesse acontecido, como se você não tivesse literalmente ardido em chamas para me proteger.

Aquilo era uma merda. Stiles não havia sido feito para lidar com crianças, muito menos com aquelas que resolveram carregar toda a responsabilidade do mundo nas costas.

Ele sentiu que falar para Dara que não se importava com as queimaduras só a teria irritado mais: — Quais seriam as consequências, Dara? Você não fez isso comigo.

— Mas foi por minha causa! — Ela se levantou em um pulo, seus olhos arregalados em algo que queria ser raiva, mas que só parecia medo aos olhos de Stiles — Você podia ter morrido! Você quase morreu! Você deveria me querer fora daqui!

Stiles respirou fundo, querendo poder abraçá-la, mas sabendo que não suportaria a dor do contato ainda: — Não quero você fora daqui.

Por que?

E haviam muitas respostas para isso; Dara era uma criança, Dara estava sozinha, Dara não tinha culpa a respeito de algo que um demônio decidiu fazer. Nenhuma criança teria culpa de algo assim.

Mas a resposta mais simples, e também a mais importante, era que: — Nós somos uma constelação.

Os olhos da garota se encheram de lágrimas de repente, e, com uma fungada alta, ela se virou e saiu correndo do quarto.

A porta bateu na parede com um estrondo, e Alina entrou no quarto um segundo depois, aparentemente esperando que a conversa deles terminasse.

Sua mentora sorriu de forma cúmplice para ele: — Parece que ela tomou coragem para vir falar com você.

Stiles suspirou, se deixando apoiar pela cabeceira da cama; logo estaria cansado demais para ficar sentado, era bom aproveitar enquanto podia: — Acho que falei todas as coisas erradas.

Alina deu de ombros, se aproximando da cama com mais um potinho de barro contendo sua milagrosa pomada anti fogo mágico: — Acho que era exatamente o que ela precisava ouvir.

Naquela noite, Stiles dormiu sem sentir dor.



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Uma semana depois, Dara estava junto de James quando ele veio ler para Stiles. Ela trouxe seu próprio livro, que leu em silêncio no assento da janela, mas ficou até Stiles precisar ir dormir.



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Devi chegou com uma televisão nova mais ou menos na época em que os cabelos de Stiles começaram a crescer novamente, e antes que percebesse, as noites de cinema migraram para seu quarto.

Dara começou a aparecer cada vez mais, mas Stiles não comentou quando ela passou a ficar ali com ele sem nenhum dos outros para preencher o silêncio. Eles não conversavam muito, mas ele gostava disso; ela era uma garota quieta por natureza, mas sempre tinha um comentário esperto na ponta da língua, e era a única pessoa que compartilhava cem por cento do bom gosto impecável para filmes com ele.

A inclusão dela em sua rotina foi rápida, como aconteceu com todos os outros, e cerca de cinco meses depois do Alasca, ele estava como novo, ostentando somente um conjunto não muito sutil de cicatrizes de queimadura por todo o corpo.

Seu rosto foi recuperado com danos mínimos, e sair para caminhar pelo pântano quando suas pernas voltaram a ter força suficiente para sustentá-lo foi uma bênção. As sessões de cura com Alina não diminuíram o ritmo de forma alguma, mas agora eram muito menos exaustivas e dolorosas, mais sobre reparar cicatrizes e aliviar dores persistentes do que restaurar músculos e ossos, que era sempre uma arte delicada e um tanto angustiante.

Foi no meio de uma dessas sessões que Lucius chegou.

No quase um ano de Stiles ali, contando principalmente os seis meses antes do fogo, ele havia escutado a voz de Lucius Martino muitas vezes. Ele era um antigo amigo de Alina, um dos únicos que sobraram de sua geração de Centelhas, e se os habitantes da casa no pântano eram uma constelação, Lucius era uma estrela cadente, indo e vindo em um ritmo inconstante e imparável.

Não era da natureza geral das centelhas se dispersarem, mas alguns deles nasciam diferentes, feitos para viajar, vagar, criar conexões com o mundo todo sem nunca se prender. No mundo em que viviam, que via cada Centelha como um prêmio ou uma moeda de troca, era fundamental que estrelas cadentes criassem essas conexões, levando informações de um canto do mundo para o outro e mapeando os passos de seus inimigos.

Então, quando Lucius parou nervosamente na varanda da frente, Stiles sabia que algo estava acontecendo, sabia que algo estava prestes a mudar.

Alina estava cantando cânticos mágicos enquanto passava misturas de ervas nas piores cicatrizes em suas costas quando sentiram o brilho roxo profundo de Lucius atravessando as proteções ao redor do pântano. Dara subiu alguns momentos depois, dizendo que havia um homem na porta da frente procurando por Alina.

Eles desceram rapidamente, Stiles ajeitando um dos roupões de seda vermelha de Alina sobre os ombros sensíveis. O homem que os esperava na sala de estar era ao mesmo tempo completamente diferente e exatamente o que Stiles esperava toda vez que ouvia a voz rouca dele pelo telefone.

Lucius era alto, embora a idade já curvasse seus ombros um pouco. Seus cabelos eram um misto ondulado e selvagem de cabelos pretos e brancos, descendo quase até o meio das costas e contrastando com sua pele marrom clara. Seus olhos verdes escuros encararam Stiles e Alina com precisão cirúrgica quando chegaram ao primeiro andar.

— Alina. — O homem cumprimentou, se levantando rapidamente do sofá. Devi e James se levantaram também, refletindo o mesmo nervosismo e fascínio de Stiles. — Acredito que esses devam ser Mieczyslaw e Dara. Conheci seus outros pupilos. Sinto muito por chegar assim, sem avisar.

— Lucius… — Alina foi rápida em se aproximar dele. Agora de perto, era fácil ver o quanto ele estava cansado, cambaleando nos próprios pés, com olheiras profundas sob os olhos — O que aconteceu? Você parece…

— Fraco. — Ele completou, se deixando guiar novamente para o sofá turquesa, algo em sua luz parecendo relaxar ao toque suave de Aline. — Os últimos meses tem sido… difíceis. Muita coisa aconteceu.

— Temos todo o tempo do mundo. — Alina se sentou ao lado dele. Stiles foi rápido em se sentar no sofá oposto, atraindo Devi, James e Dara para fazer o mesmo. Sua constelação se aglomerou ao seu redor, cada par de olhos na sala focados em Lucius e nas novidades que ele trazia sobre o mundo.

O homem suspirou: — Comentei com você alguns meses atrás que a atividade demoníaca tinha aumentado muito por aqui. Os demônios de Caim começaram a se movimentar de forma estranha, e percebi bem rápido que eles estavam procurando por alguma coisa. — Sua voz não era mais do que um murmúrio, mas até mesmo o pântano fora da casa parecia prender a respiração para ouvir —  Eu estive investigando desde então. Aparentemente ele está atrás de uma Centelha que surgiu no radar há mais ou menos onze meses. Colocou todos que podia na caçada. — Seus olhos pousaram em Stiles imediatamente, a gravidade em sua expressão confirmando uma coisa que todos eles sabiam desde o Alasca.

— Sou eu. — Stiles sussurrou de volta, sentindo aquele terror familiar de ser alvo de uma criatura monstruosa. Um demônio. — O demônio no Alasca estava atrás de mim. Uma centelha vermelha.

— É… É você. — Lucius parecia considerá-lo com cuidado.

Devi estendeu a mão, segurando a mão de Stiles com cuidado mas firmeza: — O que ele quer com Mick? O que muda a luz dele ser vermelha?

Lucius hesitou um momento antes de ajeitar a postura: — Muda tudo. Caim… É complicado. Ele é diferente de outros demônios, ele e… os outros como ele, não são feitos da mesma escuridão.

— O que você quer dizer? Existem outros demônios tão poderosos quanto Caim por aí? — James franziu as sobrancelhas, externando a confusão de todos eles.

Lucius fez uma leve careta: — Já faz um tempo que eu tenho… considerado uma teoria sobre Caim. Descobri a existência de alguns outros demônios com níveis parecidos de poder, a maioria foi morta por ele, mas alguns… alguns souberam sair do caminho. Eles não caçam Centelhas como ele, eles apenas aceitaram a escuridão.

— O que isso quer dizer? — Era a primeira vez que Alina parecia tão confusa quanto eles.

— Quer dizer que acho que Caim e esses outros demônios superiores, não foram sempre demônios.

Stiles respirou fundo, sentindo o frio úmido do pântano preenchendo seus pulmões com cheiro de magia e grandes revelações.

Lucius olhou para cada um deles quando disse aquilo: — Quer dizer que, um dia, Caim foi uma Centelha, e ele acha que seu brilho, Mieczyslaw, é igual ao brilho que ele tinha antes de ser consumido pela escuridão. Ele quer isso de volta.

 

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Notes:

mała gwiazda*: "minha estrela" em polonês

Chapter 10: ATO III

Chapter Text

Presas



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Liberdade para o lobo é morte para o cordeiro” – Isaiah Berlin



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Não haja como uma presa.

 

Chapter 11: Asteroide

Summary:

E o tempo passa

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

“Às vezes a luz é apenas um prenúncio para a destruição”




“Mick, pare de pensar tanto, vai dar tudo certo”, a voz de Devi sussurrou em sua mente, mas, embora a presença dela através da conexão mental fosse um conforto, sua garantia não serviu muito para acalmar seus nervos.

“Fique atenta, essa pode ser nossa única chance”, ele a lembrou, observando o enorme navio cargueiro atracado em uma das últimas docas do Porto de Shenzhen. O lugar era, como esperado para um dos portos mais importantes do mundo, um lugar impossivelmente movimentado, com tripulações e carregadores de carga para todo lado.

O navio Eva havia descido a âncora no início daquela manhã, e estava passando por uma série de reparos que deveriam levar ainda algumas horas, mas depois disso eles iriam zarpar imediatamente, como faziam em todas as curtas paradas de sua viagem interminável, que agora já durava mais de cinquenta anos. Aquele gigante era imparável, e era verdade que, se Devi e Stiles não conseguissem entrar naquele navio, eles poderiam ter que esperar meses, ou até mesmo mais de um ano, por outra oportunidade.

“Ali”, Devi murmurou em sua mente, e Stiles seguiu a voz dela até ver um dos engenheiros saindo de perto da escada de metal impossivelmente alta que levava ao deck principal.

“Vamos”, ele concordou, avançando calmamente por entre a os containers coloridos e equipes de manutenção que trabalhavam naquela parte do porto. Não haviam tantos perto do Eva, mas um leve encanto de desilusão foi o suficiente para que eles chegassem à escada sem problemas. A subida foi difícil, o metal desgastado arranhando suas mãos, e a cada impulso para cima, Stiles podia sentir as cicatrizes em seus braços e dorso repuxando. Eles chegaram ao deck depois do que pareceu uma eternidade escalando a lateral do enorme navio, mas não pararam para recuperar o fôlego, rapidamente entrando na porta mais próxima.

Eles sabiam, afinal, que o que estavam procurando não estaria em nenhum dos containers empilhados no deck, mas escondido nas entranhas do navio.

Na verdade, Stiles apostava que não havia nada em nenhum daqueles containers expostos na parte superior, apenas uma mentira para esconder algo muito mais valioso, algo que Caim não queria que caísse nas mãos erradas.

Bom, as mãos de Stiles seriam o pesadelo do demônio.

Eles continuaram seguindo pelos corredores cinzentos e apertados, se equilibrando precariamente enquanto as águas do porto balançavam o navio suavemente de um lado para o outro. Tiveram que se esconder algumas vezes em armários ou salas vazias quando ouviam alguém da tripulação se aproximando, mas conseguiram seguir em um ritmo constante até o porão do navio. Mais carga sem importância se acumulava lá, mas eles passaram direto por cada pilha desinteressante de nada, até que estavam diante de um enorme cofre de metal cinza, que se camuflava em meio aos containers na semi-penumbra.

A coisa tinha pelo menos três metros de altura, pouco menos de largura, e estava parafusado no chão de metal do navio, uma monstruosidade imóvel que prometia esconder a resposta para um problema fundamental que eles começaram a dar atenção desde a chegada de Lucius, pouco menos de um ano atrás.

Afinal, era possível matar um demônio?

“Faça sua mágica”, ele disse mentalmente para Devi, que foi rápida em tirar o marcador encantado que havia preparado especialmente para aquele cenário.

Stiles se contentou em ficar de vigia enquanto ela trabalhava desenhando as runas de desbloqueio na porta do cofre, seu olhar viajando para cada canto sombrio do porão com cautela.

O marcador vermelho era como uma explosão de cor contra o cinza apagado do metal, a mistura de tinta, ervas e sangue do objeto deixando uma marca permanente do que, de longe, quase pareceria uma equação matemática. Longos minutos se passaram enquanto Devi completava o ritual, aquela expectativa sinistra tomando conta do corpo de Stiles como se o próprio Caim fosse sair de um canto escuro à qualquer momento, exigindo sua luz.

Quando a porta do cofre finalmente se abriu, o mundo permaneceu silencioso, porque a embarcação era operada por uma equipe totalmente humana, ignorante, embora leal ao demônio que a possuía.

Stiles se virou com o coração na garganta, e lá estava, Avan Shel Or*.

Era um bloco de obsidiana lisa e brilhante, e imediatamente refletiu a centelha deles como um espelho de escuridão. Em sua superfície, entalhados e preenchidos com pó de ouro, as runas antigas que, segundo as pesquisas de Lucius, seriam a chave para destruir seus predadores. Não apenas exorcizá-los, mas destruí-los completamente.

“É lindo”, Devi sussurrou em sua mente, “vamos tirar isso daqui”.

Stiles tocou a pedra, sentindo seu poder antigo como uma vibração em seus ossos; então Devi acendeu a vela vermelha, e estava feito.



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— Certo, e o que exatamente vamos fazer com isso? — Dara perguntou, os braços cruzados e um leve torcer de escárnio nos lábios. O enorme bloco de obsidiana estava no meio da sala de rituais no sótão, chamativo como um buraco negro, e já faziam alguns minutos que todos eles simplesmente encaravam a coisa com consideração.

A viagem da China de volta para os Estados Unidos foi complicada, com Devi, Stiles e Lucius precisando pegar um avião particular para voltar para o país com a pedra, já que eles haviam comprovado que a vela vermelha ainda não conseguia levá-los através do mar por algum motivo. De qualquer forma, lá estavam eles, depois de dias de viagem e tensão, diante do que estavam procurando há quase um ano agora.

— Bom, isso é uma ótima pergunta… — Lucius murmurou, estreitando os olhos para a coisa. A pedra em si era bem menor do que o cofre de segurança máxima em que havia sido armazenada, tendo cerca de um metro e meio de altura e um de largura, mas era surpreendentemente pesada, apesar disso.

Stiles suspirou: — Devi e eu podemos começar a fazer alguns testes. Podemos ver o que acontece se tentarmos colocar essas runas em outro objeto, mas só vamos saber se funciona se… bom, se usarmos isso contra um demônio.

— É muito cedo para isso ainda. — Alina cortou a ideia imediatamente. De todos ali, ela era de longe a menos animada com toda a situação, mesmo que entendesse a necessidade de prosseguir aquilo. — Vamos entender melhor como essa coisa funciona, vou ajudar com os testes e com a pesquisa, mas vamos fazer isso com calma e, principalmente, cuidado. Querendo ou não, até mesmo Caim considera essa pedra um perigo à ser reconhecido.

— Bom, não parece exatamente ameaçadora pra mim. — James se ajoelhou em frente à pedra, passando os dedos de forma cuidadosa pelas runas entalhadas, manchando as pontas com pó de ouro. — É uma energia quase… familiar, eu acho. — Ele murmurou, parecendo absorto em suas próprias observações. De todos ali, James sempre havia sido o mais intuitivo, aquele mais conectado com sensações e energias.

— Mesmo assim, vamos fazer isso do jeito certo. É a primeira vez que temos algo que supostamente pode nos ajudar a enfrentar demônios, temos que fazer valer à pena. — Devi já estava com seu caderno de ideias na mão, a caneta rabiscando ideias rapidamente. — Eu vou começar alguns rascunhos.

Stiles concordou: — Vou fazer uma pesquisa mais profunda sobre o uso de pó de ouro em feitiços. Lucius, preciso do seu celular, tem pouca coisa sobre isso na nossa biblioteca.

Lucius tirou o celular do bolso imediatamente, uma engenhoca modificada que tornava mais fácil e mais seguro se comunicar com outras Centelhas espalhadas ao redor do globo – e tinha um sistema de tradução em tempo real fantástico.

— Acho que Sanaa ou Eshe podem ajudar. — O homem murmurou, ainda muito concentrado na pedra.

Dara suspirou, onde ainda estava de braços cruzados: — Certo, certo, acho que devíamos deixar o Mickey e a Dev trabalhar. Jay, vamos treinar um pouco, que tal?

James bufou, desviando o olhar da pedra e já parecendo exausto em antecipação: — Não podemos pular o treino de hoje? Isso é importante.

Dara negou, firme: — De jeito nenhum, seu gancho de esquerda ainda é um horror, e nenhum de nós é cientista.

James se virou para Stiles e Devi com a boca aberta em falsa ofensa: — Você vê como ela fala comigo?

Stiles cantarolou, oferecendo uma mão para ajudar James a levantar: — Não sei não, Jay, ela é a especialista em luta aqui, talvez ela esteja certa.

— Seu traidor descarado… — James murmurou, mas se deixou levar pela adolescente para fora do sótão, seus passos arrastados sumindo junto dos passos firmes dela.

Dara, apesar da pouca idade, se provou facilmente a melhor lutadora entre eles; aparentemente, seu pai havia sido algo entre um ex-militar e um ex-mercenário, e a criou para sobreviver à qualquer custo quando estavam vivendo escondidos nas profundezas geladas da Rússia. Foi uma descoberta fantástica, que não só estava ajudando todos eles a melhorarem suas habilidades de autodefesa, como também havia feito com que Dara finalmente se sentisse necessária.

Eles haviam comemorado seu aniversário de quinze anos poucas semanas antes, e ela parecia estar florescendo, muito diferente da garota quieta, raivosa e assustada que era quando chegou ali

— Certo, vou ligar para Eshe primeiro, me desejem sorte. — Stiles murmurou, se virando e saindo do sótão também. Como sempre, ele tinha muita pesquisa para fazer.



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A primeira arma funcional que Devi desenvolveu usando as runas do bloco de obsidiana, foi um bastão de baseball – mais especificamente, o bastão de baseball de Stiles.

Ele estava mofando dentro de Roscoe há meses, mas a estrutura metálica foi perfeita para um dos testes mais ousados que Devi resolveu liderar até então, cerca de três meses depois de sua missão na China.

Todos os outros projetos envolvendo a pedra se provaram frutíferos de suas próprias maneiras, mas nem de longe plenamente satisfatórios, ou realmente funcionais.

As propriedades mágicas das runas na pedra eram misteriosas e intrigantes, contendo equações de cura, maldições e segredos dos ciclos naturais, como um quebra-cabeça complexo demais para ser visto em sua completude. Eles tiveram que trabalhar peça por peça, apenas imaginando a figura maior que elas queriam formar.

Luz, principalmente, e equilíbrio, mas transformar esses conceitos em armas era uma coisa muito mais complexa do que captar tais conceitos nos entalhes antigos e pó de ouro.

Mas Devi era genial, e Stiles nunca havia se dado por vencido quando o assunto envolvia pesquisa e magia, então, com o auxílio de sua constelação e dos extensos contatos de Lucius com outras Centelhas e seres sobrenaturais, eles tinham seu primeiro protótipo funcional.

Um bastão de baseball.

A diferença desse projeto para os outros, é claro, é que Devi decidiu que, para energizar as runas corretamente, era preciso integrar parte da obsidiana em si com o objeto, o que era uma teoria tão interessante quanto contraproducente; eles não tinham blocos encantados de obsidiana sobrando ou algo do tipo, então é claro que era exatamente isso que faltava para estabilizar o projeto.

Uma lasca, foi só o que foi preciso, e aquela energia pulsante da pedra ecoou pelo bastão como se fossem partes de um mesmo coração.

Dara parecia a mais animada entre eles com a perspectiva: — Quer saber, eu tô dentro, deixa eu testar! — O sorriso em seu rosto parecia capaz de energizar Nova Orleans por um ano inteiro, e ela quase pulava de animação sem sair do lugar. Estavam todos reunidos ao redor da mesa da cozinha, onde Devi havia colocado o bastão com um baque vitorioso logo depois do café da tarde.

— Nem pensar! — Alina e Stiles disseram ao mesmo tempo, na mesma entonação exasperada.

— Mas-

Stiles nem deixou que ela continuasse: — De jeito nenhum, Dara. Você vai ficar o mais longe possível dessas coisas.

— Ah, qual é-

Devi estendeu a mão e bagunçou o cabelo curto e escuro da adolescente, lançando para ela aquele sorriso selvagem que sempre promete problemas: — Relaxa, eu vou deixar você quebrar a cara de alguns demônios quando você for mais velha.

— Quão mais velha? — Dara fez beicinho, infeliz.

Alina estreitou os olhos para a garota, cruzando os braços com sua postura imperiosa de professora: — Que tal você aprender os conceitos básicos de magia antes de querer sair por aí se metendo em confusão, Srta. Chanthara? — Um sorriso lento e maldoso se abriu no rosto da mulher então — Na verdade, acho que você aproveitaria algumas horas de meditação agora, enquanto eles discutem o que fazer com o bastão.

A boca de Dara se abriu em choque: — Isso não é justo! — Ela olhou para o resto deles em busca de ajuda, mas todos simplesmente deram um passo para trás.

James levantou as mãos, demonstrando que não podia fazer nada: — A vida não é justa, estrelinha.

Dara bufou, mas seguiu Alina mesmo assim – claro que não antes de lançar um olhar mortal para todos eles: — Vou acabar com vocês no próximo treino, eu juro!

Ela saiu da cozinha com Alina, e James estremeceu: — Essa garota ainda vai me quebrar ao meio, eu tô falando pra vocês.

Stiles o empurrou de leve com o cotovelo: — Talvez você devesse melhorar sua defesa.

James o empurrou de volta: — E talvez você devesse parar de fugir dos treinos, Mitch.

Stiles fingiu ofensa com a acusação totalmente verdadeira: — Ei, eu estou ferido! Demônio, fogo mágico, queimaduras terríveis, lembra? — Mas James já estava saindo da cozinha com um sorriso brilhante, provavelmente sendo esperto o suficiente para fugir antes de ser arrastado para ajudar com o jantar.

Lucius ergueu uma sobrancelha divertida para ele: — Essa desculpa parou de colar três meses atrás quando você invadiu um navio cargueiro na China.

— Isso é um absurdo-

— Para de reclamar, Mick, ainda precisamos pensar em como vamos testar essa belezinha. — Devi rapidamente desviou sua atenção de volta para fruto dos esforços deles. — Precisamos de um demônio.

— Precisamos de uma situação em que um erro não nos mate quando estivermos testando isso em um demônio, isso sim. — Ele murmurou, pensando como poderiam fazer algo assim acontecer.

— Isso vai ser difícil, aqueles babacas são imprevisíveis. — Devi concordou, uma leve careta de frustração em seu rosto.

— E poderosos. — Lucius concordou, seus olhos verdes novamente presos no bastão cheio de runas. — Eu testo.

Stiles se virou totalmente para o homem: — Você não vai fazer isso sozinho.

— É o mais lógico a se fazer-

— De jeito nenhum, Lucy. — Devi o olhou de forma crítica também — Não estou nem aí se você acha que dá conta.

— Já enfrentei mais de um demônio nessa vida, eu não sou uma criança.

— É, você enfrentou eles e sobreviveu porque conseguiu fugir. Isso vai ser um confronto direto, e não vamos te jogar no meio deles só pra ver o que acontece. — Stiles definitivamente não deixaria Lucius fazer algo tão estúpido. — Isso é estupidez, e isso vindo do cara que se explodiu com fogo mágico enquanto tentava fugir de um demônio.

— Podemos pensar em um plano, mas eu ainda vou fazer isso. De todos aqui, eu sou o que tem mais experiência, tanto com magia quanto em… bom, em sobreviver lá fora.

— Mas-

— Sem mas. Está decidido.

Devi suspirou: — Certo, grandão, se você insiste. Mas vamos pensar em um bom plano para fazer isso da forma mais segura possível, sem discussão.

— Sim senhora. — Lucius sorriu para ela, as rugas em seu rosto o tornando ainda mais amigável. Era tão difícil ver Centelhas que viviam o suficiente para ter rugas de velhice que ter Lucius e Alina por perto era como um lembrete constante de um futuro.

— Bom, eu vou fazer mais alguns testes enquanto isso. — Ela pegou o bastão, que ainda vibrava com aquela magia antiga e confortável enquanto saía da cozinha.

— Vou preparar o jantar enquanto isso. — Stiles prometeu, sorrindo de volta para ela enquanto ela desaparecia escada acima. Se voltou para Lucius e indicou a ilha no meio da cozinha — Me dá uma mãozinha?

— Claro. — Lucius era sempre solicito, Stiles percebeu. Quase um ano havia se passado desde aquele dia, quando o conheceu pessoalmente, e o homem não ficava o tempo todo na casa do pântano como o resto deles, muito acostumado com sua vida solitária e nômade de Estrela Cadente, mas toda vez que estava ali, fazia questão de ajudar em tudo que podia.

Era difícil dizer com certeza se ele apenas possuía uma natureza gentil, embora distante, ou se ele simplesmente não se sentia parte o suficiente da constelação deles. Stiles esperava que ele não se sentisse um intruso, e não apenas porque havia se provado fundamental nos últimos meses, mas porque era simplesmente impossível que eles não se amassem profundamente, todos eles.

Antes de qualquer coisa, de qualquer individualidade, essa era a natureza mais essencial de uma Centelha.

Eles estavam cortando legumes e carne quando Stiles quebrou o silêncio tranquilo do final da tarde, sem desviar o olhar da tarefa que tinha em mãos: — Ficaríamos arrasados se alguma coisa acontecesse com você, sabia?

Ele sentiu o olhar de Lucius sobre ele quase como uma coisa física, surpresa: — O que?

— Sabe, se algo ruim acontecesse com você, seja testando o bastão ou, não sei, se algo desse errado nas suas viagens... — Stiles murmurou, esperando que sua voz soasse tão suave quanto verdadeira — Ficaríamos arrasados. Você é muito importante pra gente, para todos nós.

— Eu… — Lucius gaguejou, claramente não sabendo o que responder, mas Stiles não precisava de uma resposta, muito menos de um agradecimento. Ele só precisava que Lucius soubesse.

— Só queria que você soubesse disso. — Stiles acrescentou rapidamente, quando o silêncio se tornou demais. — Parece que nossa constelação fica sempre mais completa quando você está aqui… e, é claro, você faz ótimos drinks também, é uma contribuição e tanto. — Ele tentou quebrar a tensão um pouco no final, esperando que a conversa emocional não afastasse Lucius como ele temia.

O homem riu então, sua postura relaxando na visão periférica de Stiles: — Sabia que vocês estavam me usando pelas minhas habilidades como bartender.

— A culpa é toda sua, Lucy, ninguém mandou você fazer margaritas pra gente! Agora é um contrato para a vida toda.  — Stiles brincou de volta, e eles voltaram a se concentrar no preparo do jantar.

Stiles podia sentir cada uma de suas estrelas dentro da casa; Devi no sótão com seus experimentos, James provavelmente lendo no solário, Dara e Alina meditando no jardim.

Por um momento, tudo pareceu perfeito, e algo como paz se estabeleceu dentro dele.

 

𖤓

Notes:

Avan Shel Or*: "Pedra da Luz" em hebraico

Notes:

Espero que tenham gostado da leitura!